Julio Cortázar interferido por Mirdad
“A verdadeira condenação é aquilo que já está começando: o esquecimento do Éden, ou seja, a conformidade bovina, a alegria barata e suja no trabalho e o suor na testa e as férias pagas”
“Agora se dava conta de que, nos momentos mais altos do desejo, não soubera meter a cabeça na crista da onda e passar através do fragor fabuloso do sangue. Amar a Maga fora como um rito do qual já não se esperava a iluminação; as palavras e os atos tinham se sucedido com uma inventiva monótona, uma dança de tarântulas sobre o chão em forma de lua, uma viscosa e prolongada manipulação de ecos. E, durante todo o tempo, esperara dessa alegre embriaguez algo como um despertar, um ver melhor aquilo que o rodeava, fossem os papeis pintados dos hotéis ou as razões de qualquer um dos seus atos, sem querer compreender que se limitar a espera, abolia toda e qualquer possibilidade real, como se, adiantadamente, se condenasse a um presente estreito e mesquinho”
“Os três gostavam, cada um à sua maneira, da leitura comentada, das polêmicas, pelo gosto hispano-argentino de querer convencer e jamais aceitar a opinião contrária. Adoravam, ainda, as possibilidades inegáveis de rir como loucos e se sentir acima da humanidade lastimosa, sob pretexto de ajudá-la a sair da sua fedorenta situação contemporânea”
Julio Cortázar e o amor novo
(foto da esquerda: Suzanne Bouron)
“Durante toda essa tarde, Oliveira assistiu, outra vez, uma vez mais, uma de tantas vezes mais, testemunho irônico e comovido do seu próprio corpo, às surpresas, aos encantos e às decepções da cerimônia. Habituado, sem saber, aos ritmos da Maga, de repente um novo mar, uma agitação diferente o arrancava aos automatismos, confrontava-o, parecia denunciar obscuramente a sua solidão, enredada de simulacros. (...) Encanto e desencanto de passar de uma boca para outra, de procurar com os olhos fechados um pescoço onde a mão dormiu, recolhida, e sentir que a curva é diferente, uma base espessa, um tendão que se crispa rapidamente com o esforço de incorporar-se para beijar ou morder. Cada momento do seu corpo, diante de um desencontro delicioso, ter de estender-se um pouco mais, ou baixar a cabeça para encontrar a boca que, antes, estava ali perto, acariciar umas ancas mais estreitas, provocar uma réplica e não a encontrar, insistir, distraído, até se dar conta de que era preciso inventar tudo outra vez, que o código não fora seguido, que as chaves e as cifras terão de nascer de novo, ser diferentes, responderem a outra coisa. O peso, o cheiro, o tom de uma risada ou uma súplica, os tempos e as precipitações, nada coincidia, embora fosse igual, tudo nascia de novo. (...) Sendo imortal, o amor brinca de inventar-se, fugindo de si mesmo para regressar na sua espiral surpreendente, os seios cantam de outro modo, a boca beija mais profundamente ou como de longe e, num momento, onde antes havia algo como a cólera e angústia, é agora o jogo puro, a agitação incrível, ou, ao contrário, na hora em que, antes, caía no sono, no murmúrio de coisas doces e ridículas, agora existe uma tensão, algo incomunicado, mas presente, que exige incorporar-se, algo como uma raiva insaciável. Apenas o prazer em seu último esvoaçar é igual; antes e depois, o mundo se fez em pedaços e é preciso criá-lo de novo, dedo por dedo, lábio por lábio, sombra por sombra”
Trechos extraídos do livro O jogo da amarelinha, de Julio Cortázar.
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