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Cinco poemas e três passagens de Wesley Correia no livro Íntimo Vesúvio

Wesley Correia - Foto daqui

Feliz Natal
Wesley Correia

eu era menino
e minha mãe recebeu da melhor amiga
um cartão de natal:

“Amiga Joana,
que Deus Menino te dê novo fôlego,
te livre dos males desta vida,
que esta vida é mar de ilusões.”

à essa amiga, minha mãe surpreenderia, mais tarde,
na sua cama e em ato com meu pai,
eu era menino.

outro dia, tendo-se passado muitos dezembros,
um sem-número de decepções,
e eu já homem,
soube que mamãe perdoou à Maria,
aquela sua amiga sincera.

--------

Eduardo
Wesley Correia

E o coração de Eduardo parou
lá na Carlos Gomes.

Nós, que o observávamos, comiserados,
éramos a dimensão trágica de sua existência,
contornando como uma parabólica
as razões de seu pênis circuncidado
e tão ausente de conceito.

Nós, diante do corpo jazido,
íamos dotando de sentidos a morte
e esvaziando de sentido a vida.

Eduardo nos enchia de movimento místico.
Nós o queríamos apoiar nos ombros,
obrigando-o a regressar à casa:
– Levanta, meu filho, anda,
nos exima dos ardis da ciência.

Nem carece de tanta coragem ou medo,
pois que o ímpeto e o recuo
se processam é no justo lugar.

E crê em Deus Pai, Eduardo,
que nossas angústias são prolongáveis.

--------

Alujá
Wesley Correia

Quando Xangô me engoliu,
ardi qualquer ilusão naquelas vísceras incendiárias,
bebi do sangue vulcânico,
mergulhei no calor, o insano sonho,
e toquei seu coração em brasa:
morri quando Xangô me engoliu.

Morri pensando que era dia,
mas era uma noite de contemplação.
Fora das entranhas sagradas,
a solitária estrela delirante
(também ela a queimar)
costurava sinfonias
no imenso céu de fogo.

Era já outro aquele rubro céu
a me espelhar todo em si.
Eu, que na beleza das febres,
me ergo em frenética pulsação magenta,
e, finalmente, avisto o porto primordial
onde vêm ancorar meus segredos,
onde venho fundi-los,
enquanto gozo mel.

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Cruz das Almas
Wesley Correia

Quando eu nasci,
não houve anjo apocalíptico,
não houve demônios
ou profecia de fogo
e nenhum cavalo relinchou
de um canto a outro do mundo.

Quando eu nasci,
não houve Ulisses atado
ao mastro do barco,
não houve Gaza ou Tel Aviv,
não houve Zimbabwe
nem os desertos da Namíbia ou do Atacama,
mas, talvez, já houvesse essa estranha atração
entre opressores e oprimidos.

Quando nasci, dona Florzinha preparou os bolos
para o marido vender aos estudantes,
dona Dete foi à igreja,
Roque fechou a oficina e foi almoçar.
Mais tarde, como em todos os dias,
a fábrica Suerdieck apitou para a cidade
a lida das operárias.

Lembro que minha mãe estava
cansada quando eu nasci, muito cansada,
e que meu pai nos olhava da porta do quarto,
com seu olhar de homem.
Quando eu nasci,
já havia a misteriosa paixão que rompe das fendas das pedras
e a Rua Professor Mata Pereira urdia outras belezas.

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Painho, Mainha
Wesley Correia

Cosmo espesso da Bahia,
depositário de corpos e desespero.
Cosmo espesso da Bahia,
signatário de espíritos silentes e doídos.

Painho, gente, cadê?
Seu corpo de bálsamo, seu belo e libertário corpo,
único capaz de me resgatar?
Cadê painho, minha gente?

Faz uma noite linda em Cartagena e ninguém dá por mim.
Faz uma noite linda em Irecê, em Tavira,
uma noite linda em Camaçari e ninguém, ninguém dá por mim.
Feira de Santana, Itabuna, Jiquiriçá,
termos simultâneos, na misteriosa equação,
operando o início, operando o fim.

Cadê mainha, meu Deus?
sua beleza de interior, seu sorriso de bondade
escapando à mágoa que a entrevou, ao corpo que minguou?
Mainha, cadê, minha gente?

Cosmo espesso da Bahia,
depositário de acintosos corpos e espíritos,
Painho e mainha me ofertam a ti.

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“Há funcionalidade nas coisas inúteis.
Mais ainda: há essenciais futilidades.

Sigo resiliente apesar de cético:
posso elevar a voz em novas e
formidáveis sinergias.
E, no entanto, posso rir do esforço
que isso me causa.”


“À noite, tinjo-me de estrelas
e penetro, com o salto
do meu sapato de verniz,
as pedras da cidade.

Engravido as rochas

Gasto meu batom azul em corpos efêmeros,
dou a todos eles os tons
do riso e do prazer.

Pela manhã, volto à rotina:
pego ônibus lotado; bato cartão;
carimbo, religioso, dezenas de papéis
que engendram a máquina colossal
e chego, sem memória, ao final do expediente.”


“Permanece tudo o mesmo.
depois de tudo já mudado.
Permanece a explosão antes de explodir,
a combustão antes de queimar.
Fugidio, permanece o instante vivo
e aquela sinfonia que envolve as memórias.

Permanece a janela de onde se vê o mundo:
a paisagem, a despeito de toda rigidez,
se move em mistério como num quadro expressionista.
Movendo-se parada, a cena anuncia, a cena revela:
a memória inventa a linguagem?”




Presentes no livro de poemas Íntimo Vesúvio (Pinaúna, 2017), páginas 24, 42-43, 40-41, 32-33 e 28-29, respectivamente, além dos trechos dos poemas Torpor (p. 53), Noite (p. 52) e Questão (p. 78), presentes na mesma obra.

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