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Dez passagens de Arthur Dapieve na biografia Renato Russo — O Trovador Solitário



“(...) No Rio, o segundo LP foi lançado na Noites Cariocas, danceteria no alto do Morro da Urca, em dois finais de semana consecutivos no final de agosto de 1986. O primeiro teve casa cheia, isto é, algumas centenas de pessoas, mas o segundo... Dava para se assistir aos shows confortavelmente, com os cotovelos apoiados no tablado – pois não havia nenhuma espécie de grade de isolamento ou cordão de seguranças – e ver Renato ler a ordem das canções no papel pregado ao chão com fita crepe, no intervalo entre suas sessões de dança oligofrênica, desconjuntada. Dado, tímido, só não tocava sua guitarra de costas para a plateia porque seria falta de educação. No outro canto do palco, Negrete dedilhava seu baixo, quieto, catatônico. E Marcelo, lá atrás, na bateria, vibrava sozinho. Quatro personalidades bem distintas. Os punks que pogavam, naquela curiosa combinação de dança e kickboxing, ficavam mais atrás na pista vazia e, lá atrás, nas arquibancadas, esparramavam-se uns gatos pingados. Nesse cenário, ficava realçada a impressão – passada pela Legião Urbana mesmo em estádios hiperlotados – de que, quando Renato cantava, estava se dirigindo a cada pessoa em particular, não a uma massa indistinta, não a uma vala comum de sentimentos. ‘Ei, esse cara está falando é comigo!’, era o sentimento de todo e qualquer espectador.”


“(...) durante toda a sua vida, a sétima arte seria para Renato uma obsessão tão grande, ou quase tão grande, quanto o rock’n’roll. Tanto que ele a encarava como um desdobrar natural de sua vida artística. Meticuloso como era, traçara um plano para si mesmo: até os 40 anos, levaria adiante a Legião Urbana; dos 40 aos 60, se dedicaria ao cinema; daí em diante seria um escritor.”


“‘Renato fazia shows belíssimos, apesar do Cointreau, apesar do Lexotan’, se admiraria Rafael. O empresário se preocupava não só com sua saúde mas com seu estado de espírito porque identificava nele um comportamento comum aos grandes astros, não só os do rock, como Elvis Presley e Janis Joplin: ‘Milhões me querem mas eu estou sozinho em meu quarto.’ Era uma nova versão, negativa, do Trovador Solitário. Alimentava um círculo vicioso. Como Dado e Marcelo tinham suas próprias vidas, levavam suas famílias, aproveitavam as manhãs e tardes ociosas no Nordeste, para fazerem pequenas excursões, irem à praia. Não se tratava mais de uma turma de adolescentes que fazem tudo juntos, em bando. Essa constatação envenenava o espírito de Renato. De certa forma, ele sentia inveja da vida social dos outros. (...) Renato chegou cheio de adrenalina ao hotel, não conseguiu dormir e passou a noite inteira bebendo. Ao amanhecer, os outros músicos, que haviam conseguido botar a cabeça no travesseiro, se organizaram em passeios de jipe por Natal e cercanias. Saíram cedo, 8h ou 9h. Quando Renato chegou ao bar à beira da piscina, descobriu que estava praticamente sozinho. E promoveu um quebra-quebra. Começou pelo equipamento de som. Rafael acordou e tentou contornar a situação. Em vão. Renato estava furioso, pois parecia entender os momentos de lazer como descaso profissional. Suas expectativas com a turnê eram maiores que as dos outros. Sua vida era aquilo. Ele era o artista em tempo integral. ‘Ah, é? Tá todo mundo gostando, tá todo mundo se divertindo?’, era a postura. ‘Então acabou...’ E assim a turnê V foi precocemente encerrada, deixando a ver navios cidades como Manaus e Belo Horizonte, datas já marcadas. ‘Ele se achou tão solitário, tão sozinho, que culpou a todos’, contaria o empresário da Legião.”


“(...) Sabe os versos ‘Feche a porta do seu quarto/ Porque se toca o telefone pode ser alguém/ Com quem você quer falar/ Por horas e horas e horas’? Esse alguém era Renato. Ligava para as pessoas – amigos, colegas de trabalho, os próprios pais – nas horas mais insólitas, alta madrugada. Para jogar conversa fora, discutir problemas na produção de um disco, ler entusiasmado letras que acabara de concluir ou, ao menos, de deixar numa forma palatável para seu aguçado senso autocrítico. Trabalhava duro, o tempo todo. Partia de uma ideia captada aqui ou ali, jogava frases nem sempre muito conexas no papel, estabelecia elos entre elas e ia retrabalhando, burilando, lambendo a cria. Quando achava que ela já podia ser lambida pelos outros também, tome telefonema. Denise [Bandeira] ouviu várias primeiras partes. Normalmente adorava. ‘Mas uma vez ou outra quando eu fazia uma observação sobre uma frase ou outra de que eu não gostava muito, aí é que ele defendia mesmo a tal frase com unhas e dentes’, descreveria. Entre as letras que no decorrer dos anos de amizade ouviria na íntegra, já na brilhante forma final, estavam ‘Pais e filhos’ (de As quatro estações, 1989) e ‘Perfeição’ (de O descobrimento do Brasil, 1993).”


“(...) Os três entendiam-se muito bem. Fechavam-se na sala do Brasília Radio Center e começam a jam. Normalmente a partir de uma batida de bateria. Às vezes de uma linha de baixo ou de um riff de guitarra. Iam em frente até trombar com alguma coisa que, devidamente burilada, ganhava uma letra, possivelmente esboçada nos cadernos de Renato. Era um processo de composição tranquilo, instintivo, mas que não raro resultava em compassos inteiramente malucos. Súbito a música mudava de andamento antes de voltar para o tempo original. E, no entanto, se movia. A palavra é batida mas ainda vale: havia uma química poderosa ali. Talvez porque fossem pessoas de temperamentos musicais inteiramente distintos: Renato tinha a intuição, bolava coisas impossíveis na teoria que davam certo na prática; Marcelo era meio místico, achava que era tudo questão de captar as melodias e climas; e Dado trazia com ele a razão, volta e meia repetindo que ‘música é matemática’.”


Arthur Dapieve (frame daqui)

“Renato trabalhou deliberadamente para tornar suas letras as mais universais e inclusivas possíveis, as menos regionais e datadas possíveis. ‘Em Nagoia ou Vila Rica’, disse-me. Ele se projetou no tempo e no espaço. Em suas letras, há instruções bastante detalhadas sobre como enfrentar as dores do crescimento. Como acontece com a obra de Bob Dylan, e Renato adoraria essa comparação, ouvir a esmo os seus versículos nos proporciona pequenos momentos, se não de iluminação, de reflexão. Ainda me pego pensando ‘o que Renato diria disso?’. Só para perceber que ele já disse. É só sintonizar na música certo do álbum certo. Tenho certeza de que está lá.”


“O flerte com o messianismo era um caminho que, diante da confusão e de suas consequências na mídia, parecia particularmente preocupante. ‘Um belo dia, o público vai descobrir que o seu ídolo tem pés de barro, e é uma coisa muito dolorosa porque messias não existem’, alertava. (...) ‘Eu gosto de acreditar que as pessoas compram [nossos discos] porque elas sentem e percebem que eu sinto e percebo exatamente aquilo que elas sentem e percebem’, afirmava, tentando explicar sua popularidade. (...) Apesar de toda a pressão, Renato dava mostras de seu bom humor, uma característica que o estereótipo do poeta atormentado tentaria varrer para baixo do tapete nos anos por vir. Entre menções ao budismo e a Sócrates, ele brincava com suas próprias frases. ‘Eu não encontro respostas. No máximo, encontro um consenso. Porque as perguntas são as mesmas’, dizia. Fazia uma pausa dramática, pensava e arrematava: ‘Eu falo umas coisas tão lindas, né?’ Gargalhadas gerais no salão da cobertura da EMI.”


“(...) Passou seis meses de cama, seis meses andando de cadeira de rodas, seis meses se movimentando de muletas, um ano e meio sofrendo. (...) Contudo, o período no estaleiro não deixara de ter um lado produtivo. Renato leu como um louco e decidiu se interessar ainda mais seriamente por música. Chegou a criar uma banda fictícia para se distrair no seu quarto de paredes cobertas de fotos, a 42nd Street Band, na qual o cantor/alter ego se chamava Eric Russell. Esse sobrenome, compartilhado por um de seus pensadores favoritos, o inglês Bertrand Russell, e sonoramente parecido com duas outras fontes de admiração, o também filósofo Jean-Jacques Rousseau e o pintor primitivista Henri Rousseau, ambos franceses, acabou resultando no ‘Russo’ que adotaria, alguns poucos anos depois, como sobrenome artístico.”


“Então, no final de 1990, veio a internação e, em meio a isso, a descoberta da Aids. Mas se a vida estava fadada a ser breve, a arte seria longa. ‘Renato era um artista 24 horas por dia’, diria Rafael. Logo ele se reergueu e começou a reprocessar tanta informação. Em janeiro de 1991, para espairecer e pensar no que fazer da vida, assistiu a alguns shows do festival Rock in Rio 2, realizado no Maracanã, entre os dias 18 e 27. Até ali os discos da Legião Urbana obedeciam a um ciclo, sístoles e diástoles, altos e baixos, de certa forma associados ao estado de espírito de Renato. Dessa forma, Legião Urbana tinha sido um disco para fora, político. Dois, para dentro, pessoal. Que país é este, novamente para fora, explosivo. As quatro estações, outro disco para dentro, sereno. Por isso, seria mais ou menos lógico que o quinto disco fosse de novo para fora, político, explosivo. O álbum que emergiria das brumas da Era Collor e da Aids, contudo, seria um drible nessas expectativas. Produzido por Mayrton Bahia e pela banda, V conseguiria a proeza de ser conceitual (mesmo sucedendo a um disco que emplacara nada menos que seis de suas 11 faixas como hit singles nas rádios), de ser pessoal (mesmo refletindo a política de terra arrasada da República de Alagoas) e de ser político (mesmo se referindo pouco implicitamente à terra de ninguém das drogas).”


“Naquele 11 de outubro de 1996, quando Lilian Witte Fibe e William Bonner chegaram à redação do Jornal Nacional, a decisão de dedicar metade do tempo do telejornal à vida e à morte de Renato Russo já estava tomada havia horas. Havia sido tomada pelo editor-chefe Mario Marona, com a aprovação do diretor de Jornalismo da emissora, Evandro Carlos de Andrade. Quase dois anos depois, ninguém menos que Frank Sinatra mereceria a mesma deferência. O próprio Marona, um gaúcho baixinho e enérgico, pesquisara imagens de arquivo para ilustrar a trajetória de Renato e da Legião Urbana. Na reunião das 14h, além dele, de Lilian e de Bonner, estavam presentes mais vinte pessoas. Ninguém na sala tinha dúvidas da importância de Renato. Lilian, porém, não ligava imediatamente o nome à obra. Rock não era a sua praia, sua geração. Algumas pessoas citaram títulos de músicas da Legião, e logo a apresentadora descobriu que conhecia mais da banda do que julgava conhecer. Mesmo assim, para reforçar, Bonner disse brincando que, se Lilian quisesse, ele poderia recitar todos os 159 versos de ‘Faroeste caboclo’ ali mesmo, no ato. Ante a ameaça de demissão coletiva, o apresentador não os recitou.” 


Presentes na biografia “Renato Russo — O Trovador Solitário” (Agir, 2020), de Arthur Dapieve, páginas 93-94, 27-28, 130-132, 85, 63-64, 12-13, 106, 30, 121-122 e 18-19, respectivamente.

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