Rubem Fonseca (foto daqui)
"(...) Sabe o que é duas pessoas se gostarem? Éramos
nós dois, eu e Maria. Sabe o que é duas pessoas perfeitamente sintonizadas?
Éramos nós, eu e Maria. (...) Minha pedra preciosa preferida é o Rubi. O de
Maria, estás a ver, era também o Rubi. Número da sorte o 7, cor o Azul, dia Segunda-feira,
filme, de Faroeste (...) música o Samba, passatempo o Amor, tudo igualzinho
entre eu e ela, uma maravilha. O que nós fazíamos na cama, rapaz, não é para me
gabar, mas se fosse no circo e a gente cobrasse entrada nós ficávamos ricos. Na
cama nenhum casal jamais foi tomado de tamanha loucura resplandecente, foi
capaz de performance tão hábil, imaginativa, original, pertinaz, esplendorosa e
gratificante quanto a nossa. (...) Se você fosse toda marcada de varíola eu não
deixaria de te amar, eu respondia. Se você fosse velho e impotente eu
continuaria te amando, ela dizia. E nós estávamos trocando essas juras quando
uma vontade de ser verdadeiro bateu em mim, funda como uma punhalada, e eu
perguntei a ela, e se eu não tivesse dentes, você me amaria?, e ela respondeu,
se você não tivesse dentes eu continuaria te amando. Então eu tirei a minha
dentadura e botei em cima da cama, num gesto grave, religioso e metafísico.
Ficamos os dois olhando para a dentadura em cima do lençol, até que Maria se
levantou, colocou um vestido e disse, vou comprar cigarros. Até hoje não
voltou."
"(...) Além de fodida, mal paga. Limpei as joias. A
velha tava no corredor, caída no chão. Também tinha batido as botas. Toda
penteada, aquele cabelão armado, pintado de louro, de roupa nova, rosto
encarquilhado, esperando o Ano-novo (...) Acho que morreu de susto. Arranquei
os colares, broches e anéis. Tinha um anel que não saía. Com nojo, molhei de
saliva o dedo da velha, mas mesmo assim o anel não saía. Fiquei puto e dei uma
dentada, arrancando o dedo dela. Enfiei tudo dentro de uma fronha. O quarto da
gordinha tinha as paredes forradas de couro. A banheira era um buraco quadrado
grande de mármore branco, enfiado no chão. A parede toda de espelhos. Tudo
perfumado. Voltei para o quarto, empurrei a gordinha para o chão, arrumei a
colcha de cetim da cama com cuidado, ela ficou lisinha, brilhando. Tirei as
calças e caguei em cima da colcha. Foi um alívio, muito legal. Depois limpei o
cu na colcha, botei as calças e desci."
"Todos nós, animais de sangue quente, sabemos que tudo
vai acabar."
"Prezado Dr. Nathanael Lessa. Tenho vinte e cinco anos,
sou datilógrafa e virgem. Encontrei esse rapaz que disse que me ama muito. Ele
trabalha no Ministério dos Transportes e disse que quer casar comigo, mas que
primeiro quer experimentar. O que achas? Virgem Louca. Parada de Lucas. (...)
Olha aqui, Virgem Louca, pergunta pra cara o que ele vai fazer se não gostar da
experiência. Se ele disser que te chuta, dá pra ele, pois é um homem sincero.
Tu não és groselha nem ensopadinho de jiló para ser provada, mas homens
sinceros existem poucos, vale a pena tentar."
"(...) chega de pensamento polifásico, pensei, e saí e
fui até o bar e estava na terceira caipirinha quando sentaram numa mesa ao lado
duas garotas e uma foi logo me dizendo, oi. Oi, eu, e peguei meu copo e mudei
de mesa; uma era modelo de anúncio de televisão e a outra não fazia nada. E
você? Sou assassino de mulheres – podia ter dito, sou escritor, mas isso é pior
do que ser assassino, escritores são amantes maravilhosos por alguns meses
apenas e maridos nojentos pela vida afora – e como é que você mata elas? –
veneno, o lento veneno da indiferença – uma se chamava Íris, a que não fazia
nada, e a outra Suzana, me chama de Suzie. Não me lembro de mais nada, fiquei
bêbado e acordei no dia seguinte com ressaca – com menos de trinta anos e já
sofrendo dos lapsos de memória dos alcoólatras, além de ver duplo o meu
palimpsesto depois da quarta caipirinha."
"(...) o destino do campeão é ser desafiado sem trégua."
"Fui para a biblioteca, o lugar da casa onde gostava de
ficar isolado e como sempre não fiz nada. Abri o volume de pesquisas sobre a
mesa, não via as letras e números, eu esperava apenas. Você não para de
trabalhar, aposto que os teus sócios não trabalham nem a metade e ganham a
mesma coisa, entrou a minha mulher na sala com o copo na mão, já posso mandar
servir o jantar? (...) A copeira serviu à francesa, meus filhos tinham
crescido, eu e a minha mulher estávamos gordos. É aquele vinho que você gosta,
ela estalou a língua com prazer. Meu filho me pediu dinheiro quando estávamos
no cafezinho, minha filha me pediu dinheiro na hora do licor. Minha mulher nada
pediu, nós tínhamos conta bancária conjunta."
"(...) quando os defensores da decência acusam alguma
coisa de pornográfica é porque ela descreve ou representa funções sexuais ou
funções excretoras, com ou sem o uso de nomes vulgares comumente referidos como
palavrões. O ser humano, alguém já disse, ainda é afetado por tudo aquilo que o
relembra inequivocamente é o único animal cuja nudez ofende os que estão em sua
companhia e o único que em seus atos naturais se esconde dos seus semelhantes
(...)"
"(...) Ela quer comparar cavalo com cachorro, mas
cavalo não lambe a mão de ninguém. Existem cachorros sem a menor compostura,
como esses lulus de madame. Não é à toa que, quando uma pessoa não presta,
chamam ela de cachorro. O pior pangaré, esses de estações de água, é mais digno
do que qualquer cachorro. São todos uns parasitas esses cachorros. Alguém já
ganhou uma guerra com cachorro? (...) Perguntei a ele se são Jorge era o santo
dos cavalos e Pedro me disse irritado que cavalo não precisava de santo, santo
é que precisa de cavalo."
Presentes no livro de contos "Feliz ano novo" (Saraiva de bolso, 2012), de Rubem Fonseca, página 30-31, 16, 82, 22-23, 74-75, 84, 47, 121-122 e 111, respectivamente.
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