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Dez trechos da revista Laroyê #02



“ei, você que não é branco, mas,
com as melhores intenções,

pode dar conselhos sobre como
o tal movimento negro, assim,

único e fixo, pode ir
mais adiante com sua grande ideia

que você, de graça me oferece
para poder, grato, repassar

(...)

ei, você que não é branco, mas
sempre que possível associa

negro(a) e bom(a) de cama em uma sentença
como se fosse pura gentileza

falar sempre rindo do seu gesto
especificado a uma raça

que você coloca na gaveta
junto a outras peças de sex shop,

ei, você que não é branco, mas
quando raramente me pergunta

sobre o que eu penso do racismo
me interrompe na segunda frase”

[Alex Simões]


“Salvador, procuro provas improváveis
de como tudo não se deu no passado
mas no mesmo fim de um começo
que não é meu sem arremedos
dos becos das bocas e buracos cavados
no alto dos morros para onde se foge
e se morre de dor alegria e sonho perdido

(...)

Salvador, procuro transpirar no teu mar
que já foi céu já foi terra e hoje é ar
que respiro por trás da máscara
pegada à desconhecida cara
nem daqui nem de lá nem de nunca
a cidade em que escrevo e não é mais
a cidade que escavo com meus ais

(...)

Salvador, procuro palavras para te dizer
e mais não digo pois não consigo
entender que você se transformou
e a mim você mudou enquanto migro
e o mundo se arruína pelos caminhos
cotidianos entre chacinas e sorrisos

(...)

Salvador, procuro razões e desrazões
para te escrever dizendo incerto
eu não acredito em deuses que salvam
e desacredito dos que condenam
porque te vivo as entranhas embora
teu nome não me salve nem condene
mas me consuma as minhas próprias
entranhas mais profundas uma a uma”

[Sandro Ornellas]


“Os pais queriam seus filhos
criados para o mundo,
mesmo na vida pequena,
nos apertados barracos,
havia a sombra bonita
um caminho, para elas, bordado.

Mas a Polícia os mata como moscas,
os pisam, baratas, no sem querer
dos coturnos bem lustrados.
Há uma guerra terrorista,
que nos costura a vida e
ninguém pede desculpas
porque somos, desde sempre,
o dano colateral deste País
e matar crianças negras é,
antes de tudo,
uma política de Estado.”

[Lívia Natália]


“No Rio Vermelho,
quando a manhã
ilumina a Paciência,
a Poesia rumina o acarajé,
porque seu movimento É.
No raso, na cheia da maré,
seu movimento É.
Fria ontem, quente amanhã,
azeite e doce de leite,
seu movimento É.
Na comida que os mendigos
manuseiam na Cardeal da Silva,
seu movimento É.
Nos braços tensos da moça
que sobe o elevador sem saber
que encontrará a mãe morta
na pequena cozinha do ap,
seu movimento É.
Na prontidão do esperma
do rapaz pobre,
seu movimento É.
Na mulher desamada
que pariu junto ao lixo
na Fonte do Boi,
seu movimento É.
No cara bonito que
cruza a Mariquita
na ponta dos pés,
como se inventasse
passos de balé,
seu movimento É.

No Rio Vermelho,
quando a manhã
ilumina a Paciência,
a Poesia projeta, de repente,
um céu cheio de dentes,
e lá mete o presidente,
o interino, o intendente,
eis sua pedagogia radical:
lançar nas fuças do desprezo
uma generosa pá de cal.”

[Wesley Correia]


“(...) Se a cidade é a soma dos tempos dos seus habitantes, ela é também tempo nenhum. Contorno do sonhável, propósito de memórias, acúmulo de catástrofes, a cidade, como a vida, é um contínuo estar sendo. O que significa dizer Salvador? Acaso se refere ao gesto de erguer a primeira casa? Ou seus muros? É dentro ou fora de nós? A última casa, quando será destruída? (...) Aqui onde as catedrais habitam o fundo do mar e os encantados fazem morada nas esquinas, há muito mais para saber do que esse pequeno conjunto de linhas e curvas que me leva até você. Como quem apaga um desenho na areia desfaço os traços que limitam a cidade, e livre, enfim, posso vislumbrar com fascínio um corpo – metade mulher, metade jardim – onde florescem presenças, fagulhas, gritos, espasmos... rastro que me habitam e sou eu.” [Tenille Bezerra]


“Na cosmologia africana, a existência pode ser compreendida através de dois níveis do mundo e de universo. O mundo humano, materializado, sentido, concreto e tocável, onde a natureza e os seres são produzidos e fiscalizados. E o universo intocável, ilimitado, transcendente. Estes dois níveis se complementam, e juntos, produzem a harmonia necessária ao ato de existir. Porém é preciso compreender que esses mundos não são isolados, eles se entrecruzam a todo tempo, e isso implica numa visão cooperativa entre essas dimensões. No contexto religioso e de comunicação com o sagrado é, através do sacrifício, que se compartilha com o mundo das energias e da natureza o estado de vida existente nesse mundo. Na obra de Jaime Fygura, o artista oferece o seu próprio corpo, a carne como sacrifício, reproduzindo assim, a simbologia de cooperação entre os mundos distintos, mas compartilhados.” [Thais Darzé]


“a feira da memória trai o destino
distrai o destino reescreve a
história. apaga tudo. tudo é rascunho.

o cego de feira da memória dedilhas nas
cordas um novo cordel. um homem
chamado ninguém anda por ali e todos
por ali também são ninguém. o homem
chamado ninguém traz no cinto uma
faca e no peito uma dor. ele mata
se preciso for. sorri sua peixeira de matar
o cão. matar esse tempo também. e nem tem:
missão mais urgente debaixo do céu.

a feira se espraia nos desvãos do
atlântico. um senhor saveiro,
o maior de todos, um barco
tão grande como nunca se viu: lá
vai o menino sumir pela
barra, sondar os abismos,
perguntar por nosotros estes
desgarrados os recém-chegados
a lugar nenhum.

a resposta é
longe: mente
quem não sente.”

[Nilson Galvão]


“(...) num certo momento da sua vida seu trabalho é como um barco que você coloca no mar e fica vendo ir embora sentado na praia. Esta é a minha postura. Se eu falar de um trabalho que estiver desenvolvendo neste momento, eu teria muito mais argumento pra colocar, justamente os argumentos que estariam me excitando, me possuindo, seria muito mais fácil. É mais difícil falar de uma coisa que está distante, eu acho. O trabalho já foi confessado. A arte pra mim é isso, uma forma de confissão. No momento que você pratica e realiza você fica liberto.” [Mario Cravo Neto]


“Adotei como pude a minha cara de paisagem (...). Essa arte é fundamental e nos exige muita paciência e treino para ficar perfeita. Mas, quando a gente aprende, é uma arma poderosa. Nada abala uma boa cara de paisagem. Nem o furo, cada vez mais raro, nem aquela frase de efeito da sua melhor fonte que ainda fica meio cabreira por não ter lhe tirado da sua tranquilidade, quando o seu coração está a 220 batidas por segundo.” [Cleidiana Ramos]


“Os terreiros são espaços acolhedores de cura, de convívio entre os diferentes. Seus princípios não se afastam da perspectiva da ancestralidade africana. É lá que tudo acontece, onde reterritorializamos a cultura tradicional: os símbolos, as lideranças religiosas, os saberes dos mestres e os griôs, os animais, as folhas, os objetos, as danças com seus ritmos e ritos, os cânticos, a escrita com suas oralituras pautadas a partir do aprender fazendo, tudo isso forma uma única energia no campo da multidisciplinaridade.” [Eliana Falayó]


Presentes na revista Laroyê #02, páginas 24+26-27, 46-47, 37-38, 50-51, 49, 12, 42 127, 15 e 06, respectivamente.

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