Ronaldo Correia de Brito (foto daqui)
"Em meio à bagunça da enfermaria, uma foto presa com esparadrapo na parede chama a atenção do médico. O único espólio do ex-jogador, o que restara de seus desacertos, a lembrança feliz. No primeiro plano da imagem, costelas, lombos e vísceras em cima de um balcão gasto. E um garoto risonho sob a placa 'Açougue Sol Nascente'. Os megarefes o acolheram quando tinha catorze anos, depois que perdera o pai, a mãe e duas irmãs, todos com histórias trágicas. Num quartinho de porta única ao lado do açougue, onde fazia um calor dos infernos, estabeleceu seu mundo cheirando a sangue e a carne, povoado de cepos, facas, ganchos, cutelos e muita sujeira. A foto resistiu às viagens, mudanças de domicílio e desgraças. Amassada entre os dedos como as contas de um rosário, exposta ao suor e ao tempo, mesmo assim sobreviveu e ainda fala. Diz que o homem pode dar voltas sem sair do lugar. O 'Sol Nascente', na tosca pintura sobre uma placa de zinco, lembra um sistema planetário. Em torno dele, a vida do jogador nunca parou o seu giro."
"Diante dessas evidências, achando que não encontraria uma única de minhas cantadeiras viva, decidi não retornar ao sertão. Um amigo sugeriu o coro de carmelitas descalças. (...) Fui visitá-las na companhia do sonoplasta. Uma das irmãs tornara-se conhecida pela voz. Conversamos através de uma porta com treliças, deixamos um gravador de boa qualidade e uma cópia da fita original. Indiquei três benditos no cassete, selecionados para o filme, e sugeri que procurassem alcançar a mesma intensidade dramática. Voltei após quinze dias, recebi o gravador de volta, as fitas e um pedido de desculpas. (...) – É impossível a uma irmã reclusa cantar dessa maneira. Deixamos de sentir essas emoções. (...) As vozes arfavam, como se todas as mulheres sofressem falta de ar. O jogo de seduzir a morte tira o fôlego. Sabendo que também iriam morrer, elas cantavam aos berros, porém mesmo assim não ganhavam um minuto a mais de existência. As carmelitas negociavam diretamente com Deus, aboliam das vidas a paixão, nada de manga com farinha em casa de taipa, nem danças em terreiro de chão batido. (...) – Não podemos cantar igual. Não sentimos o que essas mulheres sentem. São dores irreconhecíveis. Dores de parto, de fome, de desamparo. Elas cantam para um Deus que nunca escuta. (...) Cada um por si e Deus contra todos."
"Mariana já não escuta uma única palavra da sobrinha. Lembra que, numa das secas no Ceará, criaram campos de concentração para isolar os retirantes, homens, mulheres e crianças famintos, as cabeças raspadas contra os piolhos, alguns vestidos em sacos de farinha com buracos para enfiar o pescoço. A ordem do governo e dos cidadãos ricos era segregar os miseráveis em currais cercados de varas e arame farpado, próximos às estradas de ferro. Havia sete campos no Ceará. O do Crato fora programado para receber cinco mil pessoas, mas chegou a isolar cerca de vinte mil. Quase todos morriam de fome ou doenças e eram enterrados em covas rasas, até quarenta corpos no mesmo valado, sobrepostos de quatro em quatro. Os cachorros e os urubus revolviam a terra e devoravam a carniça. Os agricultores e pecuaristas percorriam os isolamentos e contratavam os homens mais fortes a troco de uma refeição por dia. Os de sorte levavam a mulher e os filhos junto. Chegaram a ser três vezes mais numerosos que o restante da população do estado. Encurralavam sete mil retirantes em quadriláteros de quinhentos metros e davam a eles um pequeno farnel de rapadura, charque, farinha e café, quase sempre estragado."
"(...) Elvira caminhava para trás, retornava ao breu do útero e perdia até mesmo o arcabouço ancestral de suas imagens, aquilo que trouxera nos genes herdados dos pais mortos e de gerações de humanos e primatas. (...) Consultas, exames e testes cognitivos lembravam os solstícios de verão, quando o dia promete que não haverá noite, mas ao final sempre nos espera o escuro, a fuligem preta das minas. Entrara na ordem de um plano invisível sustentando o visível. A cegueira do esquecimento era o invisível. O que não sabia sustentava o que sabia, por isso tateava em meio às sombras, não como a criança que engatinha para aprender a caminhar, mas como o velho que desaprende levar a colher à boca."
"(...) Tornou-se cada dia mais silencioso, praticando jejum, penitências e rezando sem parar. O pai temeu pelo seu juízo, eram comuns os casos de loucura na família, por conta de casamentos consanguíneos. (...) Num meio-dia de sol forte, quando os pássaros não cantam e o gado busca a sombra das árvores, Jaime pegou uma garrafa de querosene, o mesmo que usava para acender o candeeiro em suas leituras noturnas, e se dirigiu a um riacho seco. Preparou um leito de areia, a mesma usada para levantar a casa dos pais e dar os acabamentos, molhou o corpo com o querosene, deitou na cama improvisada e ateou-se fogo. As pessoas que o encontraram carbonizado disseram que sua determinação em morrer era tamanha que seu corpo nem revolvera a areia em torno dele, permanecendo firme no suicídio martirizado."
"O pasto se acabou, as águas diminuíram, os bois e as vacas morreram, os vaqueiros perderam o trabalho, os aboiadores deixaram de cantar para os rebanhos, os mascates sírios e libaneses não tinham mais a quem vender suas quinquilharias. Os coronéis já não brigavam pela posse da terra infértil, as onças, os veados e as caças maiores foram mortas a tiro, centenas de milhares de aves grandes e pequenas tiveram o mesmo fim. Os ricos empobrecidos migraram, os impérios sertanejos se desfizeram, as casas ruíram. Primeiro migraram os soldados da borracha, em busca de tesouros na longínqua Amazônia. Os agricultores e pecuaristas largaram as esposas e os filhos e saíram atrás de emprego nas cidades grandes, foram edificar Brasília e morrer acidentados na construção civil. Os maridos ausentes mandaram buscar as famílias para viver na periferia das cidades, em bairros mais miseráveis e violentos do que o sertão abandonado por causa da fome. O rádio, a televisão e a internet ocuparam o tempo e a vida dos poucos que ficaram. Os costumes antigos tornaram-se estranhos, a memória se perdeu, a épica sertaneja virou folheto de cordel. Restaram fantasmas, mortos assombrando os vivos."
"Toda noite, quando transponho a porta desse mundo fora de órbita, sinto uma lufada de ar frio no rosto. De início, penso: não vou sobreviver. Mamãe olha para mim e fala que eu devo à morte continuar vivo. Desconheço a promessa feita por ela, me oferecendo em pagamento. Não saldou a dívida, e minhas pernas ficaram inseguras."
"Retilíneo e uniforme ele se moveria eternamente, se nada obstasse seus passos. Mas deixa-se cair nas armadilhas das cidades, onde prefere esconder-se a desfilar por avenidas. Clandestino, investiga móveis empoeirados, reentrâncias de cupins e aranhas, frestas suspeitas. Porém, mesmo seduzido pelas objetivas fechadas, nunca aceitou o anteparo de muros. Ama as aldeias do deserto, as que desmanchando no sopro contínuo das virações. Do topo de um edifício alto, as cidades grandes parecem o brinquedo de uma criança, olhado de cima pelo Pai. As mãos que se ocupam edificando castelos, casas, pontes e torres de relógios, num único movimento de ciclone, desfazem tudo. Uma bomba arremessada sobre Nagasaki e a explosão de fúria, sob o olhar complacente e superior do Pai."
"A chuva ensopou a Zona da Mata e o massapê transformou-se num atoleiro. Há quinhentos anos os canaviais engolem a floresta atlântica, os animais, os pássaros e os homens. Quase nada restou. As folhas verdes compridas, parecendo lâminas cortantes, não se mexem nos dias úmidos sem vento. Não existe aconchego ou sombra nos canaviais, ninguém sente alegria em percorrer as linhas traçadas do plantio, nem mesmo os tratores e as colheitadeiras. Muito menos os homens, as mulheres e as crianças cortadores e arrumadores, que executam no braço o trabalho da lavoura mecanizada. A cana lembra aspereza, coceira e talhos finos na pele. Os usineiros queimam as folhas para diminuir os incômodos. Avistamos o fogo de longe e imaginamos Nero incendiando Roma. A terra esquenta, sobem nuvens escuras ao céu, cai fuligem sobre ruas, jardins e casas. Em Pernambuco, chamam a nuvem preta de malunguinho, nome pelo qual os escravos que vinham da África na mesma embarcação se tratavam. Malungo. Igual a amigo. Amigo? O pó preto das queimadas é amigo? Crianças e velhos sufocam, tossem, são socorridos com asma nas emergências dos hospitais públicos."
"Qualquer paisagem vista através da janela de um carro em movimento parece mais bela do que é na verdade, pois os defeitos se escondem na sucessão de quadros. E se possui águas como o Recife submerso nos rios Capibaribe e Beberibe, que desembocam no Atlântico, a paisagem se umedece, ganha o brilho oleoso das pinturas de Eckhout, trazido à cidade pelo conde Maurício de Nassau para registrar o que poderia desaparecer ou perder a cor. O índio e o negro despidos transformaram-se, ganharam poses e gordura barroca. Até a selvageria perderam. Não são apenas índios e negros brasileiros, mas a criação de um pintor flamengo, que os apresenta à Europa civilizada em retratos carregados nos detalhes exóticos. O pé dentro de um cesto sugere que será comido pela índia. Ela exibe outro repasto, a mão decepada de um inimigo. Ah, esses pintores e seus olhares! Tudo arrumado numa ordem estética que está longe de corresponder ao real, parecendo mais aquilo que o artista deseja que pareça ao europeu. A arte brasileira seria consumida como prato extravagante, desde a carta de Pero Vaz de Caminha até os romances de Jorge Amado. O exocanibalismo. Querem nos comer, mas só depois de nos abaterem com borduna e nos enfeitarem de penas multicoloridas."
Presentes no livro de contos "O amor das sombras" (Alfaguara, 2015), de Ronaldo Correia de Brito, páginas 85, 207 a 209, 25, 70-71, 19-20, 215, 56, 89, 121 e 111, respectivamente.
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