Wesley Correia - Foto: José Simões Tognasca
Minhas filhas
Wesley Correia
Quando a dor chegar,
navalha em histeria,
saibam, minhas filhas,
todo corte há de fechar
como a noite se fecha
em face do novo dia.
Minhas filhas, fantasmas
nascerão da vossa ilusão,
mas não se atemorizem.
Deixem que se abriguem
na luz de vossas fantasias,
posto que sentem medo
e já não podem com o ermo
de tantas vidas vazias.
Minhas filhas, paciência,
que um fruto para maturar
tem seu tempo e cadência,
e se acontecer de mirrar
terá sido na exata frequência.
Minhas filhas, atenção:
não cedam à tentação
de querer resolver os
problemas do mundo.
Antes, tentem resolver
os seus, o que já exige
um esforço profundo.
Chorem se tiver de chorar,
lutem se tiver de lutar,
gritem se tiver de gritar,
calem se tiver de calar,
avancem se tiver de avançar,
recuem se tiver de recuar,
mas tenham esperanças,
minhas filhas,
virtude maior não há
do que saber esperar.
Vão à praia
num domingo de sol,
minhas filhas,
e sejam felizes.
Mas, se não quiserem,
minhas filhas, não vão,
e sejam igualmente felizes
num domingo de sol,
que a praia inteira
estará à vossa disposição,
de verão a verão.
Sejam honestas,
minhas filhas,
paguem as contas,
estejam no trabalho,
rezem às santas...
Mas, ainda que atrasem
os pagamentos,
que faltem ao serviço
ou deixem de suplicar,
nem por isso,
minhas filhas,
fiquem tontas:
às favas, as contas,
aos ares, o trabalho,
às santas, o descanso,
que a máquina do mundo
segue sendo o que é,
como segue expiando a vida
na mais pura profissão de fé.
Fiquem certas de que o amor virá,
fiquem certas de que o amor irá,
e ainda mais certas
de que outro amor chegará.
Se queiram bem,
minhas filhas,
para que vosso bem
quebrante o espírito
de quem não o tem.
Minhas filhas,
não preguem tantas certezas
não guardem tantas dúvidas,
caminhem com leveza,
pois nesse ir e vir,
tudo se conforma no próprio existir,
desde a hora de chegar
até a hora de partir.
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Corpo morto de meu pai
Wesley Correia
sobre o corpo morto de meu pai,
os lapsos desintegraram
e a consciência se elevou diáfana
na tarde de um domingo sem fim.
tão imorredouro era o corpo sem vida,
tão farto o sangue na carne insepulta,
que nem o fluxo do soro estancava
no íntimo das veias jazidas
nem a bexiga morta deixava de mijar.
tão esfuziante era o corpo morto
na rubra intimidade a apodrecer,
que as paixões mais assombrosas
do mundo desejaram nele se abrigar:
suplantado o indefinível hiato político,
o preço do gás,
o vigor dos verbos guardados,
o ranger das portas,
o cão mudo com fome,
as provas de amor,
superados a lágrima e o riso,
o presságio,
o sintoma de beleza distante,
e o “como vai?”
a fulgurar na manhã vulgar.
somente a humanidade incauta
que exalou do corpo morto de meu pai
é o que é para sempre.
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Imaginário
Wesley Correia
Pende entre minhas pernas pretas
um mito gorduroso,
quase impossível de carregar.
E na sua plena atividade,
na diabólica plasticidade,
me arqueia o dorso,
me alquebra o corpo
até interditá-lo.
E na sua robustez de mito,
me debilita a frágil saúde
ainda mais,
nas suas dimensões de mito,
me diminui a forma
ainda mais,
na sua centralidade de mito,
me reduz a toda solidão
do cais.
Por isso, não morram
se eu resolver
extirpá-lo amanhã.
É que minhas pernas pretas
marcham melhor
sem o seu peso incômodo,
minha cabeça preta
se equilibra melhor
sem o seu peso incômodo,
todo o meu corpo preto
se ergue maior
sem o seu peso incômodo.
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Questão de vala
Wesley Correia
resiste à pólvora odiosa
o corpo abnegado de Marielle,
o corpo compassivo,
suspenso em flor.
resiste a espumosas rotas de sangue
inscritas em mares de horror,
resiste à vida abreviada,
esquecida entre as histórias
de tantas vidas preteridas.
seja, enfim, questão de vala:
quanto fala
a bala
que nos cala?
não pode conter o chumbo certeiro
o corpo abnegado de Marielle,
não pode conter os projéteis
que se desviam dos prédios da zona sul,
que se afastam dos carros de luxo,
que contornam os bem nascidos,
e vão alijar uma outra existência
já tão relegada à negação,
já tão calejada de nãos.
seja, enfim, questão de vala:
quanto fala
a bala
que nos cala?
se assim vive, embora varado,
o corpo abnegado de Marielle,
o corpo compassivo,
suspenso em flor,
é porque aprendeu a enganar o fim,
tendo de suportar a dor mais doída
e se alimentar de si nos dias de fome,
teve de tatuar o etéreo nome
na carne viva da memória
a que nenhum fuzil pode matar.
seja, enfim, questão de vala:
quanto fala
a bala
que nos cala?
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Ode ao amor cruel
Wesley Correia
A memória
do teu cheiro
insiste
em me amar.
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“Teu homem não virá.
Nem hoje
nem amanhã
nem depois.
Ama-te, por fim, e sê tu teu próprio homem,
e escandaliza-te com as seivas
de teu corpo transbordante, e ria-se da entrega, e
beije-te a boca, e envolve-te no teu próprio
abraço, e aquece-te no teu calor,
e goza contigo, que teu homem aí está.”
“hoje, não se enviará e-mail.
a paleta de cores do coração
do homem livre pousará
em tuas mãos
e tu comporás
o sonho da vida.
hoje, não chegarão
mensagens de áudio.
tocarás a face da mulher triste,
o desejo te aquecerá os olhos,
e, como num pequeno milagre,
o amor te salvará.
hoje, post algum será publicado.
será dia de bolo confeitado:
dia de filtrar teu cansaço,
dia de vencer tua prostração,
dia de não morrer sozinho.”
“Mirar o Verbo usurpado,
plantar na sua paisagem inóspita
um outro horizonte,
feito do revés do silêncio
de quando arrancaram tua língua.
Desanuviar o Verbo usurpado,
expulsá-lo da espessa garganta,
prenhe de desejos,
e contemplar a ranhura
que seus pés dançantes realizam
na roda do Tempo.”
Presentes no livro de poemas “laboratório de incertezas” (Malê, 2020), de Wesley Correia, páginas 29, 25, 35, 39 e 45, respectivamente, além dos trechos dos poemas “Teu homem” (p. 24), “atravessamentos de um homem-vento” (p. 33) e “O Verbo usurpado” (p. 27), presentes na mesma obra.
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