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Dezesseis passagens de Clarice Lispector nas crônicas de 1969 (parte 1)

Clarice Lispector - foto daqui


“(...) é difícil apurar a pureza: às vezes no amor ilícito está toda a pureza do corpo e alma, não abençoado por um padre, mas abençoado pelo próprio amor.”


“Agora eu conheço esse grande susto de estar viva, tendo como único amparo exatamente o desamparo de estar viva.”


“O cheiro do mar me invadia e me embriagava. (...) O mar de Olinda era muito iodado e salgado. E eu fazia o que no futuro sempre iria fazer: com as mãos em concha, eu as mergulhava nas águas, e trazia um pouco do mar até minha boca: eu bebia diariamente o mar, de tal modo queria me unir a ele. (...) Mudávamos de roupa, e a roupa ficava impregnada de sal. Meus cabelos salgados me colavam na cabeça. (...) No bonde a brisa ia secando meus cabelos duros de sal. Eu às vezes lambia meu braço para sentir sua grossura de sal e iodo. (...) Meu pai acreditava que não se devia tomar logo banho de água doce: o mar devia ficar na nossa pele por algumas horas. Era contra a minha vontade que eu tomava um chuveiro que me deixava límpida e sem o mar.”


“(...) tenho um milagre, sim. O milagre das folhas. Estou andando pela rua e do vento me cai uma folha exatamente nos cabelos. A incidência da linha de milhões de folhas transformadas em uma única, e de milhões de pessoas a incidência de reduzi-las a mim. Isso me acontece tantas vezes que passei a me considerar modestamente a escolhida das folhas. Com gestos furtivos tiro a folha dos cabelos e guardo-a na bolsa, como o mais diminuto diamante. Até que um dia, abrindo a bolsa, encontro entre os objetos a folha seca, engelhada, morta. Jogo-a fora: não me interessa fetiche morto como lembrança. E também porque sei que novas folhas coincidirão comigo.”


“O que chamo de morte me atrai tanto que só posso chamar de valoroso o modo como, por solidariedade com os outros, eu ainda me agarro ao que chamo de vida. Seria profundamente amoral não esperar, como os outros esperam, pela hora, seria esperteza demais a minha de avançar no tempo, e imperdoável ser mais sabida do que os outros. Por isso, apesar da intensa curiosidade, espero.”


“De algum modo tudo é feito de terra. Um material precioso. Sua abundância não o torna menos raro de sentir – tão difícil é realmente sentir que tudo é feito de terra. Que unidade. E por que não o espírito também? Meu espírito é tecido pela terra mais fina. A flor não é feita de terra?”


“(...) O hábito que temos de olhar através das grades da prisão, o conforto que traz segurar com as duas mãos as barras frias de ferro. A covardia nos mata. Pois há aqueles para os quais a prisão é a segurança, as barras um apoio para as mãos. Então reconheço que conheço poucos homens livres.”


“Também seria inesgotável escrever sobre beber mal. Bebo depressa demais, e não há alternativas: ou praticamente adormeço dentro de mim e fico morosa, pensativa sem que um pensamento se esclareça como descoberta, ou fico excitada dizendo tolices do maior brilho instantâneo. Mas – mas há um instante mínimo nesse estado em que simplesmente sei como é a vida, como eu sou, como os outros são, como a arte deveria ser, como o abstracionismo por mais abstrato não é abstrato. Esse instante só não vale a pena porque esqueço tudo depois, quase na hora. É como se o pacto com Deus fosse este: ver e esquecer, para não ser fulminada pelo saber.”


“Ela não podia olhar para seu pai quando ele tinha uma alegria. Porque ele, o forte e amargo, ficava nessas horas todo inocente. E tão desarmado. Oh Deus, ele esquecia que era mortal. E obrigava a ela, uma criança, a arcar com o peso da responsabilidade de saber que os nossos prazeres mais ingênuos e mais animais também morrem.”


Clarice Lispector - foto daqui


“Desde que começou a envelhecer realmente começou a querer ficar em casa. Parece-me que achava feio passear quando não se era mais jovem: o ar tão limpo, o corpo sujo de gordura e rugas. Sobretudo a claridade do mar como desnuda. Não era para os outros que era feio ela passear, todos admitem que os outros sejam velhos. Mas para si mesma. Que ânsia, que cuidado com o corpo perdido, o espírito aflito nos olhos, ah, mas as pupilas essas límpidas. (...) antigamente no seu rosto não se via o que ela pensava, era só aquela face destacada, em oferta. Agora, quando se vê sem querer ao espelho, quase grita horrorizada: mas eu não estava pensando nisso!”


“(...) Fui esquecendo minha dor e olhando os santos da igreja. Todos tinham sido martirizados: pois este é o caminho humano e divino. Todos tinham desistido de um vida maior em prol de uma vida mais profunda e mais machucada. Todos não tinham ‘aproveitado’ da única vida que nós temos. Todos tinham sido tolos, no sentido mais puro da palavra. E todos haviam sido perpetuados para sempre, para o nosso coração sedento de misericórdia.”


“(...) em todas as outras convidadas, uma naturalidade fingida. Quem sabe, se fingissem menos naturalidade ficassem mais naturais. Ninguém ousaria. Cada uma tinha um pouco de medo de si própria, como se se achasse capaz das maiores grosserias mal se abandonasse um pouco. Não: o compromisso fora o de tornar o almoço perfeito. (...) Quem fuma, fuma; quem não fuma, não fuma. Todas fumam. A anfitrioa sorri, sorri, cansada. Todas enfim se despedem. Com o resto da tarde estragada. Umas voltam para a casa com a tarde partida. Outras aproveitam o fato de já estarem vestidas para fazer alguma visita. Só Deus sabe, se não de pêsames. Terra é terra, come-se, morre-se.”


“E houve a amiga. Ela estava com ciúmes. E não suportei bem: o ciúme dela exigia. Então falei claro: disse-lhe que ela podia estar estragando uma amizade que poderia durar a vida inteira. Ela sofreu e, por amizade pura, resolveu desistir de mim. Depois me disse que a amizade verdadeira sabe desistir. Mas eu não desistira.”


“(...) Sua surpresa é como se não tivesse pensado no dia de hoje o pensamento que só no dia de hoje viria. O que ele teria pensado ou feito hoje não poderia ter pensado ou feito nem ontem nem amanhã (...) Sentia que havia um tempo inadiável correspondente a cada momento. Todo o seu esforço era o de conseguir que essa espécie de hora correspondesse à própria hora que não se perca.”


“(...) Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais completa quando não entendo. Não entender, do modo como falo, é um dom. Não entender, mas não como um simples de espírito. O bom é ser inteligente e não entender. É uma benção estranha, como ter loucura sem ser doida. É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice.”


“E tantas vezes não consegui o encontro máximo de um ser consigo mesmo, quando com espanto dizemos: ‘Ah!’ Às vezes esse encontro consigo mesmo se consegue através do encontro de um ser com outro ser.”


Presentes no livro “Todas as crônicas” (Rocco, 2018), de Clarice Lispector, páginas 213, 236, 194-195, 188, 235, 196, 229, 228, 195, 225, 191, 221 a 223, 226, 205, 197 e 233, respectivamente.

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