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Dez passagens de Franciel Cruz no livro de crônicas Ingresia

Franciel Cruz - Foto: Elói Corrêa


“(...) dia 13 de junho de 2013, desembarcaram na cidade exatamente 1.500 homens do Exército, Marinha e Aeronáutica para trabalhar na Copa das Confederações. (...) Todo este arsenal é para garantir a segurança dos turistas, que, uma vez mais, ficarão maravilhados com os encantos e magia desta misteriosa província lambuzada de dendê e de exclusão. Já que entramos nesta seara, então é preciso informar que os excluídos, os nativos, vão ficar sob os cuidados da briosa Polícia Baiana. E o governo deve ter solicitado gente de fora porque parece que os policiais daqui não gostam muito de futebol. Sim, só isso para explicar os motivos de eles terem impedido Carlos Alberto de ir jogar com os amigos na praia de Amaralina, deixando o time da rua Aurelino Silva incompleto, na manhã desta quinta-feira. Só o ódio ao futebol para explicar aquele covarde tiro na nuca do rapaz, que nem antecedentes criminais possuía. (...) Nesta sexta-feira, a prefeitura de Salvador decidiu decretar feriado na próxima quinta-feira, quando completa o sétimo dia do assassinato. Porém, a medida não é em reverência à memória de Carlos Alberto, não. Segundo o alcaide é apenas para ‘evitar transtornos’ na Copa das Confederações. (...) Sim, claro. Os turistas não podem ser incomodados.”


“Tudo na matéria é vileza. Desde a escolha do uso do verbo ‘envolver’, para designar o acidente, até mesmo o final do texto quando a emissora parece fazer uma concessão informativa falando sobre os tais 240 pontos na carteira. Mas isso é algo bem menos incriminador que destacar que o assassino possuía 70 multas, só nos últimos cinco anos. (...) Porém, no texto televisivo, há algo muito mais infame. Ali, o morto é tratado apenas como um ‘homem’ ou ‘operário das obras do Metrô’. (...) tão grave quanto a vil e vã tergiversação sobre o assassinato é a ocultação do cadáver, é a macabra tentativa de tornar a vítima invisível. Ele, José Ferreira dos Santos, de 44 anos, não teve direito nem a seu próprio nome, bem intrínseco assegurado até mesmo pelos códigos civis da vida. (...) As narrativas nas grandes mídias, cotidianamente, arrancam a pele, o nome dos desvalidos, matando-os mesmo depois de já mortos, pelo escondimento, pela deliberada sonegação deste seu direito básico. (...) O desprezo policial, como sói acontecer, contamina e/ou é contaminado pelas diversas outras esferas de poder e da sociedade. A auxiliar de serviços gerais Cláudia da Silva Ferreira, moradora do Morro do Congonha, que, como se observa, tem nome, profissão e residência, transforma-se apenas em uma mulher arrastada pela viatura, segundo os noticiários. (...) o único momento em que há tratamento igualitário entre pobres e ricos, já disse e repito, é na seguinte ocasião: quando um pobre é assassinado ou um rico é detido por tráfico ou algo que o valha, nunca (ou muito raramente) dão-se destaque aos seus nomes. Quando a situação é inversa, isto é, um rico é assassinado e um pobre é preso com uma trouxinha de maconha, aí sabemos toda a árvore genealógica de todos os envolvidos.”


“Nem venham os arlequins e colombinas, com suas perdidas ilusões, dizer que o Carnaval de Salvador atualmente está muito descaracterizado, elitizado, maltratado, violentado, segregado e (agora é a palavra da moda) gentrificado. (...) Com o couro curtido e envelhecido em barris de maresia & chibança, asseguro: o Carnaval baiano sempre foi assim, ó. Infernal, deliciosa e esculhambativamente infernal, caótico, desigual, alegre, arrogante, resistente, combativo, espontâneo, fútil, autêntico, farsesco e original, como é a cidade no resto do ano. Óbvio que tudo isso, no referido período, é levado ao paroxismo. (...) o desmantelo na província é ancestral. Nunca houve uma época paradisíaca na folia baiana. Esta projeção de um Carnaval idílico só existe na cabeça dos escravizados pelo passado. (...)”


“(...) ele, em tom auto-esculhambativo (tem uma doença que o impede de ficar de pé, apesar de, moralmente, estar sempre de pé para a vida), respondeu, com firmeza e gaiatice. ‘Acho que vou ser mais cantor do que meu ídolo, mas só quando eu crescer’. (...) Óbvio que ri do humor ingênuo e cortante, que alguns chamariam de negro. E, meio sem jeito diante de tanta potência na adversidade, perguntei. (...) ‘Meu velho, de onde é que vem esta energia brutal?’ (...) Então, ele largou o xeque-mate. (...) ‘Seguinte. A tristeza não gosta de mim. E quem não gosta de mim eu não dou ousadia’.”


“Nas últimas e regulamentares 24 horas, fiquei me raciocinando todo sobre as diversas chamadas na chincha largadas por Angela Davis. Sim, foi fundamental ouvir a denúncia do complexo industrial carcerário, que, na última década, cresceu de modo avassalador. Foi extremamente importante escutar o alerta sobre a tentativa de captura dos movimentos de direitos civis, que, disse sabidamente, agora é reivindicado pelo Estado como central em suas narrativas sobre democracia. Também foi emocionante a defesa que ela fez do feminismo abolicionista, além do apoio solidário que prestou à árdua luta de Denise Carrascosa nos presídios de nossa besta, bela e excludente cidade. (...) lembrei das trilhas já apontadas por Ruth Landes há quase 80 anos e agora reafirmadas e reforçadas assim por Angela Davis: ‘precisamos conhecer o ancestral poder do feminismo negro preservado dentro da tradição do Candomblé’. (...) É isso. Nosso futuro é uma potência ancestral.”


Franciel Cruz - Foto daqui


“Ele, já quase melado, segurando o último suspiro, tem apenas força para cochichar no ouvido da amada: ‘Onde é o banheiro?’. Mais distraída do que a zaga do Bahia, ela aponta para um recinto situado à esquerda, depois da escada. O sujeito, anda, anda, não, meio que corre, igual àquelas pessoas que participam da marcha atlética, abre a porta e, feliz, solta o esfíncter. (...) O banheiro estava em reforma. Vaso sanitário todo lacrado com fita isolante. Ele, já desesperado, tenta abrir o recipiente enquanto as pessoas começaram a bater na porta pra avisar sobre a situação. Incontrolável, ele caga na pia. Abre a torneira. Não tem água. O que eram simples toques na porta se transforma numa zoada dos infernos (...) Toda a família fala ao mesmo tempo sobre a situação do banheiro, informando que o que tá funcionando fica no segundo andar.”


“Gentil, como todo bom motorista de Soterópolis, ele vira a cara de lado e faz de conta que não escutou aquele meu grito mais aflito (e potente) que o de Edvard Munch. Desesperado, pois precisava (e preciso) garantir o cuscuz com charque para meu rebento, disparo atrás do desinfeliz, confiando na sinaleira que, óbvio, não fecha nunca nos momentos mais importantes da nação. (...) Igual a Corisco, não me rendo. Busco o último fôlego e decido seguir correndo até o ponto seguinte. E (pausa dramática) o improvável acontece. Pessoas vão entrando no ônibus, o sinal fecha e eu, cambaleante, me aproximo de meu objeto obscuro do desejo. (...) Alcanço-o e bato na lataria traseira. O condutor do veículo olha pelo retrovisor com uma cara de fazer inveja ao mais perverso personagem de Sade e avança com o Buzu sem nem esperar o sinal abrir direito. (...) uma moça loira, de sotaque germânico-gaúcho, sai de seu trajeto, cruza duas faixas, estaciona e diz. ‘É muito triste perder um ônibus, assim, depois de correr tanto, né? Entre. Vamos atrás dele.’ (...) Por breves instantes, vivi a ilusão de que aquela loira bela estava interessada neste cabeludo e despenteado locutor. Mas a desgraça da lei de Murphy, que nunca falha, deu novamente o ar da desgraça: quando olhei para o banco traseiro pelo vidro, vi a linda filhinha dela naqueles carrinhos de colo. Então, libertei-me dos pensamentos pecaminosos e aceitei a carona (...)”


“Com o aceno positivo, decido ir pra cima do fato igual a um carrapato. Subo a rua Chile e acompanho o rebuceteio na Praça Municipal. A puliça e os x-9 estão com sangue no olho. Ao perceber que era o alvo, o fotógrafo Milton Mendes, puta velha, passa os filmes adiante. O problema é que o adiante era eu. Olhe a porra. Quer dizer, nem dá tempo de olhar. Ao ver a turba, corro desesperadamente rumo ao Elevador Lacerda. Refugio-me num pequeno cubículo, sala de manutenção, uma zorra desta. Ao me ver ofegante, a moça que estava lá tenta me acalmar. Os canalhocratas de farda passam gritando. ‘Tem que pegar o cabeludo, tem que pegar o cabeludo’. Heroicamente... me mijei nas calças (não é metáfora nem hipérbole. O medo era tanto que até a quantidade de mijo foi pouca). (...) Eles pegaram outro cabeludo. E, de modo criminoso, cortaram o cabelo do rapaz com faca. A simbologia daquele ato vil era ainda mais marcante, pois o cara era negro e usava, com orgulho, dreadlocks, estilo rastafári. Era a tentativa de humilhação em sua forma mais estúpida. (...)”


“A apresentação foi rápida e ela não percebeu o sotaque. Talvez a tímida simpatia do cidadão também tenha contribuído, inicialmente, para que não existissem quaisquer desconfianças ou mal-entendidos. Tal harmonia, porém, só durou o tempo de ela lançar na mesa o primeiro jogo de búzios. Ato contínuo, desferiu para o sujeito um olhar de perplexidade, deixando-o mais perplexo que o próprio olhar dela. (...) ‘O senhor num é baiano, não, né?’ (...) ‘Sou escocês’. (...) E, ela, de bate-pronto. (...) ‘Bem que eu vi que não era baiano. Afinal, os búzios teimavam em mostrar aqui que num tem ninguém querendo entrar em sua semana, dar nota em sua vida, nem querendo saber o que você faz’.”


“(...) A cidade de Salvador tem um dos mais altos índices pluviométricos do Brasil, porém a velhaca urbe foi vendida, literalmente, como uma sucursal do paraíso, onde faz sol o ano inteiro. E o pior. Os nativos não só propagaram essa culhuda, como efetivamente acreditam nela. É mais fácil encontrar um empreiteiro honesto que um morador desta cidade que possua um mísero guarda-chuva para se proteger dos temporais. Aqui é só céu azul e alegria.”




Presentes no livro de crônicas Ingresia (P55, 2018), de Franciel Cruz, páginas 70-71, 77-78 + 207-208, 36, 45, 65, 224, 220-221, 73, 146-147 e 107, respectivamente.

Comentários

CRISTIAN disse…
Excelente livro. Cada pequena história vai nos levando quase que naturalmente para próxima... O estilo peculiar, o bom humor predominante, mas nunca sem a devida crítica e os dois pés na realidade daquela terra "lambuzada de dendê e exclusão", faz a gente rir e pensar sobre alguns de nossos próprios vícios e virtudes também.

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