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Os 50 melhores poemas de Carlos Drummond de Andrade

Carlos Drummond de Andrade (foto: Evandro Teixeira)

Hoje, 31 de outubro, a civilização comemora os 120 anos do mineiro Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), o maior poeta da literatura brasileira. Em 2022, li 23 livros de poesia do mestre, e para comemorar o Dia D, organizei “Por que morrer, se amamos?”, uma antologia com os 50 melhores poemas de Drummond, baseada apenas no meu gosto de leitor-fã [se eu tivesse uma editora e os direitos contratados, publicaria o livro]. Segue abaixo, boa leitura, e viva Drummond, eterno!

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Amar
Carlos Drummond de Andrade

Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.

“Antologia poética” (1962)

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Procurar o quê
Carlos Drummond de Andrade

O que a gente procura muito e sempre não é isto nem aquilo.
É outra coisa.
Se me perguntam que coisa é essa, não respondo, porque não é da conta de ninguém o que estou procurando.
Mesmo que quisesse responder, eu não podia. Não sei o que procuro. Deve ser por isso mesmo que procuro.
Me chamam de bobo porque vivo olhando aqui e ali, nos ninhos, nos caramujos, nas panelas, nas folhas de bananeiras, nas gretas do muro, nos espaços vazios.
Até agora não encontrei nada. Ou encontrei coisas que não eram a coisa procurada sem saber, e desejada.
Meu irmão diz que não tenho mesmo jeito, porque não sinto o prazer dos outros na água do açude, na comida, na manja, e procuro inventar um prazer que ninguém sentiu ainda.
Ele tem experiência de mato e de cidade, sabe explorar os mundos, as horas. Eu tropeço no possível, e não desisto de fazer a descoberta do que tem dentro da casca do impossível.
Um dia descubro. Vai ser fácil, existente, de pegar na mão e sentir. Não sei o que é. Não imagino forma, cor, tamanho. Nesse dia vou rir de todos.
Ou não. A coisa que me espera, não poderei mostrar a ninguém. Há de ser invisível para todo mundo, menos para mim, que de tanto procurar fiquei com merecimento de achar e direito de esconder.

“Boitempo III (Esquecer para lembrar)” (1979)

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As sem-razões do amor
Carlos Drummond de Andrade

Eu te amo porque te amo.
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.

Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.

Eu te amo porque não amo
bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.

Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.

“Corpo” (1984)

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Por quê?
Carlos Drummond de Andrade

Por que nascemos para amar, se vamos morrer?
Por que morrer, se amamos?
Por que falta sentido
ao sentido de viver, amar, morrer?

“Corpo” (1984)

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Essas coisas
Carlos Drummond de Andrade

“Você não está mais na idade
de sofrer por essas coisas.”

Há então a idade de sofrer
e a de não sofrer mais
por essas, essas coisas?

As coisas só deviam acontecer
para fazer sofrer
na idade própria de sofrer?

Ou não se devia sofrer
pelas coisas que causam sofrimento
pois vieram fora de hora, e a hora é calma?

E se não estou mais na idade de sofrer,
é porque estou morto, e morto
é a idade de não sentir as coisas, essas coisas?

“As impurezas do branco” (1973)

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Mancha
Carlos Drummond de Andrade

Na escada a mancha vermelha
que gerações sequentes em vão
tentam tirar.

Mancha em casamento com a madeira,
subiu da raiz ou foi o vento
que a imprimiu no tronco, selo do ar.

E virou mancha de sangue
de escravo torturado — por que antigo
dono da terra? Como apurar?

Lava que lava, raspa que raspa e raspa,
nunca há de sumir
este sangue embutido no degrau.

“Boitempo II (Menino antigo)” (1973)

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Ser
Carlos Drummond de Andrade

O filho que não fiz
hoje seria homem.
Ele corre na brisa,
sem carne, sem nome.

Às vezes o encontro
num encontro de nuvem.
Apoia em meu ombro
seu ombro nenhum.

Interrogo meu filho,
objeto de ar:
em que gruta ou concha
quedas abstrato?

Lá onde eu jazia,
responde-me o hálito,
não me percebeste,
contudo chamava-te

como ainda te chamo
(além, além do amor)
onde nada, tudo
aspira a criar-se.

O filho que não fiz
faz-se por si mesmo.

“Claro enigma” (1951)

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Para sempre
Carlos Drummond de Andrade

Por que Deus permite
que as mães vão-se embora?
Mãe não tem limite,
é tempo sem hora,
luz que não apaga
quando sopra o vento
e chuva desaba,
veludo escondido
na pele enrugada,
água pura, ar puro,
puro pensamento.
Morrer acontece
com o que é breve e passa
sem deixar vestígio.
Mãe, na sua graça,
é eternidade.
Por que Deus se lembra
— mistério profundo —
de tirá-la um dia?
Fosse eu Rei do Mundo,
baixava uma lei:
Mãe não morre nunca,
mãe ficará sempre
junto de seu filho
e ele, velho embora,
será pequenino
feito grão de milho

“Lição de coisas” (1962)

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Diante de uma criança
Carlos Drummond de Andrade

Como fazer feliz meu filho?
Não há receitas para tal.
Todo o saber, todo o meu brilho
de vaidoso intelectual

vacila ante a interrogação
gravada em mim, impressa no ar.
Bola, bombons, patinação
talvez bastem para encantar?

Imprevistas, fartas mesadas,
louvores, prêmios, complacências,
milhões de coisas desejadas,
concedidas sem reticências?

Liberdade alheia a limites,
perdão de erros, sem julgamento,
e dizer-lhe que estamos quites,
conforme a lei do esquecimento?

Submeter-me à sua vontade
sem ponderar, sem discutir?
Dar-lhe tudo aquilo que há
de entontecer um grão-vizir?

E se depois de tanto mimo
que o atraia, ele se sente
pobre, sem paz e sem arrimo,
alma vazia, amargamente?

Não é feliz. Mas que fazer
para consolo desta criança?
Como em seu íntimo acender
uma fagulha de confiança?

Eis que acode meu coração
e oferece, como uma flor,
a doçura desta lição:
dar a meu filho meu amor.

Pois o amor resgata a pobreza,
vence o tédio, ilumina o dia
e instaura em nossa natureza
a imperecível alegria.

“Farewell” (1996)

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Anedota búlgara
Carlos Drummond de Andrade

Era uma vez um czar naturalista
que caçava homens.
Quando lhe disseram que também se caçam borboletas e andorinhas,
ficou muito espantado
e achou uma barbaridade.

“Alguma poesia” (1930)


Primeiro dia
Carlos Drummond de Andrade

Resumo do Brasil no pátio de areia fina.
Sotaques e risos estranhos.
Continente de almas a descobrir
palmo a palmo, rosto a rosto,
número a número,
ferida a ferida.
Mal nos conhecemos, a palavra-mistério
na pergunta-sussurro
é pedrada na testa:
— Você gosta de foder?

“Boitempo III (Esquecer para lembrar)” (1979)

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Política literária
Carlos Drummond de Andrade

                                     A Manuel Bandeira

O poeta municipal
discute com o poeta estadual
qual deles é capaz de bater o poeta federal.

Enquanto isso o poeta federal
tira ouro do nariz.

“Antologia poética” (1962)

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O nome
Carlos Drummond de Andrade

Estão demolindo
o edifício em que não morei.
Tinha um nome
somente meu.

Meu, de mais ninguém
o edifício
não era meu.

Rápido passando
por sua fachada,
lia o nome
que era e é meu.

Cai o teto,
ruem paredes
internas.
Continua o nome
vibrando entre janelas
buracos.

Sigo a destruição
de meu edifício.
Amanhã o nome
letra por letra
se desletrará.

Ficará em mim
o nome que é meu?
Ficarei
para preservá-lo?

Amanhã o galo
cantará o fim
do que no edifício
e numa pessoa
cabe em um nome
e é mais do que nome?

“As impurezas do branco” (1973)

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Memória prévia
Carlos Drummond de Andrade

O menino pensativo
junto à água da Penha
mira o futuro
em que se refletirá na água da Penha
este instante imaturo.
 
Seu olhar parado é pleno
de coisas que passam
antes de passar
e ressuscitam
no tempo duplo
da exumação.
 
O que ele vê
vai existir na medida
em que nada existe de tocável
e por isso se chama
absoluto.
 
Viver é saudade
prévia.

“Boitempo II (Menino antigo)” (1973)

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Fuga
Carlos Drummond de Andrade

De repente você resolve: fugir.
Não sabe para onde nem como
nem por quê (no fundo você sabe
a razão de fugir; nasce com a gente).

É preciso FUGIR.
Sem dinheiro sem roupa sem destino.
Esta noite mesmo. Quando os outros
estiverem dormindo.
Ir a pé, de pés nus.
Calçar botina era acordar os gritos
que dormem na textura do soalho.

Levar pão e rosca para o dia.
Comida sobra em árvores
infinitas, do outro lado do projeto:
um verdor
eterno, frutescente (deve ser).
Tem à beira da estrada, numa venda.
O dono viu passar muitos meninos
que tinham necessidade de fugir 
e compreende.
Toda estrada: uma venda
para a fuga.

Fugir rumo da fuga
que não se sabe onde acaba
mas começa em você, ponta dos dedos.
Cabe pouco em duas algibeiras
e você não tem mais do que duas.
Canivete, lenço, figurinhas
de que não vai se separar
(custou tanto a juntar).
As mãos devem ser livres
para pessoas, trabalhos, onças
que virão.

Fugir agora ou nunca. Vão chorar?
vão esquecer você? ou vão lembrar-se?
(Lembrar é que é preciso,
compensa toda fuga.)
Ou vão amaldiçoá-lo, pais da Bíblia?
Você não vai saber. Você não volta
nunca.
(Essa palavra nunca, deliciosa.)
Se irão sofrer, tanto melhor.
Você não volta nunca nunca nunca.
E será esta noite, meia-noite
em ponto.

Você dormindo à meia-noite.

“Boitempo II (Menino antigo)” (1973)

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Primeiro conto
Carlos Drummond de Andrade

O menino ambicioso
não de poder ou glória
mas de soltar a coisa
oculta no seu peito
escreve no caderno
e vagamente conta
à maneira de sonho
sem sentido nem forma
aquilo que não sabe.

Ficou na folha a mancha
do tinteiro entornado,
mas tão esmaecida
que nem mancha o papel.

Quem decifra por baixo
a letra do menino,
agora que o homem sabe
dizer o que não mais
se oculta no seu peito?

“Boitempo I” (1968)

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Três no café
Carlos Drummond de Andrade

No café semideserto a mosca tenta
pousar no torrão de açúcar sobre o mármore.
Enxoto-a. Insiste. Enxoto-a.
A luz é triste, amarela, desanimada.
Somos dois à espera
de que o garçom, mecânico, nos sirva.
Olho para o companheiro até a altura da gravata.
Não ouso subir ao rosto marcado.
Fixo-me na corrente do relógio
presa ao colete; velhos tempos.
Pouco falamos. O som das xícaras,
quase uma conversa. Tão raro
assim nos encontrarmos frente
a frente mais que por minutos.
Mais raro ainda, na banalidade do café.
A mosca volta.
Já não a espanto. Queda entre nós,
partícipe de mútuo entendimento.
Então, é este o mesmo homem
de antes de eu nascer e de amanhã e sempre?
Curvado.
Seu olhar é cansaço de existência,
ou sinto já (nem pensar) a sua morte?
Este estar juntos no café,
não hei de esquecê-lo nunca, de tão seco
e desolado — os três
eu, ele, a mosca —:
imagens de mera circunstância
ou do obscuro
irreparável sentido de viver.

“Boitempo III (Esquecer para lembrar)” (1979)

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Amor e seu tempo
Carlos Drummond de Andrade

Amor é privilégio de maduros
estendidos na mais estreita cama,
que se torna a mais larga e mais relvosa,
roçando, em cada poro, o céu do corpo.

É isto, amor: o ganho não previsto,
o prêmio subterrâneo e coruscante,
leitura de relâmpago cifrado,
que, decifrado, nada mais existe

valendo a pena e o preço do terrestre,
salvo o minuto de ouro no relógio
minúsculo, vibrando no crepúsculo.

Amor é o que se aprende no limite,
depois de se arquivar toda a ciência
herdada, ouvida. Amor começa tarde.

“As impurezas do branco” (1973)

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O amor antigo
Carlos Drummond de Andrade

O amor antigo vive de si mesmo,
não de cultivo alheio ou de presença.
Nada exige nem pede. Nada espera,
mas do destino vão nega a sentença.

O amor antigo tem raízes fundas,
feitas de sofrimento e de beleza.
Por aquelas mergulha no infinito,
e por estas suplanta a natureza.

Se em toda parte o tempo desmorona
aquilo que foi grande e deslumbrante,
o antigo amor, porém, nunca fenece
e a cada dia surge mais amante.

Mais ardente, mas pobre de esperança.
Mais triste? Não. Ele venceu a dor,
e resplandece no seu canto obscuro,
tanto mais velho quanto mais amor.

“Amar se aprende amando” (1985)

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O filho
Carlos Drummond de Andrade

De quem, de quem o filho
de Sofia?

Do relojoeiro?
Do dentista?
Do primo Augusto?
Do promotor?
Do telegrafista?
Do cabo-comandante do destacamento?
De um dos praças?
Do padre apóstata?

Quem é o pai, quem é o pai
noturnamente encapuzado
(sequer tem rosto)
do filho anônimo de Sofia?

Nenhum deles visto rondando
de Sofia o muro solteiro,
nenhum abrindo de madrugada
a cancela rouca de Sofia.
O pai quem é?

Sofia semilouca de raça ilustre
vai contar quem dormiu
em seu quarto seco de solteirona
e secamente lhe fez o filho?
Vai inventar talvez um pai
que jamais a tenha tocado?

Já se apavoram os homens bons
com a denúncia?
Ninguém confessa ter conhecido
Sofia em fogo ou violentada,
Sofia pura,
Sofia aberta
ao prazer esperado amargamente?

Ou dormiram todos com Sofia
(o que é o mesmo que não dormir),
ninguém tem culpa,
ninguém é o pai?

Pai do menino é a cidade?
A loucura é pai do menino?
O menino nasceu do absurdo
propósito de nascer-se, escolheu
o ventre de Sofia como se escolhesse
vaso sem semente, apenas terra?

Sofia não responde. Ri baixinho,
acaricia o pinto do menino.

“Boitempo III (Esquecer para lembrar)” (1979)


A nova primavera
Carlos Drummond de Andrade

As tias viúvas vestem pesadas armaduras
de morte e gorgorão. Desde o pescoço
à inviolada ponta dos borzeguins, elas proclamam
rompimento com o século. E nada mais existe
senão a noite dos maridos estampada
em cada gesto de soberba solidão.

Assim as queremos para sempre novamente
virgens, reintegradas na pureza original.
Ai de quem boqueje: as tias são mulheres
sujeitas à lei terrestre do desejo,
e em noites brancas lutam corpo a corpo com duendes.

Uma tia, porém, olvida o mandamento
e casa-se outra vez. O raio na família.
Ela é toda jardim, é pura amendoeira
na alegre doação de outra virgindade.

A família decide: essa tia morreu.

“Boitempo III (Esquecer para lembrar)” (1979)

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Os tios e os primos
Carlos Drummond de Andrade

Tios chegam de Joanésia,
trazem primos crescidos e de colo,
três cargueiros pesados de canastras
e alforjes.
Apeiam, tropel-raio, em nossa casa,
batalhão invasor.
Pisam duro, de botas,
batem portas-trovão a toda hora,
soltam gargalhadas colossais
e comem comem comem aquele peito
de galinha que é meu de antiga lei.

Uma prima bonita? Que me importa.
Se rouba minha cama, é inimiga,
e humilhado vou dormir no chão.
Arrebatado meu lugar na mesa,
profanadas gavetas-santuário
de figurinhas, selos e segredos,
escorraçado no meu reino,
odeio os monstros da família.

Uma semana inteira eles passeiam
os pés em minha paz. Serão eternos?
Contrai-se a casa enorme: vira ovo
de gema irada e clara de ciúme.

Eis que um dia
arreiam-se cavalos. As canastras
descem as escadas com ribombo.
Os tios volumosos,
os primos estrondeantes se despedem
num triturar de abraços, prometendo
voltar ano que vem. Ah, uma bomba
espanhola, que eu sei pelo jornal,
um breve terremoto
afunde cavaleiros e cavalos
na descida da serra...
Meu Deus, peço o absurdo?
Mas poupe aquela prima
bonita (eu sinto agora)
que deixou no lençol a dobra do seu corpo.

Regresso à minha cama, perturbado. 

“Boitempo II (Menino antigo)” (1973)

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Retrato de família
Carlos Drummond de Andrade

Este retrato de família
está um tanto empoeirado.
Já não se vê no rosto do pai
quanto dinheiro ele ganhou.

Nas mãos dos tios não se percebem
as viagens que ambos fizeram.
A avó ficou lisa, amarela,
sem memórias da monarquia.

Os meninos, como estão mudados.
O rosto de Pedro é tranquilo,
usou os melhores sonhos.
E João não é mais mentiroso.

O jardim tornou-se fantástico.
As flores são placas cinzentas.
E a areia, sob pés extintos,
é um oceano de névoa.

No semicírculo das cadeiras
nota-se certo movimento.
As crianças trocam de lugar,
mas sem barulho: é um retrato.

Vinte anos é um grande tempo.
Modela qualquer imagem.
Se uma figura vai murchando,
outra, sorrindo, se propõe.

Esses estranhos assentados,
meus parentes? Não acredito.
São visitas se divertindo
numa sala que se abre pouco.

Ficaram traços da família
perdidos no jeito dos corpos.
Bastante para sugerir
que um corpo é cheio de surpresas.

A moldura deste retrato
em vão prende suas personagens.
Estão ali voluntariamente,
saberiam — se preciso — voar.

Poderiam sutilizar-se
no claro-escuro do salão,
ir morar no fundo dos móveis
ou no bolso de velhos coletes.

A casa tem muitas gavetas
e papéis, escadas compridas.
Quem sabe a malícia das coisas,
quando a matéria se aborrece?

O retrato não me responde.
ele me fita e se contempla
nos meus olhos empoeirados.
E no cristal se multiplicam

os parentes mortos e vivos.
Já não distingo os que se foram
dos que restaram. Percebo apenas
a estranha ideia de família

viajando através da carne.

“A rosa do povo” (1945)

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Gosto de terra
Carlos Drummond de Andrade

Na casa de Chiquito a mesa é farta,
mas Chiquito prefere comer terra.
Olho espantado para ele.
“Terra tem um gosto...” Me convida.
Recuso. “Gosto de quê?” “Ora, de terra,
de raiz, de profundo, de Japão.
Você vai mastigando, vai sentindo
o outro lado do mundo. Experimenta.
Só um torrãozinho.” Que fazer?
Insiste, mas resisto.
Prefiro comer nuvem, chego ao céu
melhor que o aeroplano.

“Boitempo III (Esquecer para lembrar)” (1979)

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O morto de Mênfis
Carlos Drummond de Andrade

A arma branca
e o alvo preto
não cabem
no soneto.

A mão
que move o fuzil
destrói o til
da canção.

Fica no
ar o som
do verbo matar.

Na varanda, sem cor,
os restos
do amor.

Nos vergéis da justiça
o sol faísca sobre
carniça.

O ódio e seu olho
telescópico
formam um demônio
ubíquo.

Seu nome, Legião.
Não
perdoa a vida.

Onde a vida brota
seu talo verde,
ele vai e corta.

Onde a vida fala
sua esperança,
ele crava a lança,

borda o epitáfio:
Aqui jaz,
desossada, a paz.

Na linha de cor,
na linha de dor,
na linha de horror

da caçada,
a mata é basculante
de banheiro; mais nada.

(Ou janela debruçada
sobre o carro.
Caça ou curra?)

O homem não se reconhece
no semelhante.
O homem anoitece.

O que mais o assusta,
o que mais o ofende
é a luz vasta.

O homem ignora
tudo que já sabe.
E não chora.

Sua intenção
é matar-se na morte
do irmão?

É negar o irmão
e seguir sozinho,
seco, surdo, torto
espinho?

As artes, os sonhos
dissipam-se no projeto
medonho.

Mas renascem. De lágrimas,
pânico, tortura,
emerge a vida pura,

em sua fraqueza
mais forte que a força,
mais força que a morte.

A raiz do homem
vai tentar de novo
o ato de amar.

Vai recomeçar,
Vai continuar.
Continuar.

O morto de Mênfis
continua a amar.
Ninguém mais o pode
matar.

“Versiprosa” (1967)

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Morte do leiteiro
Carlos Drummond de Andrade

                             A Cyro Novaes

Há pouco leite no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há muita sede no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há no país uma legenda,
que ladrão se mata com tiro.

Então o moço que é leiteiro
de madrugada com sua lata
sai correndo e distribuindo
leite bom para gente ruim.
Sua lata, suas garrafas
e seus sapatos de borracha
vão dizendo aos homens no sono
que alguém acordou cedinho
e veio do último subúrbio
trazer o leite mais frio
e mais alvo da melhor vaca
para todos criarem força
na luta brava da cidade.

Na mão a garrafa branca
não tem tempo de dizer
as coisas que lhe atribuo
nem o moço leiteiro ignaro,
morador na Rua Namur,
empregado do entreposto,
com 21 anos de idade,
sabe lá o que seja impulso
de humana compreensão.
E já que tem pressa, o corpo
vai deixando à beira das casas
uma apenas mercadoria.

E como a porta dos fundos
também escondesse gente
que aspira ao pouco de leite
disponível em nosso tempo,
avancemos por esse beco,
peguemos o corredor,
depositemos o litro...
Sem fazer barulho, é claro,
que barulho nada resolve.

Meu leiteiro tão sutil
de passo maneiro e leve,
antes desliza que marcha.
É certo que algum rumor
sempre se faz: passo errado,
vaso de flor no caminho,
cão latindo por princípio,
ou um gato quizilento.
E há sempre um senhor que acorda,
resmunga e torna a dormir.

Mas este acordou em pânico
(ladrões infestam o bairro),
não quis saber de mais nada.
O revólver da gaveta
saltou para sua mão.

Ladrão? se pega com tiro.
Os tiros na madrugada
liquidaram meu leiteiro.
Se era noivo, se era virgem,
se era alegre, se era bom,
não sei,
é tarde para saber.

Mas o homem perdeu o sono
de todo, e foge pra rua.
Meu Deus, matei um inocente.
Bala que mata gatuno
também serve pra furtar
a vida de nosso irmão.
Quem quiser que chame médico,
polícia não bota a mão
neste filho de meu pai.
Está salva a propriedade.
A noite geral prossegue,
a manhã custa a chegar,
mas o leiteiro
estatelado, ao relento,
perdeu a pressa que tinha.

Da garrafa estilhaçada,
no ladrilho já sereno
escorre uma coisa espessa
que é leite, sangue... não sei.
Por entre objetos confusos,
mal redimidos da noite,
duas cores se procuram,
suavemente se tocam,
amorosamente se enlaçam,
formando um terceiro tom
a que chamamos aurora.

“Antologia poética” (1962)

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O homem; as viagens
Carlos Drummond de Andrade

O homem, bicho da Terra tão pequeno
chateia-se na Terra
lugar de muita miséria e pouca diversão,
faz um foguete, uma cápsula, um módulo
toca para a Lua
pisa na Lua
planta bandeirola na Lua
experimenta a Lua
civiliza a Lua
humaniza a Lua.

Lua humanizada: tão igual à Terra.
O homem chateia-se na Lua.
Vamos para Marte — ordena a suas máquinas.
Elas obedecem, o homem desce em Marte
pisa em Marte
experimenta
coloniza
civiliza
humaniza Marte com engenho e arte.

Marte humanizado, que lugar quadrado.
Vamos a outra parte?
Claro — diz o engenho
sofisticado e dócil.
Vamos a Vênus.
O homem põe o pé em Vênus,
vê o visto — é isto?

idem
idem
idem.

O homem funde a cuca se não for a Júpiter
proclamar justiça junto com injustiça
repetir a fossa
repetir o inquieto
repetitório.

Outros planetas restam para outras colônias.
O espaço todo vira Terra-a-terra.
O homem chega ao Sol ou dá uma volta
só para tever?
Não-vê que ele inventa
roupa insiderável de viver no Sol.
Põe o pé e:
mas que chato é o Sol, falso touro
espanhol domado.

Restam outros sistemas fora
do solar a col-
onizar.
Ao acabarem todos
só resta ao homem
(estará equipado?)
a dificílima dangerosíssima viagem
de si a si mesmo:
pôr o pé no chão
do seu coração
experimentar
colonizar
civilizar
humanizar
o homem
descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas
a perene, insuspeitada alegria
de con-viver.

“As impurezas do branco” (1973)

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Sociedade
Carlos Drummond de Andrade

O homem disse para o amigo:
— Breve irei a tua casa
e levarei minha mulher.

O amigo enfeitou a casa
e quando o homem chegou com a mulher,
soltou uma dúzia de foguetes.

O homem comeu e bebeu.
A mulher bebeu e cantou.
Os dois dançaram.
O amigo estava muito satisfeito.

Quando foi hora de sair,
o amigo disse para o homem:
— Breve irei a tua casa.
E apertou a mão dos dois.

No caminho o homem resmunga:
— Ora essa, era o que faltava.
E a mulher ajunta: — Que idiota.

— A casa é um ninho de pulgas.
— Reparaste o bife queimado?
O piano ruim e a comida pouca.

E todas as quintas-feiras
eles voltam à casa do amigo
que ainda não pôde retribuir a visita.

“Alguma poesia” (1930)

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Resistência
Carlos Drummond de Andrade

O tísico
não tosse.
Não precisa tossir
para provar que continua tísico.
Rosto esverdinhado, barba por fazer,
pescoço envolto em lã xadrez,
roupa de brim dançante no esqueleto,
o tísico da cidade quando morre?

Cumprimentado de longe,
ninguém lhe aperta a mão.
Alguém já viu micróbios passeando
em seus ossudos dedos pré-defuntos.

Sua voz mal ouvida é som de longe, de onde
ninguém volta, ou só voltou
em véus de assombração. Terá morrido
o tísico, e transita,
pausado, de brim cáqui, em dia azul?

Morre de congestão o velho indagador,
de ataque morre súbito o fortudo
professor de ginástica. Morrem outros
de 20 anos, rapazes não marcados.
O tísico, vai tossindo, enterra todos.

“Boitempo III (Esquecer para lembrar)” (1979)

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Matar
Carlos Drummond de Andrade

Aprendo muito cedo
a arte de matar.
A formiga se presta
a meu aprendizado.
Tão simples, triturá-la
no trêmulo caminho.
Agora duas. Três.
Milhares de formigas
morrendo, ressuscitam
para morrer de novo
no ofício a ser cumprido.
Intercepto o carreiro,
esmago o formigueiro,
instauro, deus, o pânico,
e sem fervor agrícola,
sem divertir-me, seco,
exercito o poder
de sumário extermínio,
até que a ferroada
na perna me revolta
contra o iníquo protesto
da que não quis morrer
ou cobra sua morte
ferindo a divindade.
A dor insuportável
faz-me esquecer o rito
da vingança devida
já nem me acode o invento
de supermortes para
imolar ao infinito 
imoladas formigas.
Qual outra pena, máxima,
poderia infligir-lhes,
se eu mesmo peno e pulo
nesse queimar danado?
Um deus infante chora
sua impotência. Chora
a traição da formiga
à sorte das formigas
traçada pelos deuses.

“Boitempo II (Menino antigo)” (1973)


O eco
Carlos Drummond de Andrade

A fazenda fica perto da cidade.
Entre a fazenda e a cidade
o morro
a farpa de arame
a porteira o eco.

O eco é um ser soturno, acorrentado
na espessura da mata.
E profundamente silencioso
em seu mistério não desafiado.

Passo, não resisto a provocá-lo.
O eco me repete ou me responde?
Forte em monossílabos,
grita ulula blasfema
brinca chalaceia diz imoralidades,
finais de coisas doidas que lhe digo,
e nunca é alegre mesmo quando brinca.

É o último selvagem sobre a Terra.
Todos os índios foram exterminados ou fugiram.
Restou o eco, prisioneiro
de minha voz.

De tanto se entrevar no mato,
já nem sei se é mais índio ou vegetal,
ou pedra, na ânsia da passagem
de um som do mundo em boca de menino,

som libertador
som moleque
som perverso,
qualquer som de vida despertada.

O eco, no caminho
entre a cidade e a fazenda,
é no fundo de mim que me responde.

“Boitempo III (Esquecer para lembrar)” (1979)

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Comunhão
Carlos Drummond de Andrade

Todos os meus mortos estavam de pé, em círculo,
eu no centro.
Nenhum tinha rosto. Eram reconhecíveis
pela expressão corporal e pelo que diziam
no silêncio de suas roupas além da moda
e de tecidos; roupas não anunciadas
nem vendidas.
Nenhum tinha rosto. O que diziam
escusava resposta,
ficava, parado, suspenso no salão, objeto
denso, tranquilo.
Notei um lugar vazio na roda.
Lentamente fui ocupá-lo.
Surgiram todos os rostos, iluminados.

“A falta que ama” (1968)

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Os mortos
Carlos Drummond de Andrade

Na ambígua intimidade
que nos concedem
podemos andar nus
diante de seus retratos.
Não reprovam nem sorriem
como se neles a nudez fosse maior.

“Lição de coisas” (1962)

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Eterno
Carlos Drummond de Andrade

E como ficou chato ser moderno.
Agora serei eterno.

Eterno! Eterno!
O Padre Eterno,
a vida eterna,
o fogo eterno.

(Le silence éternel de ces espaces infinis m’effraie.)

— O que é eterno, Yayá Lindinha?
— Ingrato! é o amor que te tenho.

Eternalidade eternite eternaltivamente
              eternuávamos
                            eternissíssimo
A cada instante se criam novas categorias do eterno.

Eterna é a flor que se fana
se soube florir
é o menino recém-nascido
antes que lhe deem nome
e lhe comuniquem o sentimento do efêmero
é o gesto de enlaçar e beijar
na visita do amor às almas
eterno é tudo aquilo que vive uma fração de segundo
mas com tamanha intensidade que se petrifica e nenhuma força o resgata
é minha mãe em mim que a estou pensando
de tanto que a perdi de não pensá-la
é o que se pensa em nós se estamos loucos
é tudo que passou, porque passou
é tudo que não passa, pois não houve
eternas as palavras, eternos os pensamentos; e passageiras as obras.
Eterno, mas até quando? é esse marulho em nós de um mar profundo.
Naufragamos sem praia; e na solidão dos botos afundamos.
É tentação a vertigem; e também a pirueta dos ébrios.

Eternos! Eternos, miseravelmente.
O relógio no pulso é nosso confidente.

Mas eu não quero ser senão eterno.
Que os séculos apodreçam e não reste mais do que uma essência
ou nem isso.
E que eu desapareça mas fique este chão varrido onde pousou uma sombra
e que não fique o chão nem fique a sombra
mas que a precisão urgente de ser eterno boie como uma esponja no caos
e entre oceanos de nada
gere um ritmo.

“Fazendeiro do ar” (1954)

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Palavras no mar
Carlos Drummond de Andrade

Escrita nas ondas
a palavra Encanto
balança os náufragos,
embala os suicidas.
Lá dentro, os navios
são algas e pedras
em total olvido.
Há também tesouros
que se derramaram
e cartas de amor
circulando frias
por entre medusas.
Verdes solidões,
merencórios prantos,
queixumes de outrora,
tudo passa rápido
e os peixes devoram
e a memória apaga
e somente um palor
de lua embruxada
fica pervagando
no mar condenado.
O último hipocampo
deixa-se prender
num receptáculo
de coral e lágrimas
— do Oceano Atlântico
ou de tua boca,
triste por acaso,
por demais amarga.

A palavra Encanto
recolhe-se ao livro,
entre mil palavras
inertes à espera.

“José” (1942)

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O outro
Carlos Drummond de Andrade

Como decifrar pictogramas de há dez mil anos
se nem sei decifrar
minha escrita interior?

Interrogo signos dúbios
e suas variações calidoscópicas
a cada segundo de observação.

A verdade essencial
é o desconhecido que me habita
e a cada amanhecer me dá um soco.

Por ele sou também observado
com ironia, desprezo, incompreensão.
E assim vivemos, se ao confronto se chama viver,
unidos, impossibilitados de desligamento,
acomodados, adversos,
roídos de infernal curiosidade.

“Corpo” (1984)

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Inquérito
Carlos Drummond de Andrade

Pergunta às árvores da rua
que notícia têm desse dia
filtrado em betume da noite;
se por acaso pressentiram
nas aragens conversadeiras,
ágil correio do universo,
um calar mais informativo
que toda grave confissão.

Pergunta aos pássaros, cativos
do sol e do espaço, que viram
ou bicaram de mais estranho,
seja na pele das estradas
seja entre volumes suspensos
nas prateleiras do ar, ou mesmo
sobre a palma da mão de velhos
profissionais de solidão.

Pergunta às coisas, impregnadas
de sono que precede a vida
e a consuma, sem que a vigília
intermédia as liberte e faça
conhecedoras de si mesmas,
que prisma, que diamante fluido
concentra mil fogos humanos
onde era ruga e cinza e não.

Pergunta aos hortos que segredo
de clepsidra, areia e carocha
se foi desenrolando, lento,
no calado rumo do infante
a divagar por entre símbolos
de símbolos outros, primeiros,
e tão acessíveis aos pobres
como a breve casca do pão.

Pergunta ao que, não sendo, resta
perfilado à porta do tempo,
aguardando vez de possível;
pergunta ao vago, sem propósito
de captar maiores certezas
além da vaporosa calma
que uma presença imaginária
dá aos quartos do coração.

A ti mesmo, nada perguntes.

“A vida passada a limpo” (1958)

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Casa e conduta
Carlos Drummond de Andrade

As partes claras
e as partes negras
do casarão
cortam no meio
meu coração.

Sou um ou outro
móbil caráter
conforme a luz
que me percorre
ou se reduz.

Anjo-esplendor,
mínimo crápula,
não sou quem manda
em mim no escuro
ou na varanda.

Serei os dois
no exato instante
em que abro a porta,
ainda hesitantes,
a porta e eu?

O casarão
de lume e sombra
é que decide
meu julgamento
na opinião
dos grandes, sem
apelação
do eu confuso
no indefinível
entardecer.

“Boitempo III (Esquecer para lembrar)” (1979)

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Mundo grande
Carlos Drummond de Andrade

Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto tanto de me contar.
Por isso me dispo,
por isso me grito,
por isso frequento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:
preciso de todos.

Sim, meu coração é muito pequeno.
Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.
A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.
Mas também a rua não cabe todos os homens.
A rua é menor que o mundo.
O mundo é grande.

Tu sabes como é grande o mundo.
Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão.
Viste as diferentes cores dos homens,
as diferentes dores dos homens,
sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso
num só peito de homem... sem que ele estale.

Fecha os olhos e esquece.
Escuta a água nos vidros,
tão calma. Não anuncia nada.
Entretanto escorre nas mãos,
tão calma! vai inundando tudo...
Renascerão as cidades submersas?
Os homens submersos — voltarão?

Meu coração não sabe.
Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.
Só agora descubro
como é triste ignorar certas coisas.
(Na solidão de indivíduo
desaprendi a linguagem
com que homens se comunicam.)

Outrora escutei os anjos,
as sonatas, os poemas, as confissões patéticas.
Nunca escutei voz de gente.
Em verdade sou muito pobre.

Outrora viajei
países imaginários, fáceis de habitar,
ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e convocando ao suicídio.
Meus amigos foram às ilhas.
Ilhas perdem o homem.
Entretanto alguns se salvaram e
trouxeram a notícia
de que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias,
entre o fogo e o amor.

Então, meu coração também pode crescer.
Entre o amor e o fogo,
entre a vida e o fogo,
meu coração cresce dez metros e explode.
— Ó vida futura! Nós te criaremos.

“Sentimento do mundo” (1940)

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Inscrições rupestres no Carmo
Carlos Drummond de Andrade

Os desenhos da Lapa, tão antigos
que nenhum bisavô os viu traçar,
esses riscos na pedra, indecifráveis,
palavras sem palavra, mas falantes
ao surdo ouvido indiferente de hoje,
esse abafado canto das origens
que o professor não sabe traduzir
— à noite (cismo agora) se destacam
da laje fria, espalham-se no campo,
São notícias de índio, religiões
ligando mente e abismo, vida solta
em fantásticos ritos amorosos,
de sangue, de colheita, em meio a deuses
nativos do sertão do mato-dentro.
Cada linha desdobra-se: arabescos
sonoros, e uma festa como nunca
mais se veria em gleba conquistada
por meus antepassados cobiçosos
de ouro, gado, café, recobre a terra
devolvida a seus donos naturais.
Não o boi: o tapir, nem o sitiante
nem porteira-limite nem papéis
marcando posse, prazo, juro, herança.
É um tempo antes do tempo de relógio,
e tudo se recusa a ser História
e a derivar em provas escolares.
Lá vou eu, carregando minha pedra,
meu lápis, minha turva tabuada,
rumo à aula de insípidos ditados,
cismando nesses mágicos desenhos
que bem desenharia, fosse índio.

“Boitempo III (Esquecer para lembrar)” (1979)


Quadrilha
Carlos Drummond de Andrade

João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.

“Alguma poesia” (1930)

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José
Carlos Drummond de Andrade

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?

E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio — e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse,
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho do mato,
sem teogonia
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?

“Antologia poética” (1962)

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A flor e a náusea
Carlos Drummond de Andrade

Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjoo?
Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.

Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.
Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.

É feia. Mas é uma flora. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

“Antologia poética” (1962)

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Poema de sete faces
Carlos Drummond de Andrade

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.

“Alguma poesia” (1930)

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Os dois vigários
Carlos Drummond de Andrade

Há cinquenta anos passados,
Padre Olímpio bendizia,
Padre Júlio fornicava.
E Padre Olímpio advertia
e Padre Júlio triscava.
Padre Júlio excomungava
quem se erguesse a censurá-lo
e Padre Olímpio em seu canto
antes de cantar o galo
pedia a Deus pelo homem.
Padre Júlio em seu jardim
colhia flor e mulher
num contentamento imundo.
Padre Olímpio suspirava,
Padre Júlio blasfemava.
Padre Olímpio, sem leitura
latina, sem ironia,
e Padre Júlio, criatura
de Ovídio, ria, atacava
a chã fortaleza do outro.
Padre Olímpio silenciava.
Padre Júlio perorava,
rascante e politiqueiro.
Padre Olímpio se omitia
e Padre Júlio raptava
mulher e filhos do próximo,
outros filhos aditava.
Padre Júlio responsava
os mortos pedindo contas
do mal que apenas pensaram
e desmontava filáucias
de altos brasões esboroados
entre moscas defuntórias.
Padre Olímpio respeitava
as classes depois de extintos
os sopros dos mais distintos
festeiros e imperadores.
Se Padre Olímpio perdoava,
Padre Júlio não cedia.
Padre Júlio foi ganhando
com o tempo cara diabólica
e em sua púrpura calva,
em seu mento proeminente,
ardiam em brasas. E Padre
Olímpio se desolava
de ver um padre demente
e o Senhor atraiçoado.
E Padre Júlio oficiava
como oficia um demônio
sem que o escândalo esgarçasse
a santidade do ofício.
Padre Olímpio se doía,
muito se mortificava
que nenhum anjo surgisse
a consolá-lo em segredo:
“Olímpio, se é tudo um jogo
do céu com a terra, o desfecho
dorme entre véus de justiça.”
Padre Olímpio encanecia
e em sua estrita piedade,
em seu manso pastoreio,
não via, não discernia
a celeste preferência.
Seria por Padre Júlio?
Valorizava-se o inferno?
E sentindo-se culpado
de conceber turvamente
o augustíssimo pecado
atribuído ao Padre Eterno,
sofre — rezando sem tino
todo se penitenciava.
Em suas costas botava
os crimes de Padre Júlio,
refugando-lhe os prazeres.
Emagrecia, minguava,
sem ganhar forma de santo.
Seu corpo se recolhia
à própria sombra, no solo.
Padre Júlio coruscava,
ria, inflava, apostrofava.
Um pecava, outro pagava.
O povo ia desertando
a lição de Padre Olímpio.
Muito melhor escutava
de Padre Júlio as bocagens.
Dois raios, na mesma noite,
os dois padres fulminaram.
Padre Olímpio, Padre Júlio
iguaizinhos se tornaram:
onde o vício, onde a virtude,
ninguém mais o demarcava.
Enterrados lado a lado
irmanados confundidos,
dos dois padres consumidos
juliolímpio em terra neutra
uma flor nasce monótona
que não se sabe até hoje
(cinquenta anos se passaram)
se é de compaixão divina
ou divina indiferença.

“Lição de coisas” (1962)

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A torre sem degraus
Carlos Drummond de Andrade

No térreo se arrastam possuidores de coisas recoisificadas.
No 1º andar vivem depositários de pequenas convicções, mirando-as, remirando-as com lentes de contato.
No 2º andar vivem negadores de pequenas convicções, pequeninos eles mesmos.
No 3º andar — tlás tlás — a noite cria morcegos.
No 4º, no 7º, vivem amorosos sem amor, desamorando.
No 5º, alguém semeou de pregos dentes de fera cacos de espelho a pista encerada para o baile de debutantes de 1848.
No 6º, rumina-se política na certeza-esperança de que a ordem precisa mudar deve mudar há de mudar, contanto que não se mova um alfinete para isso.
No 8º, ao abandono, 255 cartas registradas não abertas selam o mistério da expedição dizimada por índios Anfika.
No 9º, cochilam filósofos observados por apoftegmas que não chegam a conclusão plausível.
No 10º, o rei instala seu gabinete secreto e esconde a coroa de crisópsis na terrina.
No 11º, moram (namoram?) virgens contidas em cinto de castidades.
No 12º, o aquário de peixes fosforescentes ilumina do teto a poltrona de um cego de nascença.
Atenção, 13º. Do 24º baixará às 23h um pelotão para ocupar-te e flitar a bomba suja, de que te dizes depositário.
No 14º, mora o voluntário degolado de todas as guerras em perspectiva, disposto a matar e a morrer em cinco continentes.
No 15º, o último leitor de Dante, o último de Cervantes, o último de Musil, o último do Diário Oficial dizem adeus à palavra impressa.
No 16º, agricultores protestam contra a fusão de sementes que faz nascerem cereais invertidos e o milho produzir crianças.
No 17º, preparam-se orações de sapiência, tratados internacionais, bulas de antibióticos.
Não se sabe o que aconteceu ao 18º, suprimido da Torre.
No 19º, profetas do Antigo Testamento conferem profecias no computador analógico.
No 20º, Cacex Otan Emfa Joc Juc Fronap fbi Usaid Cafesp Alalc Eximbank trocam de letras, viram Xfp, Jjs, IxxU e que sei mais.
No 22º, banqueiros incineram duplicatas vencidas, e das cinzas nascem novas duplicatas.
No 23º, celebra-se o rito do boi manso, que de tão manso ganhou biografia e auréola.
No 24º, vide 13º.
No 25º, que fazes tu, morcego do 3º? que fazes tu, miss adormecida na passarela?
No 26º, nossas sombras despregadas dos corpos passeiam devagar, cumprimentando-se.
O 27º é uma clínica de nervosos dirigida por general-médico reformado, e em que aos sábados todos se curam para adoecer de novo na segunda-feira.
Do 28º saem boatos de revolução e cruzam com outros de contrarrevolução.
Impróprio a qualquer uso que não seja o prazer, o 29º foi declarado inabitável.
Excesso de lotação no 30º: moradores só podem usar um olho, uma perna, meias palavras.
No 31º, a Lei afia seu arsenal de espadas inofensivas, e magistrados cobrem-se com cinzas de ovelhas sacrificadas.
No 32º, a Guerra dos 100 Anos continua objeto de análise acuradíssima.
No 33º, um homem pede para ser crucificado e não lhe prestam atenção.
No 34º, um ladrão sem ter o que roubar rouba o seu próprio relógio.
No 35º, queixam-se da monotonia deste poema e esquecem-se da monotonia da Torre e das queixas.
Um mosquito é, no 36º, único sobrevivente do que foi outrora residência movimentada com jantares óperas pavões.
No 37º, a canção
                     Fiorela amarlina
                     lousileno i flanura
                     meleglírio omoldana
                     plunigiário olanin.
No 38º, o parlamento sem voz, admitido por todos os regimes, exercita-se na mímica de orações.
No 39º, a celebração ecumênica dos anjos da luz e dos anjos da treva, sob a presidência de um meirinho surdo.
No 40º, só há uma porta uma porta uma porta.
Que se abre para o 41º, deixando passar esqueletos algemados e conduzidos por fiscais do Imposto de Consciência.
No 42º, goteiras formam um lago onde boiam ninfeias, e ninfetas executam bailados quentes.
No 43º, no 44º, no... (continua indefinidamente).

“A falta que ama” (1968)

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Em face dos últimos acontecimentos
Carlos Drummond de Andrade

Oh! sejamos pornográficos
(docemente pornográficos).
Por que seremos mais castos
que o nosso avô português?

Oh! sejamos navegantes,
bandeirantes e guerreiros,
sejamos tudo que quiserem,
sobretudo pornográficos.

A tarde pode ser triste
e as mulheres podem doer
como dói um soco no olho
(pornográficos, pornográficos).

Teus amigos estão sorrindo
de tua última resolução.
Pensavam que o suicídio
fosse a última resolução.
Não compreendem, coitados,
que o melhor é ser pornográfico.

Propõe isso a teu vizinho,
ao condutor do teu bonde,
a todas as criaturas
que são inúteis e existem,
propõe ao homem de óculos
e à mulher da trouxa de roupa.

Dize a todos: Meus irmãos,
não quereis ser pornográficos?

“Brejo das almas” (1934)

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Passagem do ano
Carlos Drummond de Andrade

O último dia do ano
não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
e novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
farás viagens e tantas celebrações
de aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com sinfonia e coral,
que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor,
os irreparáveis uivos
do lobo, na solidão.

O último dia do tempo
não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
uma mulher e seu pé,
um corpo e sua memória,
um olho e seu brilho,
uma voz e seu eco,
e quem sabe até se Deus...

Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras espreitam a morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão
esperas amanhecer.

O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
o recurso da bola colorida,
o recurso de Kant e da poesia,
todos eles... e nenhum resolve.

Surge a manhã de um novo ano.

As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.

“A rosa do povo” (1945)

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Ausência
Carlos Drummond de Andrade

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.

“Corpo” (1984)

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Confissão
Carlos Drummond de Andrade

Não amei bastante meu semelhante,
não catei o verme nem curei a sarna.
Só proferi algumas palavras,
melodiosas, tarde, ao voltar da festa.

Dei sem dar e beijei sem beijo.
(Cego é talvez quem esconde os olhos
embaixo do catre.) E na meia-luz
tesouros fanam-se, os mais excelentes.

Do que restou, como compor um homem
e tudo o que ele implica de suave,
de concordâncias vegetais, murmúrios
de riso, entrega, amor e piedade?

Não amei bastante sequer a mim mesmo,
contudo próximo. Não amei ninguém.
Salvo aquele pássaro — vinha azul e doido —
que se esfacelou na asa do avião.

“Claro enigma” (1951)


“Por que morrer, se amamos?”
Os 50 melhores poemas de Carlos Drummond de Andrade
Org. Emmanuel Mirdad (2022)

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