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Dez passagens de Clarice Lispector nas cartas dos anos 1950 (parte 1)

Clarice Lispector (foto daqui)


“O outono aqui está muito bonito e o frio já está chegando. Parei uns tempos de trabalhar no livro [‘A maçã no escuro’] mas um dia desses recomeçarei. Tenho a impressão penosa de que me repito em cada livro com a obstinação de quem bate na mesma porta que não quer se abrir. Aliás minha impressão é mais geral ainda: tenho a impressão de que falo muito e que digo sempre as mesmas coisas, com o que eu devo chatear muito os ouvintes que por gentileza e carinho aguentam...”


“Alô Fernando [Sabino], estou escrevendo pra você mas também não tenho nada o que dizer. Acho que é assim que pouco a pouco os velhos honestos terminam por não dizer nada. Mas o engraçado é que não tendo absolutamente nada o que dizer, dá uma vontade enorme de dizer. O quê? (...) E assim é que, por não ter absolutamente nada o que dizer, até livro já escrevi, e você também. Até que a dignidade do silêncio venha, o que é frase muito bonitinha e me emociona civicamente.” 


“(...) O dinheiro some sem se saber como. Ainda não absorvi o Rio, sou lenta e difícil. Precisaria de mais alguns meses para entender de novo a atmosfera. Mas que é bom, é. É selvagem, é inesperado, e salve-se quem puder.”


“(...) Logo na entrada da sala, minha superioridade e minha frieza caíram no chão quando vi de longe aquele homem superlindo [o ator Tyrone Power], com barba. Quando fui apresentada a ele, logo de entrada, já nem olhei para ele, tanta timidez que me deu, eu me sentia uma menina de doze anos. Nem disse que tinha prazer em conhecê-lo, larguei-o e fui me sentar imediatamente junto de uma senhora americana bastante neutra. Quando vejo (...) vem diretamente para uma cadeira vazia que estava junto de mim. De emoção, eu quase me virei de costas para ele e continuei a fingir conversar com a senhora (...) Eu nem espiava para o homem, que estava a uma distância de milímetros de mim. Foi quando o bichinho, que é simplesmente um belo homem, o desgraçado, vai e diz apontando para o cinzeiro que estava no meu colo: como o cinzeiro combina com o seu vestido, foi de propósito? E o infeliz vai e apaga o cigarro dele no cinzeiro que estava no meu colo. A essa hora, virei trapo, humilde e feminino trapo. (...) Então o bichinho me segura o braço e diz: I can’t, darling! Aí perdi a voz de novo e emburreci, numa mistura de prazer e desespero.”


“Admito, se quiser, que as frases não refletem o modo habitual de fala, mas, em português, garanto que será a mesma coisa: fui eu que adotei a liberdade de estilo e podem criticar, mas não me impedir. Se escrevi assim em português, não vejo razão para o livro em francês se transformar em outra obra. (...) Desejo ainda esclarecer o seguinte: a pontuação que usei no livro não é acidental e não resulta de ignorância quanto às regras gramaticais. Vai concordar comigo que os princípios elementares de pontuação são ensinados em qualquer escola. Tenho plena consciência dos motivos que levaram a escolher essa pontuação e ela deve ser respeitada.”


“Fernando [Sabino], estou lendo o livro de Guimarães Rosa [‘Grande sertão: veredas’, 1956], e não posso deixar de escrever a você. Nunca vi coisa assim! É a coisa mais linda dos últimos tempos. Não sei até onde vai o poder inventivo dele, ultrapassa o limite imaginável. Estou até tola. A linguagem dele, tão perfeita de entonação, é diretamente entendida pela linguagem íntima da gente — e nesse sentido ele mais que inventou, ele descobriu, ou melhor, inventou a verdade. Que mais se pode querer? Fico até aflita de tanto gostar. Agora entendo o seu entusiasmo, Fernando. Já entendia por causa de Sagarana, mas este agora vai tão além que explica mais o que ele queria com Sagarana. O livro está me dando uma reconciliação com tudo, me explicando coisas adivinhadas, enriquecendo tudo. Como vale a pena! (...) Acho a mesma coisa que você: genial. Que outro nome dar? Esse mesmo.”


“Para mim, sair do Brasil é uma coisa séria e, por mais ‘fina’ que eu queira ser, na hora de ir embora choro mesmo. E não gosto que me vejam assim (...) Depois, também, eu me encabulo de estar sempre chegando e indo embora, o que obriga os amigos a um movimento em torno de mim, um movimento que às vezes nem cabe direito na vida deles. Então procuro dispensar a gentileza dos amigos, e facilitar a vida diária de cada um que já é bastante cheia e complicada sem uma ida ao aeroporto. Maury diz que eu costumo ter reações pessoais a coisas chamadas ‘de praxe’. Parece que é mesmo verdade. Parece que eu seria capaz de pedir sinceramente a alguém que não apanhasse minha luva caída no chão para não amolar esse alguém, sem entender que o incômodo é não apanhá-la, que incômodo é não fazer o que é ‘de praxe’.”


“(...) Um dia desses tive um ódio muito forte, coisa que eu nunca me permiti; era mais uma necessidade de ódio. Então escrevi um conto chamado ‘O búfalo’, tão, tão forte, que, por experiência, fui ler para Mafalda, Armando Pires (um rapaz que mora aqui e trabalha na União Panamericana) e para Maury, e eles sentiram até um mal-estar. O rapaz disse que o conto todo parece feito de entranhas... Maury, é claro, não gostou: assustou-se com a violência. É a história de uma mulher que vai ao Jardim Zoológico para aprender com os bichos como odiar. Mas é primavera e os animais estão mansos, mesmo o leão lambe a testa da leoa. Essa mulher, que só aprendeu a perdoar e a se resignar e a amar, precisa pelo menos uma vez tocar no ódio de que é feito o seu perdão. Entende-se que ninguém tem culpa: ela está tentando odiar um homem cujo ‘único crime punível’ é não amá-la. Na verdade, por mais irracional que fosse, ela o odiava, só que não conseguia sentir em cheio o próprio ódio. Depois é que vem o búfalo. Mas estou vendo que estou matando a história, contando-a desse jeito. Um dia vocês verão.”


“(...) Passo o tempo todo pensando — não raciocinando, não meditando mas pensando, pensando sem parar. E aprendendo, não sei o quê, mas aprendendo. E com a alma mais sossegada (não estou totalmente certa). Sempre quis ‘jogar alto’, mas parece que estou aprendendo que o jogo alto está numa vida diária pequena, em que uma pessoa se arrisca muito mais profundamente, com ameaças maiores. Com tudo isso, parece que estou perdendo um sentimento de grandeza que não veio nunca de livros nem de influência de pessoas, uma coisa muito minha e que desde pequena deu a tudo, aos meus olhos, uma verdade que não vejo mais com tanta frequência. Disso tudo, restam nervos muito sensíveis e uma predisposição séria para ficar calada. Mas aceito tanto agora. Nem sempre pacificamente, mas a atitude é aceitar.”


“(...) Tania, achei muita graça na importância que você deu à minha ida à montanha-russa — achei graça porque você acertou. Eu estava mesmo desafiando o mundo naquela hora e provando a todos do que sou capaz! E que sou capaz de aguentar minhas emoções, e que sou capaz de tudo! Era isso o que eu estava querendo, por modos indiretos, provar, e queria ver qual seria a resposta do mundo! A resposta do mundo foi a seguinte: ‘nós não estamos aqui para julgar, há muita coisa entre o céu e a terra que não compreendemos, e nós damos liberdade a quem tomar liberdade, nós respeitamos quem tomar liberdade.’”


Presentes no livro “Todas as cartas” (Rocco, 2020), de Clarice Lispector, páginas 543, 522, 515, 532-534, 513, 584, 520-521, 561, 476 e 540, respectivamente.

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