Conceição Evaristo - foto daqui
“(...) Biliza, como ele e a irmã, viera da roça para a cidade. (...) Trabalhou muito, juntou algum dinheiro com o propósito de voltar em casa para buscar o pai, a mãe e os irmãos. Um dia, não se sabe como, a caixinha de dinheiro que ela guardava no fundo do armário sumiu. Sumiram as economias, o sacrifício de anos e anos. Biliza se desesperou. Ninguém entrava em seu quarto a não ser, de vez em quando, o filho da patroa. Sim, ele era o único que entrava lá, às vezes, quando dormia com ela. Só podia ter sido ele a tirar o dinheiro por brincadeira, para assustá-la talvez. A patroa não gostou da suspeita que caiu sobre o seu filho. Quanto a dormir com a empregada, tudo bem. Ela mesma havia pedido ao marido que estimulasse a brincadeira, que incentivasse o filho à investida. O moço namorava firme uma colega de infância, ia casar em breve e a empregada Biliza era tão limpa e parecia tão ardente. Biliza não encontrou o dinheiro e nunca mais viu o filho da patroa. (...) Moça Biliza se sabia ardente, deitara algumas vezes com os companheiros de roça e alguns saíam mais e mais desejosos dos encontros com ela. Um dia, um homem enciumado chamou Biliza de puta. A moça nem ligou. Puta é gostar do prazer. Eu sou. Puta é me esconder no mato com quem eu quero? Eu sou. Puta é não abrir as pernas para quem eu não quero? Eu sou. E, agora, novamente era chamada de puta pela patroa, só porque contou de repente que o rapaz dormia com ela. Tinha impressão que a patroa sabia. Não, ela não devia ter gostado era da história do dinheiro. (...)”
“(...) Filho de ex-escravos, crescera na fazenda levando a mesma vida dos pais. Era pajem do sinhô-moço. Tinha a obrigação de brincar com ele. Era o cavalo em que o mocinho galopava sonhando conhecer todas as terras do pai. Tinham a mesma idade. Um dia o coronelzinho exigiu que ele abrisse a boca, pois queria mijar dentro. O pajem abriu. A urina do outro caía escorrendo quente por sua goela e pelo canto de sua boca. Sinhô-moço ria, ria. Ele chorava e não sabia o que mais lhe salgava a boca, se o gosto da urina ou se o sabor de suas lágrimas. Naquela noite teve mais ódio ainda do pai. Se eram livres por que continuavam ali? Por que, então, tantos e tantas negras na senzala? Por que todos não se arribavam à procura de outros lugares e trabalhos? Um dia perguntou isto ao pai, com jeito, muito jeito. Tinha medo dos ataques dele. (...) Perguntou e a resposta do pai foi uma gargalhada rouca de meio riso e de meio pranto. O homem não encarou o menino. Olhou o tempo como se buscasse no passado, no presente e no futuro uma resposta precisa, mas que estava a lhe fugir sempre. (...) Um dia o coronelzinho, que já sabia ler, ficou curioso para ver se negro aprendia os sinais, as letras de branco, e começou a ensinar o pai de Ponciá. O menino respondeu logo ao ensinamento do distraído mestre. Em pouco tempo reconhecia todas as letras. Quando sinhô-moço certificou-se de que o negro aprendia, parou a brincadeira. (...)”
“(...) O trem era o mesmo, com as mesmas dificuldades e desconforto. Descia-se na entrada do povoado e caminhava todo o resto, horas e horas a pé. Atravessava as terras dos brancos e viam-se terrenos e terrenos de lavouras erguidas pelos homens que ali trabalhavam longe de suas famílias. Ponciá se lembrou do pai, das ausências dele durante os longos períodos de trabalho. Atravessou, depois, as terras dos negros e apesar dos esforços das mulheres e dos filhos pequenos que ficavam com elas, a roça ali era bem menor e o produto final ainda deveria ser dividido com o coronel. (...) Tempos e tempos atrás, quando os negros ganharam aquelas terras, pensaram que estivessem ganhando a verdadeira alforria. Engano. Em muito pouca coisa a situação de antes diferia da do momento. As terras tinham sido ofertas dos antigos donos que alegavam ser presente de libertação. E, como tal, podiam ficar por ali, levantar moradias e plantar seus sustentos. Uma condição havia, entretanto, a de que continuassem todos a trabalhar nas terras do Coronel Vicêncio. (...) as terras que o primeiro Coronel Vicêncio tinha dado para os negros (...) eram muito mais, e que pouco a pouco elas estavam sendo tomadas novamente pelos descendentes dele. Alguns negros, quando o Coronel lhes doou as terras, pediram-lhe que escrevesse o presente no papel e assinasse. Isto foi feito para uns. (...) um dia, o próprio doador se ofereceu para guardar a assinatura-doação. Ele dizia que, na casa dos negros, o papel poderia rasgar, sumir, não sei mais o quê... Os negros entregaram, alguns desconfiados, outros não. O Coronel Vicêncio guardou os papéis e nunca mais a doação assinada voltou às mãos dos negros. Enquanto isso, as terras voltavam às mãos dos brancos. Brancos que se fizeram donos, desde os passados tempos.”
“(...) Compreendera que sua vida, um grão de areia lá no fundo do rio, só tomaria corpo, só engrandeceria, se se tornasse matéria argamassa de outras vidas. Descobria também que não bastava saber ler e assinar o nome. Da leitura era preciso tirar outra sabedoria. Era preciso autorizar o texto da própria vida, assim como era preciso ajudar construir a história dos seus. E que era preciso continuar decifrando nos vestígios do tempo os sentidos de tudo que ficara para trás. E perceber que por baixo da assinatura do próprio punho, outras letras e marcas havia. A vida era um tempo misturado do antes-agora-depois-e-do-depois-ainda. A vida era a mistura de todos e de tudo. Dos que foram, dos que estavam sendo e dos que viriam a ser.”
Conceição Evaristo - foto daqui
“O tempo passava, a menina crescia e não se acostumava com o próprio nome. Continuava achando o nome vazio, distante. Quando aprendeu a ler e a escrever, foi pior ainda, ao descobrir o acento agudo de Ponciá. Às vezes num exercício de autoflagelo ficava a copiar o nome e a repeti-lo, na tentativa de se achar, de encontrar o seu eco. E era tão doloroso quando grafava o acento. Era como se estivesse lançando sobre si mesma uma lâmina afiada a torturar-lhe o corpo. Ponciá Vicêncio sabia que o sobrenome dela tinha vindo desde antes do avô de seu avô, o homem que ela havia copiado de sua memória para o barro e que a mãe não gostava de encarar. O pai, a mãe, todos continuavam Vicêncio. Na assinatura dela a reminiscência do poderio do senhor, um tal coronel Vicêncio. O tempo passou deixando a marca daqueles que se fizeram donos das terras e dos homens. (...)”
“(...) Luandi foi visitar a velha Nêngua Kainda e pedir a benção dela. A mulher sempre velha, muito velha como o tempo, parecia uma miragem. Só os olhos denunciavam a força não pronunciada de seu existir. O som de sua boca era quase inaudível, enquanto seu olhar penetrante vazava todo e qualquer corpo que se apresentava diante dela. Nêngua Kainda, falando a língua que só os mais velhos entendiam, abençoou Luandi. Falou que a mãe do rapaz estava viva e que eles se encontrariam um dia. (...) Nêngua Kainda olhou os trajes de Luandi e deu de rir (...) dizendo que o moço estava num caminho que não era o dele. Que estava querendo ter voz de mando, mas de que valeria mandar tanto, se sozinho? Se a voz de Luandi não fosse o eco encompridado de outras vozes-irmãs sofridas, a fala dele nem no deserto cairia. Poderia sim, ser peia, areia nos olhos dele, chicote que ele levantaria contra os corpos dos seus.”
“Ponciá Vicêncio achava que os homens falavam pouco. O pai e o irmão tinham sido exemplos do estado de quase mudez dos homens no espaço doméstico. Agora, aquele, o dela, ali calado, confirmava tudo. Ele também só falava o necessário. Só que o necessário dele era bem pouco, bem menos do que a precisão dela. Quantas vezes quis ouvir, por exemplo, se o dia dele tinha sido difícil, se o pequeno machucado que ele trazia na testa tinha sido causado por algum tijolo, ou mesmo saber quando começaria a nova obra. Muitas vezes quis dizer das tonturas e do desejo de comer estrelas de que era acometida todas as vezes que ficava grávida. Quis confidenciar a respeito de um medo antigo que sentia, às vezes. Quis saber se ele também sofria do mal do medo, se ele vivia também agonias. Quis que o homem lhe falasse dos sonhos, dos planos, das esperanças que ele depositava na vida. Mas ele era quase mudo. Não chorava, não ria. Desde os primeiros tempos, nos momentos em que ela se abria para ele, o homem vinha emudecido, trancado de falas, sem gesto algum dizível de nada. (...) E então, um misto de raiva e desaponto tomava conta dela, ao perceber que ela e ele nunca iam além do corpo, que não se tocavam para além da pele.”
“Luandi fazia apressadamente o caminho de volta e nem sabia por quê. Não adiantava correr. Teria de ficar uns quinze dias aguardando o trem. Passaria o tempo andando pelo povoado. Poderia ir até à fazenda do Coronel Vicêncio rever os companheiros de roça, e, quem sabe, ter alguma notícia da mãe e da irmã. Estava com fome e não tinha nada para comer. Tinha algum dinheiro, mas na terra dos negros, o alimento não era vendido. Quem tivesse fome era só chegar em casa de alguém e pedir o que comer. Aquele que tivesse repartia o pão e não aceitava nada em troca. Havia um enorme prazer em oferecer, em dividir o alimento com o outro. Dormia-se também em qualquer casa, o abrigo era uma dádiva para todos, contanto que o acolhido não se importasse com a pobreza de seu acolhedor. (...)”
“Revisitando todos os sinais da casa, Luandi olhou à distância o outro cômodo em que o pai e a mãe dormiam. Nunca havia cruzado a soleira daquela porta. Se precisasse de um dos dois chamava cá de fora. Quando o pai morreu, e a irmã passou a dormir lá dentro com a mãe, e aquela parte da casa continuou desconhecida para ele. Recordou de algumas conversas que tivera com o pai. Ele dizia que as mulheres pareciam estrelas. Eram bonitas, iluminavam a noite que existia no peito dos homens. Moravam em outras terras, tinham outros modos, outros sonhos.”
“(...) Gostava da roça, do rio que corria entre as pedras, gostava dos pés de pequi, dos pés de coco-catarro, das canas e do milharal. Divertia-se brincando com as bonecas de milho ainda no pé. Elas eram altas e, quando dava o vento, dançavam. Ponciá corria e brincava entre elas. O tempo corria também. Ela nem via. O vento soprava no milharal, as bonecas dobravam até ao chão. (...) Um dia, nessa brincadeira, ela viu uma mulher alta, muito alta que chegava até ao céu. Primeiro ela viu os pés da mulher, depois as pernas, que eram longas e finas, depois o corpo, que era transparente e vazio. Sorriu para a mulher que lhe correspondeu o sorriso. Quando contou sobre a mulher alta e transparente, a mãe não lhe deu atenção, mas Ponciá notou que ela se assustou um pouco. Daí a uns dias, quando o pai chegou, ela escutou a mãe pedindo-lhe que cortasse o milharal. O pai argumentou que não era tempo de colheita ainda. A mãe insistiu. E, quando Ponciá Vicêncio acordou no outro dia, o milharal estava derrubado. As bonecas mortas pelo chão. Ela ainda olhou para os lados com esperança de ver a mulher alta e transparente. Não viu. Tudo era um só vazio. Ponciá chorou. Nunca mais ela viu a mulher alta, transparente e vazia, que um dia sorrira para ela entre as espigas de milho.”
Presentes no romance Ponciá Vicêncio (Pallas, 2017), de Conceição Evaristo, páginas 83-84, 17-18, 41-42 e 53-54, 109-110, 26-27, 80-81, 57-58, 80, 77 e 13-14, respectivamente.
Comentários