J. J. Veiga (foto daqui)
"O menino sentado à minha frente é meu irmão, assim me disseram (...) A princípio quero tratá-lo como intruso, mostrar-lhe a minha hostilidade, não abertamente para não chocá-lo, mas de maneira a não lhe deixar dúvida, como se lhe perguntasse com todas as letras: que direito tem você de estar aqui na intimidade de minha família, entrando nos nossos segredos mais íntimos, dormindo na cama onde eu dormi, lendo meus velhos livros, talvez sorrindo das minhas anotações à margem, tratando meu pai com intimidade, talvez discutindo a minha conduta, talvez até criticando-a? Mas depois vou notando que ele não é totalmente estranho, as orelhas muito afastadas da cabeça não são diferentes das minhas, o seu sorriso tem um traço de sarcasmo que eu conheço muito bem de olhar-me no espelho, o seu jeito de sentar-se de lado e cruzar as pernas tem impressionante semelhança com o do meu pai. De repente fere-me a ideia de que o intruso talvez seja eu, que ele tenha mais direito de hostilizar-me do que eu a ele, que vive nesta casa há dezessete anos, sem a ter pedido ele a aceitou e fez dela o seu lar, estabeleceu intimidade com o espaço e com os objetos, amansou o ambiente a seu modo, criou as suas preferências e as suas antipatias, e agora eu caio aí de repente desarticulando tudo com minhas vibrações de onda diferente. O intruso sou eu, não ele."
"Quando eu chegava em casa à noite, cansado de correr, lutar ou simplesmente ficar sentado no patamar da igreja ouvindo histórias, encontrava a porta encostada, com uma pedra pesada escorando. Minha mãe estava ou no quarto rezando ou na varanda remendando minhas roupas, e o máximo que dizia é que eu não devia abusar da ausência de meu pai, porque se eu acostumasse ficaria difícil desacostumar quando ele voltasse. E acho que para não parecer que estivesse implicando mudava logo de assunto, dizia que tinha leite morno para mim na pedra do fogão, mas que não esquecesse de lavar os pés primeiro. (...) Deitado na cama, ouvindo minha mãe fazendo ainda uma coisa ou outra pela casa, catando feijão, moendo café para de manhã, eu achava que não estava ajudando muito, como meu pai recomendara, e prometia a mim mesmo mudar de vida. Mas resolver uma coisa deitado é fácil, não dá nenhum trabalho, praticar depois é que é difícil, a gente vai deixando para depois e nunca resolve começar."
"E o manso velhinho continuava esperando, talvez já só pelo hábito, ou pela falta de ânimo de levantar-se para cuidar de outra coisa. Observei-lhe que muito ele devia ter perdido enquanto esteve sentado naquele banco esperando, aliás já bastante puído pelo roçar de seus braços e de suas costas; ele respondeu que exatamente por isso não tinha mais interesse em sair. (...) – Perdi a promessa e perdi a festa – disse suspirando. (...) O que isso queria dizer não fiquei sabendo, mas aquelas palavras, ditas com grande desconsolo, ficaram em meus ouvidos como expressão de total desilusionamento. (...) Pensando em dar-lhe uma compensação tardia, convidei-o a acompanhar-me numa visita à casa (...) Ele olhou-me com total indiferença e disse: – É melhor não. O ouro tem muita tara."
"Mas o delegado já tinha o seu plano e não precisava de sugestão de ninguém; ele apenas esperava que o prazo se esgotasse para tomar suas providências – e talvez até desejasse no íntimo que a ordem fosse desobedecida para ter uma ocasião de impor dramaticamente a sua autoridade. Quando ele consultou o relógio e disse que os sessenta minutos já haviam passado, a multidão automaticamente abriu um corredor entre ele e o poço, com certeza esperando que ele fosse descer pela corda e trazer o professor nas costas. Mas em vez de caminhar na direção do poço ele caminhou na direção da casa! Ninguém entendia mais nada. Então ele estava apenas brincando quando fez a intimação? É claro que o desapontamento do povo não vinha de nenhum desejo de preservar a autoridade, mas do receio de perder algum espetáculo, sensacional ou engraçado. (...) Quando o delegado voltou da sua caleche trazendo uma enorme casa de marimbondos na ponta de um galho de abacateiro, o povo criou alma nova. Era a prova de que uma autoridade experiente pensa melhor do que cem curiosos. Andando devagarinho para não balançar o galho, o delegado chegou à beira do poço e sem mais nenhum aviso soltou lá dentro o galho com os marimbondos."
"(...) descobri que, quando se derruba uma moeda em água corrente, não se deve pensar em recuperá-la. Quem tentar fazê-lo poderá ficar o resto da vida à beira da água retirando moedas. É como se a pessoa 'sangrasse' a areia do fundo da água e depois não conseguisse estancar o jorro de moedas. (...) Talvez eu não devesse ter contado isso a meu pai, pois não era difícil prever o que aconteceria. Ele riu em minha cara, e chamou-me fantasista. Como eu insistisse, ofendido, ele reptou-me a prová-lo. (...) aceitei o desafio, como se tratasse de um ponto de honra. Levei-o à beira de um córrego, mandei-o soltar uma moeda na água – e só à força conseguimos tirá-lo de lá dias depois; e para impedi-lo de voltar, tivemos de interná-lo. Disseram que a culpa foi minha, mas não consigo sentir-me culpado."
"(...) quando a gente é menino parece que as coisas nunca saem como a gente quer. Por isso é que eu acho que a gente nunca devia querer as coisas de frente por mais que quisesse, e fazer de conta que só queria mais ou menos. Foi de tanto querer o cavalinho, e querer com força, que eu nunca cheguei a tê-lo."
"– Bem, esta história do cano anula a minha pergunta a respeito do arpão. Eu vou riscá-la aqui do meu questionário e o senhor me faz o favor de esquecê-la. E acho que não preciso mais do senhor, pelo menos por enquanto. (...) Com isso ele levantou-se e espreguiçou-se sem nenhuma cerimônia, estalando várias juntas do corpo, o que era bem compreensível considerando-se a posição forçada em que ele estivera sentado. Eu quis levantar-me também, mas ele prendeu-me na cama com a mão no peito, e com tanta força que nem pude erguer a cabeça. (...) – Não se incomode por minha causa – disse. – Eu sei voltar por onde vim – e num instante desapareceu na sombra da porta entreaberta. (...) Depois que ele se foi eu refleti na maneira pouco civil do seu aparecimento, na sua insolência em submeter-me a interrogatório, como se eu fosse um réu de algum crime, e fiquei tão furioso com ele, e mais ainda com a minha passividade, que pensei em alcançá-lo na rua, tomar-lhe o papel e rasgá-lo; mas pensei no escândalo, e achei melhor não dizer nada a ninguém."
Presentes no livro "Os cavalinhos de Platiplanto" (Bertrand Brasil, 1995), de J. J. Veiga, páginas 107-108, 97, 56, 84, 63, 29 e 44-45, respectivamente.
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