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Quinze passagens do livro de ensaios Garotas brancas, de Hilton Als

Hilton Als (foto: Ali Smith)


“Enfrentamos esses rostos tantas vezes: mulheres brancas, a quem nada havia sido negado na maior parte de suas vidas, sentindo-se amarguradas por mim e SL porque não podiam ser parte de ‘nós’, mas que continuavam a se sentir atraídas por nós para além da razão, já que viviam para se frustrarem; caras brancos que queriam me foder por esporte e que se ressentiam da presença de SL porque ele era visto como a personificação da minha consciência, que não podia ser contaminada; mulheres negras que nos chamavam de aberrações porque, de alguma forma, representávamos a relação distorcida delas com seus próprios corpos e com outras mulheres negras; ambiciosos artistas negros do sexo masculino que se ressentiam de nossa presença, em grande parte porque SL e eu não seguíamos as regras que eles seguiam em sua busca pelo sucesso (...) Ficávamos tristes quando todos aqueles negros não conseguiam nos olhar nos olhos nas festas. Mas entendíamos. Nenhuma narrativa nos precedeu. (...) não éramos a história negra padrão, ou a história negra usual. Não nos sentíamos isolados por sermos negros. Não queríamos nos juntar ao mundo maior por meio da violência ou da manipulação. Não estávamos interessados na fábula sentimental associada ao corpo do macho negro a esta altura: a encarnação do isolamento. Tínhamos um ao outro, outro tipo de história que vale a pena contar.”


“(...) Talvez ele gostasse do fato de que, naquela época, eu mais parecesse uma sapatona da velha guarda, com meu pescoço grosso, brincos de ouro pequenos, sem maquiagem e cabelo cortado curto e raspado nas laterais. Além disso, ele sabia — e ria disso — que eu era um homem gay que não chupava pau branco: me recusava, alegando que o mundo já os chupava muito bem, obrigado. Com certeza ele gostava do fato de eu vir de uma enorme família de mulheres. Ele gostava mesmo era de ouvir a história da primeira geração de meus pais, norte-americanos originários das Índias Ocidentais, que não foram criados para serem negros profissionais”


“É preciso muita coragem para não fazer nada. Você se aproveita da tolerância do mundo para com a sua passividade e o seu interesse em nada. Você não tem uma estação como a primavera para o fazer renascer, porque nada foi plantado. As pessoas o deixam em paz, porque você é a cara daquilo que elas mais temem: falhar, não se importar, não fazer nada. Com tamanha liberdade, você tem tempo, então, para enfrentar o que a maioria dos artistas nunca enfrenta, e que eu pude enfrentar, com todo esse tempo em minhas mãos: quão pouco eu queria ser vista, mesmo quando ansiava por ser vista.”


“‘Estamos fazendo uma pesquisa na comunidade e gostaríamos de fazer algumas perguntas a você’, declara a assistente social branca assim que entra no Opal’s. Juke e Opal estão mais do que acostumados com essa linha de investigação, que presume que pessoas como eles estão sempre disponíveis para interrogatórios — servidores da causa liberal. ‘Você poderia me dizer se já foi viciado em drogas?’, a mulher pergunta a Juke. (...) [Richard] Pryor-no-papel-de-Juke responde instantaneamente. ‘Sim, fui viciado’, diz ele. ‘Estou viciado agora mesmo — mas não anote aí não, cara, seja legal, não é coisa pública. Quer dizer, o que eu vivo é privado.’ Ele é incapaz de dizer ‘foda-se’ como sua primeira resposta, ou mesmo seu primeiro pensamento. Ser negro ensinou-lhe a permitir que os brancos ajam como inocentes. Para os negros, estar perto de brancos é às vezes como cuidar de bebês de quem você não gosta, bebês que vivem vomitando em você, mas a quem você não pode punir, porque são bebês. No fim, você direciona essa raiva para si mesmo, já que ela não tem para onde ir.”


“(...) SL via naquela merda o que ela realmente era: uma merda. Gente simplesmente deplorável e egocêntrica tentando conseguir mais: mais tempo no palco, mais tempo na TV, mais tempo com os editores. O barulho dos marginais e dos marginalizados ia aumentando porque, em primeiro lugar, eles acreditavam no que os brancos tinham a dizer sobre eles. O fato de eles estarem se insurgindo diante de uma plateia majoritariamente branca — os guardiões estavam abrindo as portas, mas só um pouquinho — significava exatamente isso. Por um tempo, me recusei a aceitar o ponto de vista de SL. Tudo o que ouvi naquela revolta foi que estávamos sozinhos até que um ou dois de nós não estivesse. Mas esse era o meu problema. Como eu disse antes, por muito tempo eu achava que toda escritora negra deveria ser minha irmã, e todo artista negro gay deveria ser meu irmão. O mundo negro não era meu gêmeo? SL queria morrer ao me ver tentar tornar verdadeiros esses sentimentos por outras pessoas. (SL era, na verdade, um europeu, e não tinha sentimentos tão escancarados por ninguém, muito menos pelos negros. Em todo caso, SL achava que os brancos sempre foram mais gentis com ele do que a maioria dos negros em sua vida. Ao ouvir isso, tive vontade de perguntar: será que não fui mais legal com ele do que qualquer mulher branca? Mas não perguntei. Eu estava sempre tão desesperado por sua aprovação que temia o tempo todo contradizê-lo, mas às vezes sentia raiva por não fazer isso, e às vezes havia raiva da parte dele também quando eu assim fazia. Mas como éramos negros, nenhum de nós conseguiria admitir nada disso.)”


“(...) voltando à ideia de ser observado — principalmente — por editores brancos e de ser linchado pelos olhares. O que quero dizer é que tanto cuidado, tanto cuidado eu tomo para simplesmente não assustar os brancos com a minha existência, mas é como se eles também não quisessem lidar com esse cuidado. Isso faz com que me vejam como um nigger ainda mais complicado. Eu conheço muitas, muitas pessoas negras que exercitam sensibilidade semelhante no que diz respeito aos brancos, qualquer coisa para evitar serem linchadas pela língua ou pelos olhos deles. Algumas pessoas negras querem te linchar também. Geralmente elas são competitivas e estúpidas, gente que acredita que, se trabalhar duro e se vender, pode ser como a maioria dos brancos e odiar os niggers ainda mais do que os brancos odeiam, já que os ‘conhecem’. Essa gente negra é, de certa forma, pior do que os brancos, pois imaginam ser a classe ‘linchada só às vezes’, em oposição a classe sempre linchada. O fato é que, ainda que você seja só metade negro, e homem, nos Estados Unidos, as cabeças mortas penduradas nas árvores nestas fotos, e os olhos mortos ou os esgares que as acompanham, não é muito difícil imaginar como isso se aplica também a sua vida. Você pode sentir isso toda vez que atravessa a rua para evitar preocupar demais uma mulher branca, para evitar falsas acusações de estupro; ou toda vez que seu carro quebra em qualquer lugar dos Estados Unidos e você vê placas falando de Jesus e pessoas brancas por todo lado, e seu coração começa a disparar, sua pele fica melada do suor que gruda na carne, assim como Brock Peters na versão cinematográfica de O sol é para todos, em que ele está sendo julgado por talvez ‘se meter’ com uma mulher branca; é a palavra dela contra a dele, mas a palavra dela tinha peso, como o peso morto de um cadáver linchado.”


“O fascínio de [André Leon] Talley decorre, em parte, de ele ser o único. Na mídia ou nas artes, o único geralmente é homem, sempre meio ‘de cor’ e quase sempre gay. Sua carreira se baseia, em vários graus, no talento, na raça, no carisma não sexual e em uma associação com pessoas no poder. Ao que tudo indica, o ‘único’ é uma pessoa que tem poder, mas não o poder. Ele não é apenas definido, mas também controlado por um título profissional, pois acredita na importância desse título e na força com que é associado a ele. Se for negro, um símbolo da ansiedade branca sobre a presença dele no mundo mais amplo, e da culpa que tal ansiedade provoca. Outras ansiedades o preocupam: ansiedades com salário e prestigio, e com o fato de a opinião de outra pessoa ser afinal mais valorizada do que a dele. Ele provoca muitas emoções em seus colegas, mas raramente amizade e lealdade está entre elas, já que ele não acredita em amizade sem interesse naquilo a que seu cargo pode servir.”


Hilton Als (foto: Thea Goldberg)


“(...) a propensão dos Estados Unidos para definir raça e subclasse por meio de uma linguagem de ódio e atos de ódio é bem conhecida e muito discutida. O que não se discute é o que interessa aos editores, em grande parte brancos (que constituem o que chamamos de ‘indústria editorial’), ao contratarem uma pessoa negra para descrever a vida de um nigger. Para eles, um escritor negro é alguém que pode simplificar o que é endêmico para ele ou ela como ser humano — a raça — e ampliá-lo a proporções de desenho animado, tornando assim a situação do ‘neguinho’ ‘clara’ para um público branco. Para ser justo, nenhuma dessas não ideias ofensivas foi colocada a mim quando me sugeriram esta presente colaboração; mas minha inclusão neste livro, como a voz lírica e quase a-histórica, teria sido sugerida se eu não fosse negro? Ou serei ‘lírico’ e a-histórico porque sou negro? Não vou adotar aqui o tom de mea-culpa, já que concordei em fornecer o que sempre considerei uma trilha sonora para esses filmes, que vistos juntos formam uma espécie de filme-catástrofe campeão de bilheteria.”


“Claro que uma grande diferença entre as pessoas documentadas nestas fotos e eu é o fato de eu não estar morto, nem ter sido linchado, escaldado, queimado, açoitado ou apedrejado. Mas fui olhado, observado e vi o mal nos olhos das pessoas — um medo que pode me levar a ser um nigger morto, como os que vejo aqui. E foram essas fotos que me fizeram entender, finalmente, o que significa a palavra ‘nigger’ e por que as pessoas a usaram, e a forma como a uso aqui, agora: como um linchamento metafórico, antes do linchamento real. Nigger é uma morte lenta. E essa é a morte lenta que sinto o tempo todo, como um homem negro. (...) Na minha vida de habitante da cidade, atravessei ruas escuras de noite para não assustar a mulher branca que caminhava à minha frente. Deliberadamente, deixei de entrar atrás de um vizinho que abria a porta do nosso prédio, para que ele não sentisse o que os negros o fazem sentir: roubado, violado de alguma forma. Fui preso a caminho da escola, acusado de matar aulas. Uma vez, quando eu saía de um restaurante com um amigo, quatro ou cinco policiais me prensaram contra um muro, apontaram armas para a minha cabeça, pois eu era parecido com outra pessoa. Não se deve confundir isso com a vez em que eu estava sentado com o mesmo amigo no carro dele, conversando, eu no banco de trás, inclinado sobre o ombro do meu amigo, e de repente o carro foi inundado por luzes brancas, luzes da polícia, as luzes no capô dos carros também ligadas, e cinco ou seis policiais, com as armas sacadas dos coldres e apontadas para mim, ordenaram que eu saísse do carro. ‘Nós pensamos que você fosse um ladrão de carros’, eles disseram, enquanto eu permanecia parado sob aquela luz branca que sempre me lembra as luzes das estreias de filmes, em que as pessoas parecem sombras bem-vestidas quando as luzes as atingem, saindo de seus carros, sabe como? (...) É isso que me faz sentir minha niggeritude, eu acho: ser observado. Eu vou a festas com brancos. Invariavelmente, um deles fará um comentário sobre o meu tamanho. Eles dizem: ‘Nós reconheceríamos você em qualquer lugar, você é tão grande! Quero dizer, você é tão inconfundível!’, quando querem dizer algo completamente diferente, talvez isto: ‘Temos observado você se tornar o que nossa imaginação coletiva diz que você é: grande e negro’ — niggeritude — e daí o quê? Qualquer coisa. Contanto que se trate de ser linchado, afinal.”


“(...) Como Malcolm foi elogiado na Vogue por dizer às pessoas que não eram negras que seus rostos e corpos eram feios, e como Malcolm era um conferencista muito apreciado nas universidades — onde ele disse que ele, e outros como ele, um dia estourariam privilégios bem nos ouvidos dos estudantes —, foi tomado como o maravilhoso, assim como aquelas pessoas da moda e das universidades foram tomadas pela intolerância de Malcolm quanto à diferença entre eles. Eles aplaudiram e apoiaram a ‘raiva’ dele, porque isso reforçava o privilégio delas.”


“O asfixiante conservadorismo negro para com homens negros gays foi narrado por vários artistas (...) Nos centros urbanos negros dos Estados Unidos, onde Jesus ainda é Deus, os homens que não conseguem se adaptar aos decretos da cultura — adotando um estilo de vida reconhecidamente heterossexual, juntamente com um desprezo ilusório pelo estrago dos brancos — são condenados ao ostracismo, ou pior; ‘sair do armário’ é um privilégio que muitos homens negros gays ainda não podem usufruir. Excetuando-se os crimes por preconceito (homens negros gays têm mais chance de serem espancados por membros de sua própria raça do que por não negros), há o fato bizarro de que a condição de queer pode ser interpretada, até mesmo por alguns homens negros gays, como uma espécie de branquitude. Em uma cultura negra de fundamentação cristã, onde relativamente poucos homens chefiam famílias, a branquitude é equiparada à perversidade, um poluente que corrói ainda mais a já dizimada família negra. Assim, com infelicidade e culpa, os homens negros gays que não podem se casar com mulheres, e aqueles que não deveriam, mas o fazem, encontram-se ‘na surdina’ para fazer sexo gay clandestino e, com menos frequência, por amor e fraternidade.”


“O tema da negritude fez uma viagem estranha e insatisfatória pelo pensamento norte-americano: primeiro, porque, para ser ouvida, a negritude quase sempre teve que se explicar para um público predominantemente branco e, em segundo lugar, porque geralmente se supunha que havia uma única história para contar — uma história de opressão, que tira proveito da culpa liberal. Todos os escritores por trás do coletivo moderno de textos originais sobre a negritude — James Baldwin, Richard Wright e Ralph Ellison — apresentaram alguma variação sobre o tema. Zangados, mas distantes, com a raiva encoberta pelo charme, eles viviam e escreviam para serem amados. Em última análise, quisessem ou não, eles de alguma forma incorporavam os leitores que mais gostavam deles — os liberais brancos. (...) Richard Pryor foi o primeiro artista negro norte-americano da palavra falada a evitar isso. Embora tenha reprisado a história da comédia negra norte-americana (...) ele levou tudo um passo adiante. Em vez de se adaptar à perspectiva dos brancos, forçou o público branco a segui-lo em sua própria experiência. Pryor não manipulava a culpa branca de seu público, nem sua indignação moral negra. Se ele apelou para a carta do racismo, foi apenas para mostrar como ele ficava engraçado quando tentava embaralhar o baralho. E ao tornar a negritude uma parte reconhecida da atmosfera norte-americana, ele também trouxe a questão do amor inter-racial para o discurso do país.”


“[Richard] Pryor não era apenas integracionista, mas um integracionista de mulheres brancas e homens negros, uma das relações adultas mais tabu. Eis os julgamentos que cercam qualquer casal inter-racial: garotas brancas que ficam com caras negros são vadias. Caras brancos não são suficientes para elas; só um cara negro de pau grande pode satisfazê-las. Os negros que gostam de garotas brancas não gostam das garotas do tipo delas. E, bem, todo mundo sabe como eles tratam as mulheres deles: eles abusam delas; qualquer garota branca que fica com um é masoquista. A atmosfera nos Estados Unidos pesa muito com todos esses equívocos, e nos anos 1970 pesava ainda mais. Peças e filmes (...) projetaram o homem negro tanto como destruidor quanto como pajem de uma galáxia de mulheres brancas que tinham certeza de que iriam derrubá-lo. Mas nenhum relacionamento real existe nessas obras. Os protagonistas negros do sexo masculino são mais uma ilustração do que um personagem. (Embora eles sejam excelentes propagandas teatrais: que excesso de símbolos pendem de seus míticos pênis superdimensionados!) Em sua obra, Pryor foi um dos primeiros artistas negros a desatar o nó da narrativa daquele desejo e a expô-lo. Em vida, ele teve que superar isso tão dolorosamente quanto qualquer outra pessoa. (...) Em alguns aspectos, Pryor achava mais fácil se envolver com mulheres brancas do que com mulheres negras: ele podia culpar a raça por seus mal-entendidos e podia tirar vantagem da culpa que elas sentiam pelo que ele sofrera como homem negro. (...) Que homens negros e mulheres brancas são atraídos uns pelos outros através da opressão exercida por homens brancos foi um conceito que vi expresso pela primeira vez no livro feminista de Shulamith Firestone A dialética do sexo. A opressão cria um vínculo, certamente, mas também uma ruptura — um desprezo pelo outro que te identifica como diferente —, o que explica por que o romance inter-racial é tão frequentemente marcado pela violência. [Eldridge] Cleaver afirmou que estuprou mulheres brancas porque esse foi o único tipo de poder que ele conseguiu encontrar em seu mundo brutal.”


“É estranho pensar que o período de pronunciada popularidade e poder de Richard Pryor tenha durado, na verdade, apenas uma década — de 1970 a 1980. Mas a comédia é como o rock and roll, e Pryor teve sua cota de sucessos. O enorme território que ele cavou para si continua mais ou menos seu. Não que não tenha sido esquadrinhado por outros comediantes: Eddie Murphy adotou o lado beligerante de Pryor, Martin Lawrence seu lado medroso, Chris Rock sua histeria, Eddie Griffin seu besteirol macabro. Mas nenhum desses comediantes se aproxima da estranheza, da vulnerabilidade nem da intensidade política de Pryor. Ainda assim, o trabalho deles demonstra o poder de sua influência: nenhum deles existiria se não fosse por Richard Pryor. (...) Pryor provavelmente chegou à conclusão de que seu status de lenda enfraqueceu o impacto subversivo de seu trabalho. As pessoas transformam rapidamente em monumento qualquer coisa que elas vivam por tempo suficiente para controlar. Não é difícil ver como os historiadores o verão no futuro. Um comediante ousado. Um Mudbone. Mas eles vão levar em conta o resto de sua história: aquela vida essencialmente norte-americana, cheia de contradições; a vida de um comediante que tinha excesso de empatia e desdém por seu público, que se exauria na busca do amor, que era uma confusão de feminino e masculino, de preto e branco, e que representava esse drama interno no palco, para nosso entretenimento.”


“Minha avó, nativa de Barbados. era uma monarquista. Ela não cresceu em Barbados ‘livre’, mas em Barbados não muito diferente da Granada de onde Louise Little emigrou. Ambas as ilhas faziam parte da Comunidade Britânica, o que significa que ambas as ilhas eram províncias da realeza, que vendia a seus súditos a sensação de que usar a máscara da piedade era identidade. (...) Minha avó se recusava a aceitar essa descrição de si mesma, pois ela achava que não era de cor nenhuma. Ela estava tão errada nisso quanto em sua crença de que o mundo tentava ignorar o fato de que ela era uma mulher. Para esquecer de si mesma e do horror de sua realidade, ela tentava ignorar suas filhas mulheres e os filhos delas que fossem escuros. Não ao contrário de Louise Little, minha avó tinha pele clara. Consigo ver minha avó na minha memória agora. Ela está usando seu vestido de crepe — o único que ela tinha — e está sentada, como sempre fazia, com as pernas abertas, cheirando não a limão, mas a algo igualmente amargo. Como não tenho pele clara, minha avó me incentivava a não brincar ao sol; muitas vezes ela dizia que o meu aspecto era parecido com o de alguém cheio de vermes. Minha cor era uma doença para ela. A cor de Malcolm seria uma doença para a mãe dele? ‘Eu definitivamente acho que, assim como meu pai me bajulava por eu ter pele mais clara, minha mãe me infernizava pelo mesmo motivo.’ Minha avó imitava muitas tendências da realeza. Ela tinha tão pouco para governar, no entanto. Não havia montanhas, colônias ou grandes grupos de gente negra espertalhona a quem ela pudesse mandar calar a boca. Havia apenas o meu pequeno ‘eu’, que a odiava tanto por isso que já escrevi sobre esse ódio, para não o esquecer.”


Presentes no livro de ensaios “Garotas brancas” (Fósforo, 2023), de Hilton Als, traduzido por Marilene Felinto, páginas 32 a 34, 28, 215, 228-229, 91-92, 143-144, 204-205, 139, 140 a 142, 166, 186-187, 231-232, 254-255, 260-261 e 163-164, respectivamente.


Aforismos de Hilton Als em “Garotas brancas”

“É assim que se reconhece o amor: quando você sabe que nunca conheceu nada igual antes”

“Podemos sobreviver a qualquer coisa, se inventarmos”

“Todos nós somos o produto do sonho de outra pessoa”

“Esse sempre foi o sonho da garota artista, não importa a idade: arrumar as malas e partir para iluminar a escuridão”

“O que é graça senão o desejo de se esquecer do próprio corpo ou de compartilhá-lo com os outros?”

“Toda a vida é imaginada e transformada em arte para que eu possa suportá-la”

“Hermann está sempre procurando pelo amor, que está sempre fora de seu alcance porque ele vive nessa procura, como muitos de nós”

“Sempre me sinto atraído por pessoas que não são eu, mas são”

“Nós nos condenamos à aversão a nós mesmos se insistirmos em não lembrar, porque a memória está sempre lá, não importa o que aconteça”

“O árduo trabalho de fazer as palavras adquirirem significado em um país onde o intelecto é visto com suspeita”

“Aprendi com um irmão que, no final das contas, se você é negro, sua fama não faz a menor diferença em termos de como você é ou não visto pelo mundo, muito menos por você mesmo”

“Solidão é o que todo escritor merece por todas as implacáveis traições que comete — contando a seu modo histórias de outras pessoas”

“E o que é escrever senão apenas um ‘eu’ insistindo em seu ponto de vista?”

“A pior parte de amar aqueles que não querem ser amados é esta: negar a eles a intimidade instantânea de uma trepada, ir embora e nunca mais vê-los, de modo que você viva na imaginação deles, sem o fardo adicional do toque físico”

“Como a maioria das pessoas, eu reajo a histórias que me dizem algo sobre quem sou ou desejo ser, mas refletido nos olhos de outro personagem”

Aforismos presentes no livro de ensaios “Garotas brancas” (Fósforo, 2023), de Hilton Als, traduzido por Marilene Felinto, páginas 17, 313, 210, 281, 72, 277, 43, 28, 341, 181, 205-206, 218, 60, 303 e 10, respectivamente.

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