Rodrigo Melo (foto daqui)
"(...) um paciente de uma clínica psiquiátrica caíra ontem, acidentalmente, do sétimo andar. E eu então fiquei a pensar nele. Não no homem destroçado que encontrara da última vez, mas no Roberto de antes, uma espécie de Torquato Neto sem talento, mas endinheirado, a caminhar sobre uma mesa com uma garrafa de uísque na mão: um guia de cegos, perdido, sobre uma corda mais que bamba. Acho que eu gostava dele. Uma hora dessas, pensei, ainda sem compreender porra nenhuma, talvez ele esteja vagando pelo espaço, a decidir pra onde ir, porque talvez sejam muitas as direções. Talvez exista uma porção de caminhos, alguns dando no mesmo lugar. Ou talvez não exista merda nenhuma e, como disse um inglês, a luz no fim do túnel é apenas o trem que vem te atropelar. Mas então um moleque aparece e o segura pela mão. Um moleque gentil e paciente que o norteia e o livra de mais uma estrada cheia de buracos e despenhadeiros, uma estrada que no fim das contas não o levaria a canto algum. E o meu amigo aparenta estar sereno e feliz como se finalmente tivesse entendido a coisa toda, como se não precisasse mais se preocupar, sentir raiva, medo ou qualquer outro troço assim."
"Tem esse cara que já foi um tipo de ídolo na adolescência, mas que hoje vive pedindo grana lá no centro. Basta me ver e logo vem correndo, a sonhar com cinquinho ou até mais, e eu às vezes dou, sem pensar muito no destino daquilo, embora nunca tenha sido um sujeito abonado. Talvez por isso o dinheiro vá embora mais facilmente. (...) De todo modo, hoje, ao passar pela Praça Cairú, ele me viu, gritou e em seguida, numa velocidade incrível, disparou em minha direção. Estacou na minha frente, apertou a minha mão e, quando ia falar algo, eu mandei: – Velhão, me empreste dez reais. (...) Ele ficou parado, sem entender. Alguns segundos se passaram, até que apertou a minha mão mais forte e respondeu, sem jeito: – Agora eu não tenho, mas pode me procurar depois."
"Foi nessa hora que senti pena. Não apenas dele, mas também de mim. Passáramos tempo demais acreditando em letras de músicas, na mágica da vida, na grandeza de existir. Colecionamos histórias que com o passar dos anos perderam a força e o sentido. O mundo mudou, ou pior, continua a mesma merda que sempre foi, nós é que despertamos. Nunca houve mágica, Roberto. A vida é apenas realidade. E os vencedores não somos nós, que miramos o vácuo. Os vencedores seguiram os conselhos dos tios e dos pais. Eles são sócios do iate clube, membros do Rotary e tem conta ativa no Instagram. Os vencedores, meu velho, são os caras que a gente nunca quis ser."
"– Nem um livro de Paulo Coelho custa isso – ele reclamou.
– Quem? – eu perguntei.
– Paulo Coelho – ele repetiu.
– Bem, se você me pagar uma cerveja, o livro é seu. Duvido que o Paulo Coelho faça uma proposta melhor. (...)
Ele sorriu.
Pedi a cerveja à balconista, uma especial, e disse que anotasse também a outra, a que eu bebera antes, na conta daquele sujeito que levantava o braço, todo feliz, lá na mesa do canto (...) Ele, ao pagar a conta, teria a triste surpresa, o baque de cinquenta e poucos reais, e provavelmente faria a maior confusão, quem sabe até rasgasse o meu livro ou qualquer troço assim.
Antes que isso acontecesse, todavia, escrevi-lhe uma dedicatória, apertei a sua mão e, bebericando a cerveja da cor de sangue, parti: intacto, meio bêbado e com os dez reais no bolso. Mais caro que Paulo Coelho."
"Há uma porção de chineses por aí e parece que quase todos têm uma pastelaria. E há cada vez menos cachorros pelas ruas. (...) Por detrás do balcão, com seus olhos de horizonte, suas peles oleosas, seus cabelos negros, cheios e por vezes arrepiados, suas roupas um bocado sujas e ensebadas, eles conversam em seu dialeto e olham para mim, a sorrir. Penso em quantas vezes nos mandam tomar no cu com aquele mesmo sorriso."
"Encenar popularidade nunca fez muito a minha, é bom dizer. Depois da leitura, conversei, misturei-me, abracei, beijei rostos e apertei algumas mãos, mas há tempos descobrira que eu era um homem de duas horas, no máximo duas horas e meia. Depois disso, olhava para os lados, a procurar a melhor saída."
"Ele me disse: – Deus não existe! (...) E me falou sobre os símbolos, as imagens e todo o ópio que o povo escolheu. (...) Na sala da sua casa, no entanto, a fotografia de um ex-presidente e o escudo do time do coração."
Presentes no livro de crônicas "Jogando dardos sem mirar o alvo" (Mondrongo, 2016), de Rodrigo Melo, páginas 24-25, 15, 23-24, 64, 31, 62 e 75, respectivamente.
Seleta das crônicas
01) Jogando dardos sem mirar o alvo
02) Os meus heróis não tiveram grana para morrer de overdose
03) Leitura pública
04) Um encontro fortuito
05) Short cuts 4
06) Não existe amor por aqui
07) A dose a vinte e cinco reais
08) Short cuts
09) Tiny shit!
10) A gente nunca se acostumou a essa loucura que é a vida
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