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Dez passagens de Victor Mascarenhas no romance O som do tempo passando

Victor Mascarenhas - foto daqui


“(...) A vida é uma sequência de trombadas aleatórias em direção ao futuro”


“Na adolescência, Ricardo nem imaginava o quanto ele e tantos da sua geração iriam enfrentar a meia idade sedados pelos antidepressivos, ansiolíticos e moderadores de humor da indústria farmacêutica ou pelas mais diversas drogas bebidas, fumadas, cheiradas ou injetadas. Quando era jovem e tinha a vida inteira pela frente, Ricardo ainda não tinha atinado para o fato de que a vida era só uma história contada por um idiota, repleta de som e fúria e desprovida de sentido, ainda que muitos procurassem, desesperadamente, encontrar algum na religião ou em alguma militância política, por exemplo, como ele já tinha feito, até descobrir que tudo isso, realmente, não fazia o menor sentido.”


“(...) A gente vive falando mal dos outros, criticando a desonestidade e a hipocrisia alheia, dando soluções para todos os problemas e nos colocando sempre como vítimas das pessoas e instituições. Não seria esse o nosso grande problema? Não seríamos nós também corruptos, desonestos, egoístas, hipócritas e incompetentes? Quem nunca deu uma roubadinha no trânsito? Nunca teve uma carteira de estudante falsa? Não fingiu ser simpático e gostar de alguém que não gosta? Quem nunca ficou com um troco que veio a mais, baixou um filme pirata ou mentiu para quem ama? Será que você ou eu, se estivéssemos no poder, não seríamos corrompidos também? Quem nunca pediu para um funcionário público quebrar o seu galho? Quem nunca furou uma fila? (...) E a culpa é sempre deles. Mas quem são eles? Os outros? Eles somos nós! O inferno somos nós, todos nós. Uns mais que os outros, é verdade. Nós ainda somos, debaixo desta casquinha de civilização que desenvolvemos, como macacos selvagens. Na hora do aperto, o instinto faz aflorar o que existe de pior e aquela menina com cara de anjo se revela fria e egoísta. Aquele amigo irmão, pode passar você para trás para salvar o dele. Você pode puxar o tapete de alguém para garantir o seu emprego. Eu posso matar alguém que tente roubar o meu celular, outra pessoa pode ofender e agredir quem pensa diferente dela ou escorraçar quem tem uma sexualidade ou religião que não seja a sua. Enfim, na hora que algo não seja do jeito que a gente quer, o pior aflora, o instinto animal, escroto, egoísta e primitivo ataca e o resultado é esse mundo horroroso que a gente vive. Mas, como poderia ser diferente? O homem é o único animal que mata o semelhante apenas por crueldade e que é capaz de pensar, articular e premeditar sacanagens com o próximo. Tudo é permitido para os seres humanos, desde que ninguém descubra, desde que fique escondido atrás de boas maneiras, sorrisos afáveis e cordialidade.”


“(...) desde que se incutiu na cabeça das pessoas que o sentido da vida é consumir desesperadamente e sem maiores questionamentos, supermercados, shoppings e congêneres passaram a ser um dos poucos lugares onde a humanidade não tem dúvida sobre o seu papel no mundo, excetuando-se apenas o dilema que nos aflige quando, tal qual Hamlet segurando uma caveira e encarando seu momento “ser ou não ser”, temos que decidir, empunhando a máquina do cartão: “Crédito ou débito?” Eis a questão. (...) Sempre que entrava no supermercado, Miguel sentia que atravessava um portal para uma dimensão diferente do espaço-tempo, para um território que podia estar em qualquer parte do mundo e onde se podia ficar sozinho mesmo rodeado de pessoas. Sem perguntas, sem intimidades e sem contato físico, numa solidão acompanhada tão reconfortante e artificial quanto uma rede social, mas sem a preocupação de demonstrar felicidade, juventude, beleza e inteligência a todo hora para obter a aprovação de amigos virtuais. (...) esses estabelecimentos são assombrados por zumbis que empurram carrinhos abastecidos com (...) quinquilharias que nunca saciam a verdadeira fome de viver de quem não sabe o que fazer para saciar o desejo que nunca passa de descobrir o que viemos fazer por aqui, mas que podem enganar e sufocar a angústia tão bem quanto as cápsulas de felicidade instantânea vendidas nas farmácias iluminadas e coloridas de qualquer esquina ou em substâncias mais heterodoxas, descoladas sorrateiramente com o traficante mais próximo.”


“(...) Não foi só a sua banda que se perdeu no tempo. Seus amores eternos acabaram, erodidos pelas cobranças e decepções da vida real; seus ideais políticos e tudo que acreditou, defendeu e lutou pensando que podia mudar o país não deu em nada muito diferente do que sempre existiu. Os poderosos de sempre deram um jeito de continuar no poder e os ricos nunca foram tão ricos. Os pobres melhoraram de vida, é verdade, mas desde quando criar novos consumidores muda uma sociedade? Os pobres que sobem de vida querem ser iguais aos ricos de sempre e a roda gira sempre na mesma direção.”


Victor Mascarenhas
Foto: Ricardo Santiago


“A cidade mudou muito, mas ainda continua sendo muito familiar para mim. É como visitar uma tia velha, um incômodo misturado com deja vu, mas com uma sensação de pertencimento muito forte. Mesmo morando tanto tempo fora, tendo rodado meio mundo, nunca me senti verdadeiramente em casa em lugar nenhum, só aqui nessa cidade de merda, que cresceu bastante de quando fui embora pra cá, mas acabou igual a todas as outras, com as mesmas lojas, os mesmos carros, as mesmas roupas, os mesmos problemas e as mesmas pessoas vagando pra lá e pra cá com seus celulares. (...) Esse shopping fica no bairro que eu morava. Que coincidência. Nossa, ele fica na minha rua, deve ser perto da nossa antiga casa. (...) Cadê minha casa? Não tem nada no lugar. Virou o estacionamento do shopping. Não acredito que estou estacionando em cima da minha casa. Não sobrou nada, nada. Tantos anos, tantas lembranças. O jardim, a goiabeira no fundo do quintal, meu quarto, tudo soterrado pelo piso de concreto de um estacionamento. Ainda lembro o dia em que fui embora daqui.”


“(...) Ele sabe que sua compulsão em conquistar todas as mulheres que cruzam o seu caminho é algo meio patológico e que, muitas vezes, o faz enfrentar papéis constrangedores, mas não consegue evitar. Sua obsessão já destruíra relações felizes e casamentos. Já o fizera apanhar de maridos ciumentos, sofrer, se afastar e ser afastado dos seus filhos, perder trabalhos e ter prejuízos. Mesmo assim, nada disso era capaz de fazer com que ele se controlasse. O tempo, o dinheiro e o sucesso profissional facilitaram muito as coisas, e o que antes vinha após uma corte sedutora, hoje vem, muitas vezes, por interesse. Ele sabe que, direta ou indiretamente, acaba pagando pela companhia das jovens com idades de serem suas filhas e que não exigem maiores envolvimentos emocionais. Podem ser estagiárias do seu escritório, vendedoras, secretárias, esposas entediadas, recepcionistas de eventos, desocupadas, estudantes ou, em casos de urgência maior, até mesmo prostitutas, mas nada substitui o prazer de um primeiro beijo ou de uma primeira vez com uma mulher diferente e é isso que Ricardo busca incessantemente. Esse é o seu vício e a forma que encontra para saciar, ainda que por alguns instantes, aquela fome de algo que não sabe bem o que é, mas que o corrói por dentro, a cada manhã, quando abre os olhos e precisa levantar para enfrentar mais um dia fazendo tudo que nunca pensou fazer quando era jovem, mas que hoje faz com o cinismo, a competência e a desfaçatez de um veterano.”


“Por que eu não sou como todo mundo e me contento com um empreguinho, uma viagenzinha de férias, um carrinho parcelado e pronto? Tantos são felizes assim! Enchem o rabo de peru com farofa no Natal, se endividam para comprar carro, celular, apartamento, roupa de grife e todas essas felicidadezinhas que vendem no shopping. Mas eu não tive e não tenho nada disso. Sou o fracasso total, não consegui nem me vender ao sistema e nem ser traidor do movimento. Acho que eles não quiseram me comprar e não tinha nenhum movimento para trair. Aliás, nem sei quem são esses ‘eles’ que todo mundo fala e que são culpados de tudo. Na verdade, quando a gente diz que é tudo culpa deles fica mais fácil aguentar a vida, mas, do outro lado, nós somos os eles deles e devem colocar a culpa de tudo na gente também. No fim das contas, é tudo a mesma merda e somos todos culpados, até os inocentes.”


           “— Eu só queria colocar um acorde dissonante na passagem para o refrão e virou essa confusão. Depois que Henrique virou grunge não pode mais! No tempo que imitava Renato Russo, ele até aceitava, na fase Keith Richards, também, mas agora que virou o Kurt Cobain dos pobres não pode mais.
           — Sabe qual a diferença entre a gente? Eu sou rock’n’roll de verdade e você é poser. Eu achei do caralho quando o Kurt Cobain cuspiu nas câmeras da Globo pra protestar contra a rede que apoiou a ditadura e que transmitia um festival patrocinado por um cigarro. Já você...
           — Achei uma hipocrisia total! O cara assinou um contrato, recebeu a grana e desrespeitou o público que pagou ingresso, dando um show de merda! Se queria protestar, devolvesse o cachê e não tocasse. Cadê que devolveu? Deve estar gastando a grana com traficante e com aquela baranga da mulher dele.


“O riff de “Smells like teen spirit” estoura com toda distorção possível nos velhos amplificadores. Henrique queria acabar a conversa de vez. Filhos, esposa, família e as obrigações decorrentes disto eram cobranças constantes na sua vida e assuntos que não lhe diziam respeito. Além disso, não queria perder tempo ouvindo historinhas de crianças, vendo fotos, ouvindo pieguices e relatos de como seus filhos são especiais e inteligentes, porque, no final, eles vão acabar iguais aos pais: adultos amargos, cheios de problemas, cínicos, fracassados e deprimidos. Melhor tocar mais um pouco e tentar buscar mais uma vez aquela sensação de que a vida tem algum sentido.”




Presentes no romance “O som do tempo passando” (Cafeína & P55, 2019), de Victor Mascarenhas, páginas 14, 79, 41-42, 10-11, 41, 33-34, 63-64, 31, 07-08 e 74-75, respectivamente.

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