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Vinte passagens de Clarice Lispector nas crônicas de 1968

Clarice Lispector - foto daqui


“Sou tão misteriosa que não me entendo.”


“(...) Tudo o que dá certo é normal. O estranho é a luta que se é obrigado a travar para obter o que simplesmente seria o normal.”


“A missão não é leve: cada homem é responsável pelo mundo inteiro.”


“Sonhei que um peixe tirava a roupa e ficava nu.”


“Sinto que viver é inevitável. Posso na primavera fica horas sentada fumando, apenas sendo. Ser às vezes sangra. Mas não há como não sangrar pois é no sangue que sinto a primavera. Dói. A primavera me dá coisas. Dá do que viver. E sinto que um dia na primavera é que vou morrer. De amor pungente e coração enfraquecido.”


“A mensagem é clara: não sacrifique o dia de hoje pelo de amanhã. Se você se sente infeliz agora, tome alguma providência agora, pois só na sequência dos agoras é que você existe.”


“O que eu quero contar é tão delicado quanto a própria vida. E eu queria poder usar a delicadeza que também tenho em mim, ao lado da grossura de camponesa que é o que me salva.”


“Todo prazer intenso toca no limiar da dor.”


“Quando o amor é grande demais torna-se inútil: já não é mais aplicável, e nem a pessoa amada tem a capacidade de receber tanto.”


“O que eu gostaria de ser era uma lutadora. Quero dizer, uma pessoa que luta pelo bem dos outros. Isso desde pequena eu quis. Por que foi o destino me levando a escrever o que já escrevi, em vez de também desenvolver em mim a qualidade de lutadora que eu tinha? (...) bastava acusarem uma pessoa para eu imediatamente defendê-la. E eu sentia o drama social com tanta intensidade que vivia de coração perplexo diante das grandes injustiças a que são submetidas as chamadas classes menos privilegiadas. (...) Em Recife, onde morei até doze anos de idade, havia muitas vezes nas ruas um aglomerado de pessoas diante das quais alguém discursava ardorosamente sobre a tragédia social. E lembro-me de como eu vibrava e de como eu me prometia que um dia esta seria a minha tarefa: a de defender os direitos dos outros. (...) No entanto, o que terminei sendo, e tão cedo? Terminei sendo uma pessoa que procura o que profundamente se sente e usa a palavra que o exprima. (...) É pouco, é muito pouco.”


“(...) iluminar o futuro é, pois, a melhor maneira de viver o presente.”




“(...) Olho o filho toda compacta, mas ele está habituado à burrice de meu olhar concentrado de amor. Ele não me olha, e não se incomoda de ser observado nesse seu ato íntimo, vital e delicado: e continua a lamber o sorvete com a língua vermelha e atenta. Não sinto nada, senão que sou inteira, pesada de material de primeira, boa madeira. Como mãe, não tenho finura. Sou grossa e silenciosa. Olho com a rudeza de meu silêncio, com meu olho vazio aquela cara que também é rude, filho meu. Não sinto nada porque isso deve ser amor pesado e indivisível. Ali estou, recuada. Recuada diante de tanto. O indevassável me deixa com uma espécie de obstinação áspera; impenetrabilidade é o meu nome; estou ali, endomingada pela natureza. Minha cara deve estar com um ar teimoso, com olho de estrangeira que não fala a língua do país. Parece um torpor. Não me comunico com pessoa alguma. Meu coração é pesado, obstinado, inexpressivo, fechado a sugestões.”


“Lembro-me agora com saudade da dor de escrever livros.”


“Não posso escrever enquanto estou ansiosa ou espero soluções a problemas porque nessas situações faço tudo para que as horas passem – e escrever, pelo contrário, aprofunda e alarga o tempo. Se bem que ultimamente, por necessidade grande, aprendi um jeito de me ocupar escrevendo, exatamente para ver se as horas passam.”


“(...) se você fosse você, como seria e o que faria? Logo de início se sente um constrangimento: a mentira em que nos acomodamos acabou de ser levemente locomovida do lugar onde se acomodara.”


“(...) Guimarães Rosa disse que, quando não estava se sentindo bem em matéria de depressão, relia trechos do que já havia escrito. Espantaram-se quando eu disse que detesto reler minhas coisas. Ivo observou que o engraçado é que parece que eu não quero ser escritora. De algum modo é verdade, e não sei explicar por quê. Mas até ser chamada de escritora me encabula.”


“Um dia acordei às quatro da madrugada. Minutos depois tocou o telefone. Era um compositor de música popular que faz as letras também. Conversamos até seis horas da manhã. Ele sabia tudo a meu respeito. Baiano é assim? E ouviu dizer coisas erradas também. Nem sequer corrigi. Ele estava numa festa e disse que a namorada dele – com quem meses depois se casou – sabendo a quem ele telefonava, só faltava puxar os cabelos de tanto ciúme. Na reunião tinha uma Ana e ele disse que ela era ferina comigo. Convidou-me para uma festa porque todos queriam me conhecer. Não fui.”


“Outra coisa que não me parece ser entendida pelos outros é quando me chamam de intelectual e eu digo que não sou. De novo, não se trata de modéstia e sim de uma realidade que nem de longe me fere. Ser intelectual é usar sobretudo a inteligência, o que eu não faço: uso é a intuição, o instinto. Ser intelectual é também ter cultura, e eu sou tão má leitora que, agora já sem pudor, digo que não tenho mesmo cultura. Nem sequer li as obras importantes da humanidade. (...) Hoje em dia, apesar de ter muitas vezes preguiça de escrever, chego de vez em quando a ter mais preguiça de ler do que de escrever.”


“(...) meu caminho não sou eu, é outro, é os outros. Quando eu puder sentir plenamente o outro estarei salva e pensarei: eis o meu porto de chegada.”


“(...) Literatura para mim é o modo como os outros chamam o que nós fazemos.”


Presentes no livro Todas as crônicas” (Rocco, 2018), de Clarice Lispector, páginas 127, 148, 180, 131, 152-153, 182, 123, 153-154, 166, 163-164, 179, 150, 144, 166, 171, 145-146, 145, 162-163, 130 e 129, respectivamente.

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