Domingos Pellegrini (foto daqui)
"Quando acordei, perguntei cadê o povo da gravadora, o dono do bar disse que tinham almoçado fazia tempo, mas apontou: ainda tinha um ali palitando dente. Perguntei: moço, você trabalha ali na gravadora? Ele balançou a cabeça, trabalhava sim. Então espere um pouco, pedi. Peguei a viola no quartinho, afinei, respirei fundo e voltei. Agora escute um pouco, moço. E comecei a cantar. (...) Juntou gente para ouvir. O dono do bar até me deu um guaraná. Mas o moço da gravadora ouviu como quem não ouvia, devia ouvir música o dia inteiro todo santo dia, devia ser isso, pensei, só podia ser isso. E cantei mais. Ele terminou de palitar os dentes, pagou o que tinha de pagar, contando um dinheiro mais amassado que de mendigo, atravessou a rua, entrou na gravadora e fui atrás. Ele subiu uma escada, passou por uma sala forrada de cartaz de artista em toda parede, pegou outro corredor e, lá no fim, entrou numa salinha cheia de tranqueira, pegou uma vassoura e começou a varrer o corredor."
"Pai falou que o mar tem todos os cheiros do mundo, e ondas rebentando mais altas que a gente: – Mas você mergulha furando onda depois de onda, e sempre tem outra onda vindo. Alice perguntou de onde vinham as ondas e, como sempre acontecia com as melhores perguntas, ninguém respondeu."
"Entre um e outro ela se lavava agachada no corredor sobre a bacia, tirando dos galões água numa caneca; enchia a mão em concha e dava tapas entre as coxas abertas, aos poucos enchendo a bacia; até que – bacia cheia – uma janela se abria e um jorro de água varria a noite. Quando o último galão secou, ela avisou – Não tem mais água – mas o homem que entrava até riu: estava coberto de lama seca esfarinhando como escamas falou ora, mais sujo do que estou, dona, só se comesse barro. Ela riu, mas o seguinte não perdoou; ela avisou – Não tem mais água para me lavar – com a mesma voz e o mesmo coração, mas era outro homem e a resposta foi você tem mais de um buraco, não tem? Ele avançou e ela deixou de usar a navalha, simplesmente deixou; e depois outro, e outro, assim até se sentir um brejo vazando por todos os buracos; e afinal ela ainda tinha as mãos; até que acabou também o papel e mesmo as mãos se melecaram tanto que, parecendo por piedade, amanheceu."
"(...) criei coragem e falei: eu queria cantar sempre no seu programa, e também queria gravar um disco. E ele: pode vir de vez em quando, uma vez por mês (...), mas gravar disco não é comigo. Só que tem uma coisa, falei, cantar eu canto sempre que o senhor quiser, mas vim da roça de vez e não tenho onde ficar nem jeito de viver. (...) Aí o homem cresceu, virou para mim com outra cara e disse que cantar ele deixava, mas resolver minha vida só quem podia era eu, e me deu mais um pacote de macarrão, esse não peguei. Dei muito obrigado e saí, eu tinha um sonho e sabia que não ia acontecer nem com todo macarrão do mundo, sabia que era um sonho que da barriga não dependia, mas da cabeça e do coração. (...) Então, conforme desci a escada fui chegando numa decisão: não ia voltar pra roça nem que perdesse as mãos, que até pra mendigar na cidade era melhor que na roça – e prometi: só voltava a viver na enxada se um dia perdesse a voz. No mesmo momento, peguei um vento, de noite já tinha um resfriado no nariz, de manhã uma gripe já bem aninhada no peito."
"Aquilo é uma ponte que você, na cabeça dela, não enxerga o rabo. Me disseram depois que é a maior ponte do mundo, mas eu adivinhei na hora que vi (...) Faltava um mês pra inauguração e aquilo fervia de peão pra cima e pra baixo, você andava esbarrando em engenheiro, serralheiro, peão bate-estaca, peão especializado, (...) volta e meia aparecia algum visitante de terno e gravata, capacete novinho na cabeça, tropeçando em tudo e perguntando bobagem. Um chegou pra mim um dia e perguntou se eu não estava orgulhoso de trabalhar na maior ponte do mundo. Respondi olha, nem sabia que é a maior ponte do mundo, pra mim é só uma ponte. Mas ele insistiu. Pois saiba que é a maior ponte do mundo, e trabalhar nela é um privilégio pra todos nós. Aí eu perguntei nós quem? O senhor trabalha no que aqui?"
"Na esquina, ouvimos Vó chamando e viramos pra trás; lá vinha ela correndo com o vestido até os pés, mancando como se as pernas fossem de madeira, trazia um embrulho. Agachou gemendo na nossa frente: – Batata-doce que assei no forno. (...) Aí pegou nossas cabeças e juntou com a dela, falou baixinho pra gente obedecer o Pai e tomar muito cuidado com a Mãe – Por quê? – porque ela podia perder a cabeça. (...) – Se ela encontrar vocês sozinhos e oferecer algum doce, não comam não. (...) Pai também agachou. (...) – A senhora acha que ela tem coragem? (...) Vó olhou pra ele com uma dó muito funda. (...) – Não é coragem, meu filho, é desatino."
"Então tentaram de tudo novamente, tudo e mais alguma coisa, que aqueles homens não eram de desistir ou não estariam naquela terra naquele tempo; e de novo esquentaram os cabos dos enxadões e as camisas molhavam tanto de chuvisco quanto de suor; e, quando depois de tudo só restava xingar, acabaram quase engolindo os palavrões, xingando baixo, porque se palavrão desencalhasse caminhão, já não estavam mais ali. Enquanto isso, a chuva engrossou de novo, cada um se enfiou na cabine e, meio-dia em ponto, ainda estavam cozinhando raiva com paciência, as mãos nos câmbios metendo marchas paradas e as filas aumentando nas duas pontas do encalhe estrada afora. Se os barrancos não fossem tão altos, os jipes poderiam abrir desvios; mas, mesmo se os barrancos não existissem, existia a mata dos dois lados, alta de doer o pescoço e fechada de cipós. Sabiam bem que o atoleiro era filho das sombras daquela mata; como sabiam que, se não estivesse mais ali a mata, não seria uma terra tão boa de se plantar e nem eles estariam ali, então tornavam a temperar a raiva com paciência e continuava chovendo."
"É um restaurante triste de tão sujo, ao lado de um velho posto de gasolina; uma dona gorda atende no balcão, um moleque espera na caixa registradora. (...) O motorista e o cobrador se lavam e sentam, vem feijão com arroz frio, macarrão quase sem molho, uma bisteca fina e gordurosa, salada de tomate verde com alface murcha. Quase todos os passageiros pedem café com leite e compram pacotes de bolachas. Só o homem de paletó pede almoço. (...) Quando o motorista liga o motor lá fora, o de paletó resolve imitar o cobrador, enfia o bife no pão, deixa dinheiro na mesa e sai, vai até a janela do motorista: – Espera eu comer isto aqui fora, que aí dentro... (...) O motorista ri, desliga o motor. Os passageiros vão voltando para o ônibus, os últimos são o casalzinho; ele entra falando que calor, e ela fala alto que gente, nunca vi gente tão grossa. O motorista ri: – Ainda não viu nada..."
Presentes no livro "Melhores contos" (Global, 2005), de Domingos Pellegrini, páginas 59-60, 126, 40, 49-50, 112, 160, 27-28 e 80 a 82, respectivamente.
Seleta dos contos
01) Última viagem
02) Patê da paixão
03) O encalhe dos trezentos
04) A maior ponte do mundo
05) O último porco
06) Gente-grande
07) Minha estação de mar
08) Carlitos perdeu a graça
09) Volta ao mar
10) Guerra civil
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