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Os melhores versos de Belchior

Belchior

Em maio desse ano, tive o prazer de me dedicar à obra do cantor e compositor cearense Belchior (1946-2017), ouvindo a sua discografia por vários dias, para elaborar a “Seleta: Belchior” [uma playlist com as 80 músicas que mais gosto]. Autor do melhor disco de música brasileira de todos os tempos, “Alucinação” (1976), dono de uma das mais singulares vozes já ouvidas no canto da América Latina, Belchior arrebentava nas letras, poeta de mão cheia, ácido, contestador, filosófico, amoroso. Sou fã! Daí, assim como fiz com Renato Russo em 2021 [leia aqui], elaborei uma seleta com os melhores versos do cantapensador cearense. Leia abaixo, formatados como prosa, na ordem cronológica dos discos. [Quer saber qual é a música de cada verso? Escute os discos e encontre!] Viva Belchior! Eterno!

“Alucinação” (1976)

“Minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo, tudo, tudo, tudo o que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais”

“A única forma que pode ser norma, é nenhuma regra ter, é nunca fazer nada que o mestre mandar, sempre desobedecer, nunca reverenciar”

“A minha alucinação é suportar o dia a dia e meu delírio é a experiência com coisas reais”

“Sons, palavras, são navalhas, e eu não posso cantar como convém, sem querer ferir ninguém. Mas não se preocupe, meu amigo, com os horrores que eu lhe digo; isto é somente uma canção, a vida realmente é diferente, quer dizer, ao vivo é muito pior”

“No presente a mente, o corpo é diferente, e o passado é uma roupa que não nos serve mais”

“Amar e mudar as coisas me interessa mais”

“Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro. Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”

“Eu sou como você”

“Sempre é dia de ironia no meu coração”

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“Coração Selvagem” (1977)

“Meu bem, o meu lugar é onde você quer que ele seja. Não quero o que a cabeça pensa, eu quero o que a alma deseja”

“Deu a vida pelos seus; isto é mais forte que a morte, mais importante que Deus”

“Eu tenho medo de abrir a porta que dá pro sertão da minha solidão”

“Eu nasci lá numa terra onde o céu é o próprio chão”

“E no escritório em que eu trabalho e fico rico, quanto mais eu multiplico, diminui o meu amor”

“Eu estou muito cansado do peso da minha cabeça”

“Não sou feliz, mas não sou mudo. Hoje eu canto muito mais”

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“Todos os Sentidos” (1978)

“Enquanto houver espaço, corpo, tempo e algum modo de dizer não, eu canto”

“No centro da sala, diante da mesa, no fundo do prato, comida e tristeza. A gente se olha, se toca e se cala, e se desentende no instante em que fala”

“Quem não tem sucesso ou grana tem que ter sorte bastante para escapar salvo e são das balas de quem lhe quer bem”

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“Belchior ou Era uma Vez um Homem e Seu Tempo” (1979)

“Olho de frente a cara do presente e sei que vou ouvir a mesma história porca. Não há motivo para festa. Ora esta, eu não sei rir à toa. Fique você com a mente positiva, que eu quero a voz ativa, ela é que é uma boa”

“Não eu não sou do lugar dos esquecidos. Não sou da nação dos condenados. Não sou do sertão dos ofendidos. Você sabe bem. Conheço o meu lugar”

“O que é que eu posso fazer, um simples cantador, das coisas do porão? Deus fez os cães da rua pra morder vocês, que, sob a luz da lua, os tratam como gente, é claro, aos pontapés”

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“Objeto Direto” (1980)

“A mente quer ser, mas querendo erra, pois só sem desejos é que se vive o agora”

“(...) enquanto esses dementes tomam por amantes bombas e usinas, eu canto, eu danço, eu fumo, eu bebo, eu como, eu gozo com essas meninas. E se você vier com essa que sou ingênuo, artista louco, digo eu concordo; eu pinto, eu bordo, eu vivo muito e ainda acho pouco. Por isso é sempre novo afirmar não faça a guerra; faça o amor e viva a vida e seus instintos no poder da flor”

“Contemplo o rio, que corre parado, e a dançarina de pedra que evolui. Completamente sem metas, sentado; não tenho sido e eu sou, não serei, nem fui”

“Eu quero meu corpo bem livre do peso inútil da alma. Quero a violência calma de humanamente amar. Eu quero quebrar o quebranto do permitido e do proibido. E nego o que nega os sentidos direito e dom de gozar”

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“Paraíso” (1982) e “Melodrama” (1987)

“Como uma metrópole, o meu coração não pode parar, mas também não pode sangrar eternamente”

“Quando eu estou sob as luzes, não tenho medo de nada, e a face oculta da lua, que é a minha, aparece iluminada. Sou o que escondo”

“Meu paraíso é a palavra paraíso, é lá toda maneira (nova) de virar a mesa. Qualquer beleza é inventar, é o que ainda não há”

“Sabe, quase que eu ia fazendo a canção tropical que você me pediu, mas quem sou eu, mentalidade mediana, para imitar Jorge Ben?”

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“Elogio da Loucura” (1988) e “Bahiuno” (1993)

“Este papo amarelo de dor que rima com conversa mole de amor, você sabe, eu prefiro a inocência do sexo e a pureza da paixão. Depois do amor, o tédio e a solidão, quem diria? Ontem à noite na cama, me senti arrasado com você me chamando: idiota, bandido, um canalha, indecente, transviado, machão. Ah! Enquanto essas senhoras e esses senhores viram o jogo contra nós e põem o mundo a seu favor, que horror, conversação de marginais sobre terra devastada em meio à nossa guerra civil. Desde Cabral, o Brasil é Brasil”

“Em mim, desse canto daqui, lugar comum, como no assum, azul de preto, o canto é que faz cantar; cresce e aparece em minha vida, e eu me renovo no canto, o pio do povo. Pio, é preciso piar. E a minha voz, rara taquara rachada, vem soul blues, do pó da estrada, e canta o que a vida convém”

“Dancei no pó dessa estrada, mas viva a rapaziada que berrava: amor e paz! Perdão, que perdi o pique, mas se a vida é um piquenique, basta o herói de butique dos chiques profissionais”

“E por falar em política, os meninos de ruas já sentem na pele a verdade nua e crua do que nunca aconteceu. Marginal bem sucedido e amante da anarquia, eu não sou, renegado sem causa, oh, não! E uma dose de amor, esse artigo sempre em falta, cairia muito bem em mim, melhor que a droga do gim lançado em meu cartaz de procurado, de vira-lata de mercado com a pata esmagada por um trem”

“Vim de banda e podes crer, muito jovem pra morrer e velho pro rock’n’roll”

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