Kátia Borges (foto: Érica Ribeiro)
“Dentro do caos, os discursos organizam o contato humano possível, como nas gavetas se alinham, irregulares, as facas e os garfos. Para que algo seja descrito como perfeito, há sempre de haver ali algum erro, alguma perda. Só é verdadeiramente vivo aquilo que não se completa: a linha descontínua, o encontro adiado, os doze minutos que faltavam até a chegada em segurança ao heliporto. (...) Tudo se estende, tecido tênue em frágeis vigas. O que parece sólido apenas parece, perece, resiste por milagre. Por breves segundos ou bilhões de anos, o que desaparece projeta-se no tempo, movimenta-se no espaço, traço indelével entre passado e futuro. Pura magia que recusamos pela lógica. Como os peixes cegos que se guiam por antenas nos recantos mais profundos do Oceano ou as montanhas que se erguem no solo da Lua, formando vales no satélite.”
“Eu penso que, neste exato instante, o Universo inteiro se expande e nem sabemos até onde. E que as estrelas que nós vemos já nem existem. E que nada podemos, nada podemos contra o tempo. E que nada, absolutamente nada, permanece. E que, no entanto, tudo isso é mesmo muito sublime.”
“Sei pouco de muitas coisas desde a infância. Sei, por exemplo, que a chuva pode ser sentida antes que chegue por seu cheiro e que os cães são capazes de farejar as estações. Saber nunca é por inteiro. Cada desejo contém lições sobre si mesmo.”
“Lembro de um conto zen — engraçado como eles nunca têm autores — no qual o mestre de um mosteiro enfrenta solitariamente um assassino que nem mesmo conhece. ‘Você não sabe que está diante de alguém que pode tirar a sua vida?’, questiona o facínora, irritado com a calma do monge. ‘Ora, é você que não percebe estar diante de alguém prestes a perder a vida’, este responde. E eis que o bandido abaixa a espada e se converte ao budismo. Matava por ser ignorante? Daí deriva a instrução do bicho com que Drummond brinca em seu poema? Maybe, maybe, maybe. Também não sei, meu camarada.”
“Afaguei a tristeza por tanto tempo, que ela se apegou a mim, assim como fazem os cães mais solitários. Devo ser agora responsável se a cativei? Observo como segue o meu itinerário, ressentida de afagos, quando estou feliz. Olhos pequenos a espreitar melancolias, minha amiga imaginária aguarda o dia em que ouviremos Karen Dalton outra vez. E, algumas noites, a sós, pensarei que eu lhe devo algo. (...) Esse poema nasceu daquilo que a tristeza fez, rumina em silêncio o equinócio. Veio de certo pesadelo breve, no qual a vida parecia não fazer sentido. Folheio o livro. A casa pequena da infância no desvão do peito, com suas delicadezas e seus monstros, oscilando perigosamente entre o solo e o abismo. Vivemos esse dilema juntas, isso eu sei. E não tem sido fácil deixar que se desfaça o nosso vínculo.”
“Já reparou como as histórias são sempre sobre os ganhos das pessoas? Prêmios, títulos e bibliografias. E, no entanto, viver é conciliar o que há de mais cotidiano com aquilo que se assoma em nós de monstruoso. Todo anjo é terrível, já dizia Rilke. E confesso que sigo com essa espécie de koan metafísico a resolver por anos. Mas perder, ah, sim, perder é o que nos faz mais fortes, dizem os mais fortes. E não é mesmo nenhum desastre.”
“Se olharmos direito, há uma contradição nos bilhetes que guardam os conselhos de Einstein. Um deles estimula a acomodação, o outro exorta ao movimento. É como se ele tivesse dito ao camareiro lá em Tóquio: ‘Se desejar algo, lute. Se pode passar sem, mantenha-se quieto’. No fundo, bem lá no fundo, tudo é relatividade. Nesse ponto, meu pensamento inquieto conecta-se com Rainer Maria Rilke. (...) Em Cartas a um Jovem Poeta, ele orienta Franz Xaver Kappus, que vacila entre a carreira militar e a poesia, por não saber se os seus versos são realmente bons. É quase um teste, e tão valioso quanto a Teoria da Felicidade: ‘confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever?’. Rilke se exime, desse modo generoso, a um só tempo, do peso da crítica e do conselho. Examine a si mesmo, eis a senha. O resto é silêncio.”
“Como eram os seus olhos de antes? O que eles viam? Quais paisagens? Veio de nós esse tenso frio na sua testa, esse desconcerto na sua pose? O que imaginava mesmo que isso tudo fosse? Todo paraíso é algo que se avista ao longe, frágil miragem que se desfaz quando se chega perto. Percebo o riso forçado que esconde o riso inteiro. E não te sei de novo, algumas vezes.”
“Admito que mal sei administrar as pequenas vilanias do cotidiano. Posso, no máximo, publicar poemas confessionais e me arrepender no instante seguinte, pensar estratégias malucas para não enlouquecer e seguir adiante em meu próprio passo. Posso, no máximo, apontar o dedo para a Lua, dizer do Sol alguma tolice, falar de alegrias ou sobre como ando triste, fotografar o meu almoço.”
“Os budistas propõem que a grande questão da existência é não haver questão alguma. Tudo apenas flui em nós e no universo. O sofrimento humano vem da resistência a esse fluxo. Se você tem dúvidas sobre isso, sugiro que tente segurar por muito tempo alguma coisa. Penso nisso e em como, no fundo, o que nos faz vencedores ou vencidos – nas profundezas equatoriais do que somos – não faz muito sentido para os outros e nem sempre nos conduzirá a rankings ou pódios. Escrever, por exemplo.”
Presentes no livro de crônicas “A teoria da felicidade” (Patuá, 2020), de Kátia Borges, páginas 109, 107, 19, 100, 45-46, 84, 38, 44, 57-58 e 74-75, respectivamente.
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