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Sete passagens de Conceição Evaristo no livro de contos Insubmissas lágrimas de mulheres

Conceição Evaristo - Foto: Isabela Kassow


“(...) Eu quero viver a grandeza de minha velhice e estou conseguindo sem mentiras, sem falsos remédios. Não quero me iludir com a cruel promessa da devolução de um tempo que já passou. (...)”


“(...) Atília Bessa pousou a mão em minha cabeça e me disse que o meu tipo físico não era propício para o balé. Eu tinha oito anos somente. Só com o passar do tempo, pude entender o que foi dito naquela fala. (...) Uma das professoras organizadoras da festa final me chamou e me perguntou se eu queria encarnar o papel de uma bonequinha preta que cantava e dançava. Dançando, representaria uma personagem de uma história infantil, muito conhecida na época. Feliz, já naquele momento, encarnei o meu papel. Eu era eu mesma, a bonequinha preta. Os ensaios eram feitos no pátio da escola, depois da aula. Ganhei a assistência do público irrequieto que deixou de assistir às aulas de balé da professora Atília Bessa, para me aplaudir desde os ensaios. (...) Um dia, a própria professora Atília Bessa veio assistir aos ensaios, que estavam sob o encargo de outra professora, e elogiou o meu desempenho, dizendo que eu tinha muito jeito para dança. Esperançosa, aguardei que ela me convidasse para ser sua aluna no balé. Aguardei não só o convite dela, mas a oportunidade de ser a bonequinha negra. E ainda esperei, também, alguma explicação sobre as razões da troca por outra menina. Aguardei o porquê da minha substituição, já na semana da festa, quando uma menina branca, pintada de preto, no meu lugar, fingiu ser a bonequinha negra que eu era. Mas nem as dores, as violências sofridas nessa época de infância, cuja compreensão me fugia, tiveram a força de me fazer desistir. (...)”


“(...) Só ali ele se sentia homem, quando toda a sua carne do entre-pernas pulsava em pé. Um dia, comigo, eu ainda na flor madura de meus desejos, paciente, esperava por ele. Como sempre esperei por ele, enquanto meu namorado, meu companheiro, meu amante, meu amado. Ele, o pai de meus filhos, que estava envelhecendo junto comigo. Eu esperava por ele, pelo corpo dele tão conhecido e tão novo. Sim, novo, dado o momento, o instante a ser vivido. E velho, tão velho, dado o tempo que nos percorria. Eu esperava o pouso dele sobre mim, como o descanso de uma ave cansada, que reconhece o aconchego de seu velho ninho. Era só isso, era o que eu esperava. Eu sentia um prazer intenso em cruzar as nossas rugas no emaranhado de nossas peles secas e mornas sob o efeito da maturação do tempo que nos acometia. Era só o que eu ansiava. Só isso tudo. Mas, de repente, ele abandonou o meu corpo na espera e, aos brados, se levantou de mim. Gritava aos quatro ventos o desgraçado que era, repudiava o corpo morto, lamentava a falecida carne de seu falo. Bradava com ódio e pranto contra a sua anunciada morte. E daí, cada vez mais, foi sendo acometido pelo desprazer, pela insatisfação da vida (...) eu tive uma ideia. Me doeu, mas fiz o que acreditei ser preciso fazer. Eu mesma aconselhei ao meu velho que fosse em frente. Que buscasse rejuvenescer o que lhe era tão caro. E, fingidamente, inventei estar em mim uma limitação que não era nem é a minha (...) dei asas ao velho, para que ele, na ignorância, na teimosia, no orgulho ferido de macho, voasse em busca daquilo que não se recupera, o vigor da juventude. (...) E assim fiquei com ele algumas semanas, na casa, do outro lado do córrego. Ele, as jovens mulheres e eu. (...) cuidei financeiramente da sobrevivência de nós quatro enquanto estive por lá. E mais doloroso era perceber que, mesmo vivendo os seus últimos dias, meu velho buscava incessantemente o que, no corpo dele, era a única certeza, o único motivo de ele ser ele: o seu membro. (...)”


My sister, quem tem os olhos fundos, começa a chorar cedo e madruga antes do sol para secar sozinha as lágrimas. Por isso, minha urgência em deixar o meu relato. Gosto de madrugar, de ser a primeira. Nada me garante que a espera pode me conduzir ao que quero. Na espera, temo que os dias me vazem entre os dedos. Só quem tem iamini, primeiramente em si mesmo, se lança pelos caminhos do mundo. Digo mesmo que o tempo é curto, por isso, desde menina, sempre corri. Corria pelo caminho, quando ia para a escola. Correndo, entrava esbaforida pela igreja adentro, assustando o padre e envergonhando a família. Corria, sem motivo aparente algum, pelo chão de nosso sítio. Escalava e descia as montanhas próximas de minha casa, imprimindo urgência a cada passo, como se tudo fosse fugir sob os meus pés. Havia, porém algo que me freava e me deixava quieta, extasiada. Era a contemplação do mapa-múndi. Toda e qualquer lição de geografia, que me trouxesse a possibilidade de pensar a extensão da terra, tinha o feito de amainar os meus desesperados atos de correria. Calmamente, então, eu traçava roteiros de viagens. E me quedava durante horas inteiras, com um atlas nas mãos, imaginando percursos sobre infinitos caminhos.”


“(...) Rose Dusreis se entregava ao balé da vida, numa coreografia moderna, que ela mesma havia criado, a partir de uma dança tradicional de uns dos povos africanos, a que ela havia assistido um dia na região de Kendiá, em uma viagem, como integrante do corpo oficial do balé de sua cidade natal, Rios Fundos; a aprendizagem de Dusreis foi além da dança. Ali ela apreendera o bailado da existência. Dança que os kendianos, em determinados momentos, realizam como celebração da vida, que se inaugura e que um dia qualquer se esvai, como dádiva de uma força maior. Força que rege a vida dos homens, dos animais, das plantas, de tudo que existe. Força que está guardada em nosso corpo, a sua versão visível e que não finda, mesmo quando esse corpo tomba, como se fosse a mais tenra pelugem das asas de um frágil pássaro bebê, flutuando no ar. Essa força não finda, havia me garantido a bailarina, antes de se levantar para a sua dança final. Não finda! Pois o que se apresenta como revelação aos nossos olhos, aos nossos ouvidos, guarda insondáveis camadas do não visto e do não dito e eu digo do não escrito. Entretanto, sinos de presença subsistem na aparente ausência daqueles que partiram de nós (...)”


“(...) Meus sentimentos tomados, concentrados na entrega do parto, não me deixaram perceber que o pai de minha menina se retirava, nos deixando um eterno vazio. Não sei o porquê da renúncia dele em continuar conosco. Não sei e nunca saberei. Não tenho respostas, só perguntas. Será que, ao tentar adivinhar o rosto da criança que estava nascendo, uma perturbadora visão lhe turvou a coragem de continuar vivendo? O que levou o meu companheiro a se matar, no momento exato dos primeiros gritos anunciadores da vida de Gaia Luz, a nossa filha? Vida e morte se conjugaram no mesmo instante. Gaia nascia e o pai dela aspirava à morte, em nossa casa, trancando-se propositalmente na cozinha invadida pelo gás aberto por ele. Morreu sem conhecer o rosto e os olhos da filha. Por quê? Por quê? Minha filha pergunta tanto quanto eu. Muito me dói, quando percebo Gaia Luz contemplando a foto do pai, que ela não conheceu, buscando descobrir, em cada traço do rosto dele, o mistério indecifrável que ele nos deixou. (...)”


“(...) Mamãe (...), com a menor de três anos, todos os dias madrugava e ganhava a cidade, onde trabalhava na casa da família Fontes dos Reis Menezes, os parentes ricos e longínquos de meu pai. Nó familiar inaugurado no tempo em que os homens da casa-grande eram donos dos corpos das mulheres, dos homens e das crianças da senzala. Meu bisavô paterno era filho do Coronel Fontes dos Reis Menezes com Filomena, a escrava de dentro de casa, a mãe preta dos filhos dele. Foi essa a origem do meu sobrenome, que, ao ser dito como Dusreis, nos originalizou e nos apartou daqueles, os Reis de Menezes, que não nos reconheciam nem como parentes distantes. (...)”




Presentes no livro de contos Insubmissas lágrimas de mulheres (Malê, 2016), de Conceição Evaristo, páginas 40, 109-110, 39 a 41, 70-71, 115-116, 84-85 e 112, respectivamente.

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