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Nem mesmo os passarinhos tristes, de Mayrant Gallo

Mayrant Gallo
Foto: Divulgação | Arte: Mirdad


"Disse que ia sair para comprar cigarros... E o fez mesmo. Voltou para casa e está dormindo"


"Sonhou que transava com três mulheres. Mais: que as satisfazia. Acordou, e nem a esposa estava ao seu lado"


"Foi somente quando se deu conta de que não podia mais ser pai e já não era mais filho que ele foi feliz"


"Por distração ou descuido, parado na esquina, o homem perdeu um dos lados do rosto na carroceria de um caminhão. Mas não há infelicidade que não se desmanche, em parte ou em todo: a esposa, em casa, pensou que ele fosse outro e o levou direto pra cama"


"Por vários dias admirou aquela modelo-viva na vitrine. Quando soube que não era viva, não deu a menor importância. Voltaria lá tantas quantas vezes quisesse sua lembrança"


"Aqueles que sentados no bar bebem não bebem porque querem. Bebem porque, colados às cadeiras coladas ao bar, nada lhes resta senão. São sempre os mesmos que vejo quando passo, ontem e hoje, na ida e a volta, e também nos dias posteriores. São sempre os mesmos, e eu o mesmo em movimento à margem deles – o que talvez não represente nenhuma vantagem, pois vou andando para o abraço da morte, tanto quanto eles que, parados, correm"


"Anos mais tarde, quando retornou – fatigado de sonhos, barba branca, ar cansado, dois filhos à frente, outro no braço, uma segunda mulher –, sua mãe, como um antigo retrato à parede, ainda o olhava como antes"


"Não, não queria ser a foto que ele guardaria na carteira... Nem aquela outra que ele poria, mais tarde, em sua mesa de trabalho... Menos ainda a de uma mulher grávida, de expressão fatigada e azeda (...) Melhor seria tomar um trago e dar um trepada"


"A mãe não é somente o lugar de onde se veio. É também para onde não se deve voltar"


"Vi um bêbado andando em volta de uma árvore.
Parei e perguntei por que fazia aquilo, por que rodava em volta da árvore. Queria ir para casa, disse, e se andasse reto daria voltas e voltas... Depois de um silêncio – ou de um afastamento decisivo – em que seus olhos por pouco não se fecharam, concluiu:
– E a não ir prefiro não ir"


"Quando a mãe do astronauta soviético Yuri Gagarin soube, por sua sobrinha, que o filho estava em órbita no espaço, olhou de lado para a distância e comentou: 'E Valentina sozinha em Moscou com duas crianças...'"


"No circo, às escondidas, o palhaço e a menina... Na vida, depois que ela cresce e se perde, nem ele se arrisca. Mas ela comparece ao cemitério – vestida"


"Mesmo em companhia de tantas pessoas, é sempre doloroso chegar ao parapeito de uma sacada. Lá embaixo, as verdades ferem. Pior ainda é olhar para cima e não perceber, no prédio em frente, à janela, a morte – disfarçada e pura"


"Depois da tempestade, vêm as crianças – que correm, brincam e pulam, olhos que são, literalmente, as últimas gotas de chuva"


"E o menino, ingênuo, pôs sua meia na janela, esquecido de que meses antes, quando se mudaram para aquele apartamento – no décimo-segundo andar –, o pai instalara telas em todas as janelas"


"'Se você pudesse voar, eu não existiria'.
O passarinho voou. Ele não"


"Era um casanova genuíno. Deixava-se um pouco em cada corpo.
Até que desapareceu de todo"


"(...) ninguém jamais está só, não verdadeiramente, embora todos estejam sozinhos – como pregos na parede"



Presentes no livro de minicontos "Nem mesmo os passarinhos tristes" (Multifoco, 2010), de Mayrant Gallo, páginas 98, 134, 12, 78, 66, 59, 15, 76, 52, 10, 25, 33, 61, 64, 123, 86, 24 e 46, respectivamente.

Comentários

Gostei bastante de "Nem Mesmo os Passarinhos Tristes", li rapidamente, estou a me dever uma nova leitura.
Vanessa Souza disse…
Por vários dias admirou aquela modelo-viva na vitrine. Quando soube que não era viva, não deu a menor importância. Voltaria lá tantas quantas vezes quisesse sua lembrança.

está sublinhado no meu exemplar :)
Mayrant Gallo é muito bom...
É preciso ler mais, falar mais sobre as obras dele.
Eu mesma estou devendo um bom texto mas o tempo está conspirando.

Admiro muito, fã de carteirinha.
Lidi disse…
Mirdad, só hoje, pesquisando na internet, me deparei com o meu texto aqui no seu blogue. Obrigada. Quanto ao Mayrant, é um grande amigo e um grande escritor. Eu também sou fã. Ah, gostei do que fez com os posts dele do Contramão. Deve ter ficado show. :) Abraço.

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