Salman Rushdie (foto: Tobias Schwarz)
“(...) Não havia ali nada de sobrenatural. Nenhum ‘túnel de luz’. Nenhuma sensação de deixar o meu corpo. Na verdade, nunca me senti tão ligado ao meu corpo. Meu corpo estava morrendo e me levava com ele. Era uma sensação intensamente física. Depois, quando eu estava fora de perigo, perguntei a mim mesmo quem ou o que era o ‘eu’, o self que estava no corpo e não estava no corpo, aquilo que o filósofo Gilbert Ryle chamou certa vez de ‘o fantasma na máquina’. Nunca acreditei na imortalidade da alma, e minha experiência em Chautauqua parecia confirmar isso. O ‘eu’, fosse o que ou quem fosse, estava com certeza no limiar da morte junto com o corpo que o abrigava. Eu disse algumas vezes, meio de brincadeira, que nossa noção de um ‘eu’ não corpóreo pode significar que possuímos uma alma mortal, uma entidade ou consciência que termina junto com a existência física. Penso agora que talvez não seja apenas uma piada. Caído ali no chão, não pensei em nada disso. O que ocupou minha cabeça, e foi difícil de suportar, foi a ideia de que eu ia morrer longe das pessoas que amo, na companhia de estranhos. O que senti com mais força foi uma profunda solidão. Eu nunca veria Eliza de novo. Nunca veria novamente os meus filhos, nem minha irmã, nem as filhas dela.”
“Fazia 33 anos e meio que o aiatolá Ruhollah Khomeini emitira sua notória sentença de morte contra mim e todos os envolvidos na publicação de Os versos satânicos, e confesso que durante esses anos às vezes imaginei que meu assassino se ergueria de um dos muitos fóruns públicos e correria para cima de mim desse jeito. Então a primeira coisa que pensei ao ver seu vulto assassino correndo até mim foi: Então é você. Aí está você. Dizem que as últimas palavras do escritor Henry James foram: ‘Então chegou afinal, a ilustríssima’. A morte estava chegando para mim também, mas não me pareceu nada ilustre. Pareceu-me anacrônica. A segunda coisa que pensei foi: Por que agora? Sério? Faz tanto tempo. Por que agora, depois de todos esses anos? O mundo com certeza tinha seguido em frente e a questão estava encerrada. Mas ali, avançando depressa, havia uma espécie de viajante do tempo, um fantasma assassino do passado.”
“(...) Vejo você agora aos 24 anos, decepcionado com a vida, suas irmãs, seus pais, sua falta de talento no boxe, sua falta de talento para qualquer coisa; decepcionado com o futuro desolador que percebeu se estendendo à sua frente, pelo qual se recusou a assumir a responsabilidade. Mas você precisava culpar alguém, queria muito culpar alguém, e toda essa culpa difusa o inundou e transbordou, e então alguma coisa, um tweet, um vídeo, vai saber, direcionou toda essa vida mergulhada na culpa para o meu lado, e ela veio pairar sobre minha cabeça, e você começou a planejar. (...) Fico só pensando. Você viveu um bocado de sua vida noturna num universo imaginário. Nesses universos, o universo de Call of Duty, a morte está por toda parte, mas não é real. Você mata um monte de gente, mas ao mesmo tempo não mata ninguém. É sempre: correr matar procurar abrigo. Correr matar se esconder. Quando foi para Chautauqua, era como uma missão no videogame? Seria um assassinato em que ninguém morresse? Ou será que você nem tinha ideia do que faria, porque teria de cruzar a fronteira entre o mundo dos games e este, e talvez isso fosse demais para você? Você podia trazer a faca do jogo, mas neste mundo ela cortaria de verdade e machucaria e mataria de verdade. Acho que você nem tinha certeza se ia mesmo fazer aquilo até eu chegar ao palco e você se levantar da cadeira e vir para cima de mim. E então seus pés correndo o levaram a um ponto sem retorno e não havia mais como parar. Você se viu bem na minha frente e lá estava eu: a realidade. A realidade real e honesta sobre seus dois pés, encarando você, olhos nos olhos. Havia eu e havia todas as suas outras realidades também, sua solidão, seus fracassos, suas decepções, sua necessidade de culpar alguém, seus quatro anos de doutrinação, sua ideia do Inimigo. Eu era todas essas coisas, e você começou a esfaquear e achou que era aterrorizante, achou a sensação boa e aterrorizante ao mesmo tempo. Tenho certeza de que sentiu medo. Morreu de medo. Porque era você que vivia num mundo de ficções e agora enfrentava as consequências de ser conduzido por suas ficções ao mundo real, ou seja, ao homicídio e à sua própria vida arruinada.”
“Tem uma coisa que eu costumava dizer na época, quando a catástrofe desabou em cima dos Versos satânicos e seu autor: que uma maneira de compreender a discussão em torno do livro era que se tratava de uma briga entre pessoas com senso de humor e pessoas sem nenhum senso de humor. Estou vendo você agora, meu assassino fracassado (...) Você foi capaz de tentar matar porque não sabia rir.”
“Não tenho intenção de cobrar erudição de sua parte. Você concorda que seu Deus não possui qualidades humanas, segundo sua própria tradição. Deixe-me perguntar só uma coisa. A linguagem é uma qualidade humana? Para ter uma linguagem, Deus precisaria ter uma boca, uma língua, cordas vocais, uma voz. Teria de ser parecido com um homem. A sua própria imagem. Mas você concorda que Deus não é assim. (...) se Deus está acima da linguagem — muito acima, como está muito acima de tudo que é meramente humano —, como foi que as palavras do seu Livro vieram a ser formadas?”
“Vou expressar aqui, pela última vez, minha opinião sobre religião — qualquer religião, todas as religiões —, e depois, no que me diz respeito, é assunto encerrado. Não acredito na ‘evidência de coisas invisíveis’. Não sou religioso. Venho de uma família em que a maioria não é religiosa. (...) Nunca senti necessidade da fé religiosa para me ajudar a compreender o mundo e lidar com ele. Porém, entendo que para muita gente a religião proporciona uma âncora moral e parece essencial. E na minha opinião a fé pessoal de alguém não é da conta de ninguém, exceto do indivíduo em questão. Não tenho problema com a religião quando ela ocupa seu espaço privado e não tenta impor seus valores aos outros. Mas quando a religião vira um instrumento político, até um instrumento de morte, passa a ser da conta de todo mundo, devido à sua capacidade de causar o mal. (...) Quando os fiéis acham que suas crenças devem ser impingidas sobre outros que não creem nelas, ou quando acham que os descrentes devem ser impedidos de exercer a expressão vigorosa ou espirituosa de sua descrença, é problemático.”
“(...) Há muito tempo penso nesse passado hipotético como uma espécie de infância da raça humana, quando aqueles nossos parentes distantes precisavam de deuses assim como crianças precisam de pais, para explicar sua própria existência e lhes fornecer regras e limites que pautassem seu desenvolvimento. Mas chega uma hora em que precisamos crescer — ou deveríamos, já que para muitas pessoas essa hora ainda não chegou. (...) Não precisamos mais da(s) figura(s) de autoridade paterna de um Criador ou de Criadores para explicar o universo ou como evoluímos até chegar ao que somos. E não temos, ou, dizendo mais modestamente, não tenho a menor necessidade de mandamentos, papas ou sacerdotes de nenhuma espécie para transmitir minha moral. Tenho meu próprio senso de ética, muito obrigado. Não foi Deus que nos transmitiu a moralidade. Fomos nós que criamos Deus para personificar nossos instintos morais.”
“Existe uma felicidade profunda que prefere a privacidade, que floresce longe dos olhos do público, que não exige a validação de ser conhecida: uma felicidade que existe apenas para as pessoas felizes, que é, em si mesma, suficiente. Eu estava farto de ter minha vida privada dissecada e julgada por estranhos, cansado com a malícia de línguas venenosas. Eliza era e ainda é uma pessoa muito reservada, cuja maior preocupação por estar comigo era de que talvez precisasse renunciar à sua privacidade e se ver banhada na ácida luz da publicidade. Eu tinha vivido tempo demais nesse brilho sem sombras e não desejava isso para ela. Não desejava isso para mim. Algo estranho aconteceu à ideia de publicidade em nosso tempo surreal. Em vez de ser bem-vinda, parecia ter se tornado, para muitos no Ocidente, sobretudo os jovens, uma qualidade sem valor, efetivamente indesejável. Se uma coisa não se torna pública, ela não existe de fato. Seu cachorro, seu casamento, sua praia, seu bebê, seu jantar, o meme interessante que você acabou de ver, essas coisas precisam ser compartilhadas dia após dia. (...) no Ocidente ganancioso, onde a atenção se tornou aquilo que é mais ansiado, a busca de seguidores e likes é a nova voracidade, a privacidade tornou-se desnecessária, indesejável, absurda até. (...) Eliza e eu decidimos ser pessoas discretas. (...) mesmo neste tempo viciado em visibilidade, ainda era possível duas pessoas viverem, bem abertamente, uma vida privada e feliz.”
“(...) a arte desafia a ortodoxia. Rejeitar ou vilipendiar a arte por fazer isso é não conseguir compreender sua natureza. A arte antepõe a visão pessoal apaixonada do artista contra as ideias prontas de seu tempo. A arte sabe que as ideias prontas são as inimigas da arte, como mostra Flaubert em Bouvard e Pécuchet. Os clichês são ideias prontas, assim como as ideologias, tanto as que dependem da sanção dos deuses do céu como as que não dependem. Sem arte, nossa capacidade de pensar, de enxergar com olhar renovado e de renovar nosso mundo murcharia e morreria. A arte não é um luxo. Reside na essência de nossa humanidade e não pede nenhuma proteção especial, exceto o direito de existir. (...) Ela acata a discussão, a crítica e até a rejeição. Só não acata a violência. E no fim sobrevive àqueles que a oprimem. O poeta Ovídio foi exilado por Augusto, mas a poesia de Ovídio sobreviveu ao Império Romano. A vida do poeta Mandelstam foi arruinada por Ióssif Stálin, mas sua poesia sobreviveu à União Soviética. O poeta Lorca foi assassinado pelos capangas do general Franco, mas sua arte sobreviveu ao fascismo da Falange.”
“Esse agora é o medonho cotidiano do mundo. Como devemos responder? Costuma-se dizer, eu mesmo já o disse, que os poderosos talvez sejam os donos do presente, mas os escritores são donos do futuro, pois é por meio de nosso trabalho, ou a melhor parcela dele, ao menos, as obras que perduram até esse futuro, que as atuais perfídias dos poderosos serão julgadas. Mas como pensar no futuro quando o presente clama por nossa atenção, e o que, se deixarmos a posteridade de lado e prestarmos atenção a esse pavoroso momento, podemos fazer de útil ou efetivo? Um poema não detém uma bala. Um romance não desarma uma bomba. Nem todos os nossos satiristas são heróis. Mas não estamos indefesos. Mesmo após Orfeu ser feito em pedaços, sua cabeça decepada, flutuando no rio Hebrus, continuou cantando, lembrando-nos de que a canção é mais poderosa que a morte. Podemos cantar a verdade e apontar os mentirosos, podemos nos unir em solidariedade a nossos colegas na frente de batalha e contribuir com nossa voz para amplificar a deles.”
“Eu queria dizer: acredito que a arte é um sonho desperto. E que a imaginação pode criar uma ponte entre sonhos e realidade e nos permitir entender que o real tem novos meios de olhar pelas lentes do irreal. Não, eu não acredito em milagres, mas, sim, meus livros acreditam e, para usar uma formulação de Whitman, eu me contradigo? Muito bem, então eu me contradigo. Não acredito em milagres, mas minha sobrevivência é milagrosa. Tudo bem, então. Que seja. A realidade de meus livros, ah, chame de realismo mágico, se quiser, é agora a realidade de fato em que eu vivo. Talvez meus livros estivessem construindo essa ponte durante décadas e agora o milagroso podia atravessar. A mágica se torna realismo. Talvez meus livros tenham salvado minha vida.”
“Eu não tinha condições de falar sobre liberdade. Era uma palavra que se transformara em um campo minado. Desde que os conservadores começaram a se sentir donos dela (...), liberais e progressistas começaram a recuar dela em busca de novas definições do bem social, segundo as quais as pessoas não poderiam mais questionar as novas normas. Proteger os direitos de sensibilidades de grupos percebidos como vulneráveis teria precedência sobre a liberdade de expressão, que o prêmio Nobel Elias Canetti tinha chamado de ‘a língua liberada’. Esse afastamento dos princípios da Primeira Emenda permitia que essa respeitável parte da Constituição fosse cooptada pela direita. A Primeira Emenda era agora o que tornava possível que os conservadores mentissem, abusassem, aviltassem. Tornou-se uma espécie de liberdade para a intolerância. A direita tinha também um novo programa, que se parecia muito com um mais antigo: autoritarismo, sustentado por uma mídia inescrupulosa, dinheiro grosso, políticos cúmplices e juízes corruptos. Tudo isso, as complexidades criadas pelas novas ideias de certo e errado e o meu desejo de proteger a ideia de liberdade: a ideia de Thomas Paine, a ideia do Iluminismo, a ideia de John Stuart Mill, de todas essas coisas novas, estava além do meu poder de articulação. Minha voz estava fraca e débil. Meu corpo estava em choque. Falar sobre milagres era quase tudo o que eu conseguia.”
“(...) há vinte anos, o romance que viria a ser Shalimar, o equilibrista nasceu de uma única imagem que eu não conseguia tirar da cabeça, a imagem de um homem morto no chão enquanto um segundo homem, seu assassino, paira acima dele com uma faca ensanguentada. No começo, era tudo o que eu tinha: um ato sangrento. Só depois entendi quem eram os dois homens e qual era a história deles. Quando penso nisso agora, fico abalado. Geralmente não penso nos meus livros como profecias. Tive alguns problemas com profetas na minha vida e não me candidato ao cargo. Mas é difícil, ao pensar em retrospecto a gênese desse romance, não ver a imagem — no mínimo — como uma premonição. (...) E a primeira frase de Os versos satânicos voltou a me assombrar também. ‘Para nascer de novo’, cantava Gibreel Farishta, enquanto despencava do céu, ‘é preciso morrer primeiro.’”
“Li que a fatwa aos Versos satânicos, à qual manifestara sua oposição, foi o que provocou o atentado contra ele [o escritor egípcio Naguib Mahfouz]. Eis aqui o que disse em minha defesa no livro For Rushdie, em que uma centena de autores e intelectuais muçulmanos escreveram em meu nome: ‘O verdadeiro terrorismo de que ele é alvo é injustificável, indefensável. Uma ideia só pode ser contraposta por outras ideias. Mesmo que essa punição seja consumada, tanto a ideia como o livro permanecerão’. Dói em mim até hoje que essas palavras possam ter levado uma faca ao seu pescoço muito antes que outra faca como essa fosse enfiada no meu. Esse é o preço de tolerar — de justificar, encorajar — a intolerância. Mas Mahfouz tinha razão. Suas ideias, e seus livros, permaneceram. (...) Só me resta esperar que no meu caso também permaneçam.”
“Viver foi minha vitória. Mas o significado que a faca dera à minha vida foi minha derrota. Em Cidade da vitória, meu personagem principal, Pampa Kampana, escreve um poderoso poema narrativo em sânscrito, chamado Jayaparajaya, ou seja, ‘Vitória e derrota’. Esse poderia ser o título da história da minha vida.”
Presentes no livro de memórias “Faca: Reflexões sobre um atentado” (Companhia das Letras, 2024), de Salman Rushdie, traduzido por Cássio Arantes Leite e José Rubens Siqueira, páginas 26, 16, 173-174, 181, 163, 196-197, 199, 46-47, 182, 195, 74, 73, 31-32, 148 e 145, respectivamente.
Aforismos de Salman Rushdie em “Faca”
“O que não se pode curar, tem-se de suportar”
“Na morte, somos todos gente de ontem presa para sempre no tempo passado”
“Se você tem medo das consequências do que diz, então você não é livre”
“No caótico mundo da política e da vida pública, nenhuma ideia deve ficar além da crítica”
“Branco era a cor de pessoas que não achavam importante pensar sobre a própria cor, porque eram apenas pessoas; cor era coisa para outras pessoas pensarem, pessoas que não eram apenas pessoas”
“Quando a morte chega muito perto da gente, o resto do mundo se afasta e sente-se uma grande solidão”
“Sempre acreditei que o amor é uma força, que sua forma mais potente é capaz de mover montanhas. Que pode mudar o mundo”
“Uma arma de fogo é ação à distância, mas um ataque a faca é uma espécie de intimidade”
“A faca é uma arma de perto, e os crimes que comete são encontros íntimos”
Aforismos presentes no livro de memórias “Faca: Reflexões sobre um atentado” (Companhia das Letras, 2024), de Salman Rushdie, traduzido por Cássio Arantes Leite e José Rubens Siqueira, páginas 79, 20, 110, 198, 40, 65, 67 e 24(x2), respectivamente.
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