Quinze passagens de João Pereira Coutinho no [quase] livro de crônicas A vontade de liberdade é mais forte do que o terror dos tiranos
“Nada do que é humano nos é estranho, para citar outra frase latina. Vemos as mesmas ilusões, as mesmas esperanças, os mesmos planos para a vida. As mesmas contingências que alteram, ou acabam, com os planos. O envelhecimento. A doença. A morte, em tom cômico ou trágico, tanto faz. E os filhos que chegam. E os filhos que partem. E os filhos que retornam — ou não. Histórias de amor que prometiam tanto e falharam tanto. Solidão. Arrependimentos. Ou nem por isso: segundas oportunidades. Depois, o tempo dá um salto e vemos tudo outra vez — na mesma sala, no mesmo espaço, no mesmo canto do mundo. A natureza humana é o supremo clichê. (...) excetuando um asteroide mal-humorado ou uma guerra nuclear, 2025 será igual a 1925, e a 1825, e a 1125. Do ponto de vista da eternidade. Basta instalar uma câmera na minha sala, ou na sala do leitor, e espreitar para o passado, para o presente e para o futuro. (...) Vejo pela lente a selva, os primeiros arruamentos, as primeiras iluminações. As primeiras paredes, janelas, coberturas. Vejo os meus antepassados, ou os seus antepassados, com a sensação única de que eram únicos, vivendo na vertigem do tempo, cultivando projetos, lamentando o que fizeram ou não fizeram. Vejo-me a mim, vejo você, alentado ou deprimido com as forças das pequenas coisas, como alentados ou deprimidos serão os homens que ainda não chegaram para habitar a mesma sala, para a destruir, para a reconstruir, para a destruir de novo. (...) Em 2025, do ponto de vista da eternidade, continuaremos a mesma espécie mesquinha, calorosa, raivosa, sonhadora, amedrontada ou corajosa. Vamos amar, ferir quem amamos, acalentar sonhos, destruir sonhos. Tudo vai mudar, nada vai mudar. O novo ano é o velho ano que será igual a todos os novos anos.”
“(...) Por experiência própria, confirmo que quanto mais rudimentar é uma pessoa, mais histérica ela se torna na defesa da sua sucata mental. Onde existe verdadeiro conhecimento — e o conhecimento contém sempre algo de aberto e provisório — não há motivo para alarme só porque uma mosca caiu na sopa. (...) O dogmático é aquele que declara guerra às moscas. O diferente é o ateu — para o crente. É o crente — para o ateu. É o progressista — para o reacionário. É o reacionário — para o progressista. Ironicamente, e apesar de se odiarem em público, um não consegue viver sem o outro. Um não existe sem o outro. (...) Mas o indiferente é bem pior. Como é possível que exista alguém que boceja quando eu estou disposto a dar a minha vida por uma certeza? Como tolerar esse desrespeito pela minha vaidade? O indiferente termina a conversa antes mesmo de ela começar. O indiferente não dá troco. O indiferente não pode ser refutado, como Pascal percebeu ao escrever sobre o cético — e perigoso — Montaigne. A expressão brasileira ‘não estou nem aí’ capta na perfeição essa ausência ofensiva. (...) Se eu não pertenço a uma patrulha, nem estou interessado nas utopias coletivas que elas defendem, que caminho me resta? Resposta do autor: o caminho da solidão rural, do anonimato urbano ou do exílio voluntário, como sucedeu a incontáveis indiferentes.”
“(...) Não interessa se falamos de religião, política ou ‘lifestyle’. Sinto um desconforto físico quando um benemérito entra na minha vida, na nossa cabeça e nos nossos hábitos sem ter sido convidado ou procurado. E, ultrapassando os limites, impinge a sua mercadoria. (...) As sociedades contemporâneas estão dominadas por esses beneméritos. Governos, especialistas, ideólogos ou cartomantes que determinam como devemos viver, trabalhar, morrer. O que devemos pensar, condenar, dizer, censurar. E comer, e beber, e sonhar. Nosso mundo sofre de ‘incontinência judicativa’, como dizia o filósofo português Paulo Tunhas, que contava uma história a respeito. Um dia, um mendigo pediu-lhe um cigarro. Paulo acedeu. O mendigo, saboreando o fumo, sentenciou: ‘O senhor não deveria fumar. Faz mal à saúde’. (...) A conversão é o contrário de uma conversação, escreve Adam Phillips. Conversando damos ao outro a liberdade. A vontade de o converter é uma vontade de domínio — e, como no filme, de destruição. Durante a Guerra Civil Norte-Americana, ao definir o seu conceito de democracia, Abraham Lincoln escreveu: ‘Tal como não quero ser escravo, também não quero ser senhor de escravos’.”
“‘Os homens tendem a ter as crenças que se adequam às suas paixões’, escreve Rushdie, citando Bertrand Russell. ‘Os homens cruéis acreditam num Deus cruel e usam essa crença para desculpar a sua crueldade. Só os homens bondosos acreditam num Deus bondoso e seriam bondosos em qualquer caso.’ (...) O criminoso é irrelevante, conclui o autor. O criminoso é ninguém. Perdoá-lo ou não, odiá-lo ou não, entender seus motivos ou não — tudo isso é conferir ao inominado (nunca lemos o nome do criminoso no livro) uma dignidade, ou uma atenção, que ele não merece. O que resta, então? Para Rushdie, continuar. A verdadeira vitória é poder continuar amando, escrevendo, vivendo, mesmo que a felicidade possível exiba as cicatrizes de um passado que não se esquece. Continuar, em suma, é responder à violência com a arte — e talvez seja isso que perturbe tanto os fanáticos: a incapacidade para saírem do mundo estreito e violento em que vivem, transfigurando seus medos e fracassos em algo de belo e duradouro. (...) A inveja dos fanáticos é mais forte que suas crenças ou sentimentos.”
“Nunca vivemos em sociedades tão sexualizadas como hoje. E nunca houve um tão acentuado desinteresse pela prática sexual entre os mais jovens. Razões? Sempre acreditei que a primeira frase explica a segunda. Quando tudo em volta grita, é natural querer ficar calado. O sexo é, primeiro de tudo, uma questão de imaginação. (...) Viver e deixar viver é ainda o meu lema. Se o meu vizinho ama uma boneca e quer casar com ela, só posso desejar boa sorte ao casal. De igual forma, concordo com Woody Allen: às vezes, masturbação é fazer amor com a pessoa que mais amamos. (...) Como escreve Roanne van Voorst, há uma atrofia das nossas capacidades — verbais, sociais, emocionais, até sexuais — que nos empobrece como pessoas. A relação amorosa, mesmo quando infeliz, é também um momento de florescimento e maturidade em que somos obrigados a sair de nós próprios. A rendição ao outro é, paradoxalmente, um triunfo para nós. Esse, aliás, talvez seja o verdadeiro perigo de um futuro dominado pelos robôs, conclui Roanne van Voorst. Quem teme que eles possam se tornar humanos deveria considerar a hipótese inversa de sermos nós a ficar robóticos.”
“(...) Hoje é o retorno aos momentos mais sombrios do século 20, com a submissão da arte a imperativos extra-artísticos. (...) o que define um escritor ou pintor ou compositor não é a ‘relevância’ (grotesca palavra) da sua obra para as discussões histéricas das redes sociais. A arte é, antes de tudo, a forma como um criador responde aos desafios da autoridade e da liberdade artísticas. É uma luta permanente, solitária, interior, entre ordem e impulso criativo: conhecendo a tradição da sua arte, até nas suas dimensões mais artesanais, um criador digno desse nome é aquele que prolonga ou refaz ou recria ou, no limite, recusa essa mesma tradição. (...) Quando esse confronto entre autoridade e liberdade não existe, também não existe uma obra de arte. Temos apenas obras ‘bem feitas’, no sentido técnico ou académico da expressão: obras que se limitam a mimetizar a autoridade de um género, sem que a liberdade e a individualidade do artista se revelem. Ou, em alternativa, quando só existe liberdade sem autoridade, temos obras informes e estéreis, porque a ausência de limites, ou até do conhecimento prévio desses limites, fez naufragar o criador em ruído e nada. A essas duas modalidades, acrescento mais uma, em homenagem ao nosso tempo: a conversão da obra em panfleto, ou seja, a recusa trágica quer da autoridade, quer da liberdade.”
“(...) o tipo de relativismo que parte da diversidade para afirmar, destemido e orgulhoso, que não existem valores morais universais. Nós fazemos as coisas à nossa maneira. Os outros fazem as coisas à maneira deles — e não existe forma objetiva de verificar quem tem razão. (...) Fato: nós podemos condenar uma sociedade que lapida mulheres adúlteras ou corta os membros superiores de quem rouba. Mas até a condenação será relativa: a única coisa que podemos afirmar é que nós, aqui no nosso canto, não fazemos as coisas dessa forma. Para nós, lapidar mulheres ou decepar ladrões é errado. Mas, no fundo, não temos o direito de impor nossos valores (imperialistas, racistas, paternalistas?) a outras culturas. Mas será mesmo assim? Ou existem certos valores que têm validade universal quando está em causa a essencial dignidade dos seres humanos? (...) tudo compreender não é tudo perdoar, ao contrário do que defendem os relativistas. Sim (...) sou capaz de compreender como foi possível a escravidão ou o Holocausto. Sou capaz de entender como certos valores — o racismo, o antissemitismo, o eugenismo — podem produzir certos resultados. Mas nada disso desculpa moralmente essas sociedades. (...) O que é válido para o Ocidente é válido para qualquer continente, país, região ou lugarejo onde existam seres humanos submetidos à violência e ao abuso. Exceto se partirmos do pressuposto de que nem todos os seres humanos são iguais. Ironicamente, acreditar nessa falácia é repetir os velhos vícios que sempre justificaram a opressão dos mais fracos.”
“O caminho para a tirania começa assim: pela elevação do subjetivismo a arma de arremesso contra aqueles de que não gostamos. Esse subjetivismo é comum nos ditadores, que prendem, torturam e matam os seus inimigos, reais ou imaginários. Hoje, o subjetivismo pode ser exercido por milhares, milhões de pequenos ditadores que, em nome dos seus ‘sentimentos’, querem que o mundo seja um espelho fiel deles próprios. (...) O problema desse pensamento totalitário é que os ‘sentimentos’ são, por definição, voláteis. O que para mim é um insulto, para outro é uma piada. O que para mim é uma piada, para outro é uma tortura psicológica irreparável. O clima de litigância permanente que a nova lei inaugura, com metade do país querendo calar a outra metade, é a imagem mais próxima do inferno. Ou do manicômio. (...) Um país que promove a espionagem cívica e a delação virtuosa já não é uma democracia liberal; é um covil de ratazanas onde a franqueza e a confiança foram reduzidas a pó. (...) os autores da lei padecem de uma alucinação comum aos fanáticos do nosso tempo: a crença de que a história lhes pertence. E que serão eles, sempre e sempre, a definir os temas proibidos. Mas a história é volúvel e nada garante que a lei que eles usam contra os ‘inimigos’ do momento não será um dia usada contra eles.”
“ (...) a polícia, os serviços secretos, a violência de Estado, a tortura — tudo isso assusta, tudo isso é verdade. Mas não é menos verdade que todos os regimes autoritários se sustentam sobre gelo fino: o medo da população. Quando esse medo desaparece, os regimes se desfazem como um castelo de cartas. Na luta pela liberdade, o tamanho importa. (...) Mesmo a prisão, e as condições lúgubres que acabaram por matá-lo, é comparada metaforicamente à prisão em que Putin vive. Em que vivem, no fundo, todos os tiranos, como explicava Platão: uma prisão de temor e paranoia, onde reina a mais profunda desconfiança e solidão. Alguém dizia que o pior de estarmos presos é a impossibilidade de sermos nós a trancar a porta. Mas o tirano vive uma existência igualmente precária: ele sabe que, mesmo trancando todas as portas, jamais terá uma segurança perfeita.”
“No fim das contas, é a frustração que habita o coração dos tiranos. Embriagados pelo poder, rodeados de lisonjas e mentiras, eles temem e invejam o talento dos criadores livres. E sabem, inconscientemente que seja, que não será a história a julgá-los; serão os risos da plateia quando seus cadáveres forem expostos sem máscaras.”
“(...) antiliberalismo, essa velha tradição que tanto pode ser de esquerda como de direita. O objetivo é sempre o mesmo: corroer a democracia liberal e representativa, bem como as virtudes a ela associadas — o pluralismo, a laicidade, a tolerância e a simples experiência da individualidade. (...) O grande inimigo dos iliberais (...) são os indivíduos, que emergiram com a passagem do mundo medieval para o mundo moderno e que se viram emancipados da tutela da família, da corporação ou da igreja. Esse momento, que para uns foi visto como uma libertação histórica, foi encarado por outros como uma perda traumática. (...) Os iliberais (ou, como Michael Oakeshott lhes chama, os anti-indivíduos) permanecem conosco até hoje, tentando recriar esse mundo perdido com várias roupagens coletivistas: a sociedade sem classes; a comunidade do ‘solo e do sangue’; integralismos de várias ordens; e até os novos identitarismos. Em comum, repito, está o ódio ao indivíduo e à modernidade que o gerou.”
“(...) a condenação à morte do teólogo espanhol Miguel Servet por ‘heresia’ — uma acusação irônica quando o protestantismo, aos olhos de Roma, era a suprema heresia. Essa contradição insanável foi denunciada à época por Sebastião Castélio, o sábio de Basileia, que deixou a frase: ‘Queimar uma pessoa não quer dizer defender uma doutrina, mas sim matar uma pessoa’. (...) Como normalmente acontece aos espíritos limpos que habitam eras sujas, Castélio acabaria só, como ‘um mosquito contra o elefante’, na defesa da tolerância contra o fanatismo. Calvino esmagou seu rival. Mas a mensagem sobreviveu ao mensageiro e, nos séculos seguintes, não deixa de ser novamente irônico que tenham sido os países de herança protestante a acolher os perseguidos da religião e da política — e a permitir o florescimento da democracia. Sebastião Castélio era, enfim, redescoberto. (...) No fim das contas, a vontade de liberdade é mais forte do que o terror dos tiranos — e, como escreve Zweig, ‘sempre se erguerá um Castélio contra um qualquer Calvino, para defender a autonomia soberana do pensamento contra todas as violências da violência’.”
“(...) As mulheres não civilizam apenas os homens, o que sempre me pareceu uma evidência. Elas também civilizam as nações, tornando a possibilidade de conflito entre estados mais difícil de acontecer. (...) se o mundo ocidental, sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial, viu uma diminuição dos conflitos em que se envolveu, isso também se explica pela gradual participação das mulheres na vida política dos países. (...) Sociedades onde existem desequilíbrios de gênero acentuados — muitos homens, poucas mulheres — tendem a ser barris de pólvora à espera da explosão. (...) ao olharmos para os conflitos contemporâneos que sangram o planeta — na Ucrânia, na Síria, no Iêmen, na Etiópia — não encontramos uma só mulher envolvida nas decisões. (...) a título de curiosidade, seria o primeiro a entregar o mundo direto para as mulheres, só para ver no que dava. Tenho a certeza de que, atendendo ao histórico dos machos, o pior seria impossível de acontecer em cenário assim.”
“(...) a contradição dolorosa que existe em certas cabeças iluminadas. Por um lado, elas desejam quebrar todos os tabus sociais, sexuais, comportamentais. Por outro, quando se confronta com os resultados tangíveis de tanta libertação, a cabeça iluminada recua de horror e clama por mais decência. (...) Longe de mim defender a proibição da prostituição, da pornografia e de outras ocupações carnais. Não defendo: nem tudo o que é moralmente ambíguo deve ser ilegal. Mas também não subscrevo a atitude falsamente blasé de considerar que um filho ator pornô ou uma filha nas vitrines de Amsterdã me deixariam cobertos de orgulho.”
“Sou filho de professores. Setembro era o mês de todos os recomeços. Eu voltava para a escola, eles também, e o meu pai dizia que nunca se envelhece realmente quando somos professores. ‘O tempo passa’, explicava ele, ‘mas em setembro todos os alunos voltam a ter a mesma idade’. Ser professor era partilhar dessa eternidade. (...) O meu pai já cá não está, mas é nele que penso, todos os anos, quando entro na sala e encontro novos rostos com os mesmos 18 anos. Embora alguns deles me pareçam familiares. ‘A sua cara não me é estranha’, digo então, surpreso e intrigado. (...) O aluno sorri e responde: ‘O senhor foi professor do meu pai’. (...) Bye-bye, eternidade.”
Presentes no quase livro de crônicas “A vontade de liberdade é mais forte do que o terror dos tiranos”, do cientista político e escritor português João Pereira Coutinho [uma seleção dos melhores textos publicados na sua coluna na Folha de São Paulo entre 2023 e 2024, que tive o prazer de organizar em 2025 e que poderia ser impresso e lançado, mas não será], crônicas “Na virada do ano, fico imaginando como será a vista para cá embaixo”, “Não estou nem aí”, “Sinto desconforto físico quando alguém me pretende converter”, “Salman Rushdie mostra que inveja dos fanáticos é mais forte que suas crenças”, “Sexo com robôs e paixões por avatares são o futuro do amor”, “Submissão da arte à ideologia lembra períodos sombrios do século 20”, “Tudo compreender não é tudo perdoar”, “Milhões de pequenos ditadores querem que o mundo os espelhe”, “Diário de Navalni explica diferença entre convicções ou apenas ideias na cabeça”, “Piadas de mau gosto”, “O povo do populista vale tanto como o proletariado do marxista: nada”, “Matar uma adolescente por não usar o hijab não é defender uma doutrina”, “Pior é impossível”, “Cabeças iluminadas quebram tabus e depois clamam por mais decência” e “O turismo horroriza os pedantes, mas é o único petróleo por estas bandas” [os links são para o site da Folha de São Paulo, com acesso restrito a assinantes], respectivamente.
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