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Dez poemas de Luci Collin no livro A palavra algo

Luci Collin (foto: Rafael Dabul)


Artifício
Luci Collin

enquanto tremulo
no meu desabrigo burlesco
a areia escorre e
leva você aos poucos

e eu na minha imprecisão
de métodos e jeitos
entre sopro e um coração inculto
penhoro as lembranças melhores
para reaver você
e a areia volta e
traz você aos poucos

quisera o benefício dos corpos juntos
o anátema dos metais misteriosos
quisera o seu riso sobre o meu
e o seu gozo sobre o meu inúmero

eu colho parcelas torrões excertos eternidades
ordeno as vicissitudes dos lençóis
e vinga o seu perfume na minha mobilidade

nos meus dedos prosperam seus girassóis
e eu tomo o seu corpo
para corrigir o tempo e sua ferocidade

porque o tempo é triste
de uma tristeza que só se vence
com aquele beijo nosso
indomesticável

com aquela delícia nossa
inamanhecível

--------

Concordância
Luci Collin

eu com aquela pregação de infinitos
resto muda e abstraída
me valho de emendas

me descativo com seu sorriso
de relance entre lençóis
o desejo que vaza em suspiros

esse ritmo nosso entre
o delírio e o serenado
é cumprimento

eu com aquela pretensão de certamentes
sobrevenho vacilante e entregue
me sirvo de entressonhos

seu gosto de súbito entre madrugadas
a pressa que ressurge em roçares
trato nosso entre azáfama e remansos

eu começante e arrebatada
rendida à praxe dessa fome
nesta mercê de um presente
na minha mão transparente
o intraduzível
                         tem seu nome

--------

Corvo
Luci Collin

quando eu vi que sangrava
pensei que fosse flecha facada bala perdida
mas era a chuva

quando eu vi que estilhaçava
pensei que fosse pedrada queda agudíssimo
mas era a lua

quando eu vi que ruía
pensei que fosse sismo vento tufão quem sabe
mas era saudade

era o fim da tarde
o fim da estrada
era o fim da história

quando eu vi que infeccionava
pensei que fosse erro médico azar sina
mas era a voz
aquela voz que é a tua
que nunca mais
dizia

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Cividade
Luci Collin

Do alto do skyscraper
o anjo de paletó e bermuda
                pulou
        asas nem tendo

O plano era derreter-se
    ossos esfarelados
    na chuva que havia

Passantes relataram que declamara
        um poema       durante a queda
mas uma jurou que fora prece

Os doutos sentenciaram que
o corpo rescendia a um uso incorreto
                           da crase

Quando o homem que não voa
beijou o paralelepípedo
não se ouviu ruído:    era leve

Pulsando no ar ficou       o som
do coração contra a calçada
o som         abafado pela chuva
que havia

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Atinências
Luci Collin

I.

existem coisas que eu digo
no meio das coisas que escondo

vigoram silêncios imensos
no meio de certos estrondos

resistem horas inteiras
em meio a meio minuto

e dias e noites valendo
aquele real absurdo

e até o porto seguro
é de um remanso relativo

que um lance de dados insiste
no seio do absoluto

II.

eu que sempre sou
como eu nunca fui

como eu sempre quis
e sempre nada foi

como eu fosse assim
sempre sem querer

como nunca mais
desse pra saber

fui o que nem deu

assim sempre ser

feito eu fosse eu

--------

Dormesmo
Luci Collin

                       à Marina Kazumi

dor mesmo nem tanto a incisiva
— surpresa da faca na pele —
intensa dor mas reversível
ferida que enfim cicatriza

dor mesmo é aquela miúda
dor sempre que não envelhece
lateja essa dor — a mais funda —
de um ontem que nunca se esquece

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Álbum
Luci Collin

como são enormes
as ossadas de animais no museu nacional
(“Não se diz ‘ossos’”, advertiu a tia solteirona
formada em filosofia pura)

quando descobri o imenso livro de anatomia
de crustáceos e moluscos
sob impulso científico enclausurei
insetos nos vidrinhos de remédio
da bisavó

a bisavó chorava à toa, aliás,
e zanzava pela casa ralhando (em vêneto)
com fantasmas que a haviam
abandonado
bem ali

como são enormes
as lembranças
quando meu pai me perdeu no mar
quando minha mãe me perdeu na saída do cinema
deve ter durado trinta segundos
e até hoje

quando o carrilhão dá cinco
(que era a hora do bolinho de polvilho)
sento-me pro chá solitário
e folheio um atlas de imagens decorridas
que se debatem como insetos
e o gole tem um gosto desabitado e ermo
porque perdi o código
com que se argumenta
com os fantasmas

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Deserto
Luci Collin

estão mortos o leito o peixe o fluxo
morrem os azuis os verdes
imensidões de prata e ouros
e o bater de asas não é mais
espaço nem som

estão mortos os que dançavam
os que recriavam
tudo o que reunia
suas vozes são lama
são óbito são anos de término
seus dedos serão carícia nenhuma
só extravio do curso

estão mortos os conteúdos
a tartaruga é fóssil em cinco minutos
estão mortas amostras e semelhanças
ninguém mais quer ser semelhante a isso
e não há como conceber a imitação

boiam destroços
o ar tem cheiro do ágio
boiam pontos de interrogação
sua mão cínica gargalha
sua boca ácida determina
e o olhos vazando já nem divisam
o lixo da sua civilização

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Howcool
Luci Collin

ele foi ali na esquina
eu fiquei à deriva
ela foi tomar um chopp
eu fiquei na janela
meu amor
foi ao cinema
eu aqui virando as cartas
ele foi até a praça
ela foi brincar com fogo
eu fiquei ali na rua
meu amor
não disse onde
ela foi regar as ondas
eu fiquei aqui na fila
foi pegar um touro a unha
eu fiquei regando frases
foi embaralhar as cartas
eu fiquei virando a página
foi ali valer a pena
foi ali pra comer fogo
eu fiquei pensando à beça
ele foi lançar os dados
ela diz que tudo passa
e
eu fiquei
eu fiquei
eu fiquei por isso mesmo

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Réquiem pra minha cidade
Luci Collin

abaixo de zeros
o frasco rompe o olho trinca
e a dor se espalha e o pus entorna
a interrogação

o menino sem braço a mula sem cabeça
ali atrás da catedral mesozoica
ontem agora mesmo

a mulher sem cabeça o velho sem abraço
batendo ponto todo dia
na rua do mijo
macunaímas e a avozinha batendo palmas
e o cara que apodrece na contramão

o boto é que fez o filho coxo
não percam a próxima atração
a fome dos loucos é anunciada
no jornalzinho de colunas invisíveis
distribuído aos carros que param
quando param

o mesmo arfar de costelas visíveis
é a notícia de primeira página
a urgência de carne desossada
mole e imóvel
é sinfonia de moscas
a mesma fome de cães e lesmas
e dos muros sujos
dos vômitos e do nosso nojo
e dos corpos desempregados

vindo de lugar nenhum
um lobisomem biarticulado
desce no ponto final bem no centro
perto do entrevado paço
com seus canteiros escandíveis
não sei quem é nem como surge
nessa estrofe
se ele só sai no escuro

a noiada cantando noitefeliz
é natal naquele mesmo minuto

a guria de doze passa pedra
e compra bolsa nova e linda
na riachuelo

o boitatá descasca uma mexerica
joga o alaranjado na calçada
pra entupir todos os bueiros da dr. muricy
e de onde mais for o inferno

a caipora zanza sobre as sálvias anãs
ao lado do chafariz que chora muito
espera a gangue e alimenta pombos
grita e é um hino da galera
que sabe de cor o estribilho
de lâminas e distúrbios

ali no final da xv
em qualquer calçada
é solidez das pedras catequizadas
é maciez de noite infinita

e o relógio de sol
no marco zero da cidade
não marca hora nenhuma
só lembra que é nunca mais
porque o cenário é só de
sombras


Presentes no livro de poemas “A palavra algo” (Iluminuras, 2016), de Luci Collin, páginas 25-26, 39, 95, 31, 69-70, 43, 57-58, 49, 21 e 91 a 93, respectivamente.

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