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Livro Aeronauta (Mondrongo, 2020), de Ângela Vilma, org. Emmanuel Mirdad


Ahhh, que alegria!!! Tá publicado o livro “Aeronauta”, com as crônicas preciosas da escritora e professora Ângela Vilma, selecionadas por mim (depois de me inaugurar romancista em 2020, este é o meu primeiro trabalho como organizador/editor). Gosto tanto dessa obra, mas TANTO, que o meu desejo é dar de presente para todo mundo que conheço.

Especialmente as mulheres, as professoras, as pessoas que se emocionam e acreditam no amor, no riso, e que não se assustam com as angústias, as dúvidas, as aflições do ser humano, e que gostam de contemplar as memórias de uma brilhante contadora de histórias, para relembrar as suas, reviver a família, os pais, os irmãos, os amores esquisitos, os desencontros e as comédias.


É o material mais humano que já li na blogosfera (a seleção foi feita de posts no blogaço de Ângela, “Aeronauta” também), e que agora é materializado em papel, pela brilhante editora Mondrongo, de Gustavo Felicíssimo.

Comprem, comprem, comprem. Leiam, leiam, leiam. E deem de presente, indiquem, comentem. É bom demais, gente! Ângela Vilma é gigante como cronista, e só conseguiu isso porque é poeta. Lindo demais esse “Aeronauta”, 100% de aprovação, satisfação garantida, comprem aqui (disponível apenas no site da editora Mondrongo).

Tive a honra de escrever o prefácio para o livro, segue abaixo, na íntegra:


Sem medo de andar pelos abismos
Emmanuel Mirdad

Nascido em 04 de julho, uma quarta-feira de 2007, o blog Aeronauta. Uma autora anônima posta versos de Cecília Meireles e começa a arriscar os seus textos: “Agora é tarde: me rendi às tentações do mundo cibernético. Disse que nunca teria um blog, e aqui estou pagando a língua. Não queria, mas descobri que escrevendo sob os auspícios (palavra zombeteira) da internet, eu posso continuar sendo o que sempre fui: aeronauta. Vi que posso continuar sendo do ar. Aliás, depois que cedi à tentação, sinto que aqui estarei mais no ar... E lá vou eu, buscando caminhar nas nuvens, além da terra, tal qual Cecília”.

Depois de três postagens, começam a surgir os comentários. E ela circula em outros blogs, deixa as suas impressões e vai garimpando leitores. E escreve. Publica um texto após o outro na rede social do momento — inéditos oferecidos de graça no seu blog. Vasculha a memória e compartilha as lembranças da infância, as saudades, os aprendizados, as desventuras, os amores. É engraçada, debochada, sem filtros. Gosta de assinar como Aeronauta, apenas. “Este meu nome de batismo aqui vem da poesia de Cecília Meireles. De um personagem que se parece comigo. E que um dia descobre que não é feliz nem triste, humilde nem orgulhoso, pois não é terrestre”. Pfff... discordo! Essa Aeronauta é muito terrestre. É raiz. É árvore. E frutifica: a poeta se torna cronista. E ganha seguidores.

Quem lê, quer outro. Quer mais. Viciamos. Todos. A cada post, mais encanto. Martha, Nilson, Carlos, Mônica, Lívia, Kátia, Lidi, Elieser, Wesley, Tom... são tantos escritores que admiram a Aeronauta. Eu sou fisgado também. A morte da tia Corina, os crótons e a pretensa suicida, os vestidos curtos de ver a calçola cor de rosa; a professora que ama [apaixonadamente] os alunos, o pé de carambola do quintal, a máquina de escrever Drummondina a imitar Clarice; o lirismo do pai, a mãe que jamais trocaria o rádio pela TV, o cinematográfico velório/funeral do avô. 68 posts em 2007. E muitas emoções. “Faço apenas apologia à possibilidade de poder transformar minha infelicidade em alguma coisa”. Oh, Aeronauta, e como você transformou!

Quase duzentas postagens em 2008. E a sertaneja registra o encanto perdido da noite de São João, após a morte do pai herói. Também foi escrevente de cartório, que escondia na gaveta um livro e uma caixa de chocolates. A mulher que sempre teve uma certa queda pelo grotesco [“A beleza física não me comove tanto quanto a feiura”], cuja amiga abusiva da infância a fez sentir, até hoje, que é descartável para os amigos. Não é. Afinal, você fez [e faz?] terapia “para descobrir todos os meus abismos, e andar por eles sem nenhum medo”.

Mais de cento e cinquenta posts em 2009. E nos afeiçoamos pelo namorado magrelo e feio, muita empatia pelo namorado gordo, alto e torto, e a alegria pelos amarelinhos, o primeiro livro publicado. Você, que vem de uma família que “todo o amor do mundo nos foi dado sem necessitar de um abraço e de um beijo”, e leva Clarice nos ossos, com uma ternura absoluta por São Paulo, escreve um post que Machado de Assis pensa em ressuscitar só para ter o prazer de ler. Como ainda não morri, e tenho a sorte de degustá-lo quando quiser, peço licença ao bolso do seu editor para transcrevê-lo na íntegra. Recebam a obra-prima da Aeronauta, um spoiler necessário: “Sou uma mulher machadiana, silenciosa e entrada em anos. Minhas mãos não têm mais a suavidade dos vinte, e a conversação que proponho é tímida, reticente, sem qualquer esperança. Ganhei com o tempo um rosto severo, com marcas delimitadas pelo espelho mais cruel. Nele, nem o meu sorriso é como era: quando se abre, uma nuvem se aproxima em confidência íntima, eterna. Meu corpo sem filhos ganhou o contorno dos rios já vividos, sinuosos e vastos, e nas frestas de minha pele habitam peixes como se no aquário estivessem. Veias partidas aparecem nas minhas pernas, condenando-me à mais primitiva das belezas, à ternura das mais antigas pedras. Meus cabelos, como plantas aquáticas, crescem, crescem, e fios brancos despontam, pálidos, errantes. Tudo em mim é natureza se transformando, árvore plena carregada de troncos”.

UAU! Bravo!!! Chega até me esqueço de quando a Aeronauta se revela Ângela Vilma para nós, os seus leitores. Só sei que a cronista-poeta [nessa ordem porque sou mais fã da sua prosa poética que dos versos] publica mais de cem postagens em 2010, gravando uma das nossas piores sinas: “Todos, em algum momento do dia, se curvam, flexíveis, diante da dor. E todos, inexplicavelmente todos, estão definitivamente perdidos”. A perdidaça predileta desse perdidaço aqui nos presenteia com a experiência kafkiana num consultório médico & a homenagem à irmã forte, com dentes pretos e cabelos curtos [“o retrato mais inteiro que tenho do humano, nas suas fissuras comoventes de força, transgressão e afeto”]. Ângela raiz que voa Vilma e vaticina: “Deve ser essa a frustração máxima do homem, e mais ainda do escritor: não ter nunca a totalidade, a unidade de si mesmo”.

Dois mil e onze, a produção começa a diminuir. São menos de cem publicados. Entre tantos, a máxima: “Devia ser essa a ambição de todo homem, em toda e qualquer instância: sair do senso comum”. Armaria! Ensina mais, professora! E eu consigo ouvir as suas gargalhadas que preenchem uma casa, a narrar as suas desventuras na vila desvirtuada do Capão. “Há muita bestagem nesse mundo”. Oxe, e é, é? Só há, ha-ha. Por isso, o belo. Você vem e produz o belo na forma de homenagens aos mortos: Salvo, o carteiro negro; Celeste, a menina-morta mais antiga. E reafirma, contra os que tentam plastificar a existência, que o amor é secreções & odores & pele na pele, na chapa: “Adoro o cheiro de suor dele, o chamado suor vencido, que vem de suas axilas sem desodorante. Gosto de seus pés sujos de andar pelo mato, seus pés grossos e calosos, endurecidos como seixos graúdos. Me apego demais a seu hálito fresco de dentes não escovados”.

Somando as publicações de 2012 e 2013 dá quase 150. E Ângela Vilma cada vez mais afiada: “Para a maioria das pessoas é mais fácil mandar e obedecer de que tentar estabelecer uma relação de confiança com o outro; e confiança e de afeto; e de compreensão”. As mudanças do corpo ao envelhecer, a vida de uma dificuldade pavorosa na cidade, a mais delicada declaração de amor que recebeu de um homem, a professora que quer libertar o aluno do condicionamento [da prisão sem tormentos, sem anseios visíveis de alma, sem inquietações humanas]; são muitos encantos. Que repertório! E, no dia do meu aniversário em 2012, Ângela Vilma publica o texto que mais gosto do Aeronauta: “O poeta da roça”, uma belíssima homenagem ao pai, sertanejo & morto como o meu.

A partir de 2014, a cronista-poeta & professora dá um tempo, uma postagem aqui e acolá, ensaios pela volta que não se firma. Ela desiste do blog, como muitos fizeram. Já o doido-eu, não. Surge 2019. De saco cheio de ler livros, volto a fuçar as crônicas da Aeronauta, a meter a peneira do mestiço e gerar umas seletas para o meu blog [que já gosta de alumiar a excelência do trabalho de artistas com talento]. Gosto tanto desse garimpo que peço permissão à escritora. Ela autoriza. E eu edito um PDF como se fosse um livro. É uma missão: essas preciosidades da sertaneja não podem ficar mais no limbo da blogosfera. Precisamos imprimir em papel, fazer circular, chegar nas pessoas! Porém, o plano de publicar não dá certo. No pandêmico 2020, a sincronia revela o motivo: é preciso acontecer o livro “Aeronauta” na editora baiana Mondrongo, a casa da poesia de Ângela Vilma, que agora acolhe e divulga as suas deliciosas & emocionantes crônicas. E a Aeronauta arremata [exclusivo no blog]: “Só através da literatura saio da inutilidade, e consigo ir além de mim, além de toda a mediocridade, além de toda essa vida sem graça”.

Salvador da Bahia, 29 de novembro na pandemia 2020.
O garimpador desta edição.


Gustavo Felicíssimo, escritor e editor da Mondrongo, escreveu a bela orelha:

“Não posso, como editor, iniciar esse breve texto sem aplaudir o empenho de Emmanuel Mirdad na seleção e organização das crônicas que formam essa obra de Ângela Vilma, isso, deixemos bem claro, sem que ela ao menos desconfiasse. Explico: a autora publicou suas crônicas por anos em um blog que dá título à presente obra. Então, percebendo toda a potencialidade do que ali estava esquecido, visto que há muito a autora não publicava mais nada naquele espaço, ele resolveu revirar o conteúdo e dar ao que foi selecionado a unidade de livro. Tanta dedicação merece, de fato, os nossos melhores elogios.

Quanto às crônicas de “Aeronauta”, sou tentado a dizer que são fundadas em uma estética moderna, a autora atenta aos detalhes aparentemente mais ínfimos do cotidiano, aos fenômenos efêmeros, seus sortilégios mais íntimos, sem deixar de legar-lhes um olhar de poeta e ficcionista ao mesmo tempo.

Aqui, após algumas leituras e reflexões que me colocaram frente a frente com o espanto, ouso afirmar sem medo de tropeçar nas comparações mais tolas, que Ângela Vilma se alinha no plano estético a renomadas escritoras que firmaram seus nomes no panteão da crônica brasileira, como Cecília Meireles, Lygia Fagundes Telles e Clarice Lispector. Todas elas, senhoras de admirável consciência literária e estética.”

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