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Dez passagens de André Lemos no livro de contos Desastres

André Lemos


“(...) Certa vez, um escritor austríaco, que tem um busto na avenida Oceânica, entre o Porto e o Farol da Barra, disse que o Brasil é o país do futuro. Diagnóstico equivocado, levado a sério por ufanistas. Exterminam o presente, aniquilam o futuro, revelando um país conservador, excludente e violento. (...) O que se tira do povo desse país é, além das oportunidades materiais, a esperança, a alegria de viver e de lutar por melhores condições de vida. Não se acredita em mais nada. E tudo iria piorar muito nos próximos anos. País de ladrões, de todas as estirpes, desde os miseráveis ladrões de galinha, que podem matar por um celular vagabundo, até os que escondem e circulam milhares de reais em cuecas, malas transportadas de pizzarias ou estocadas em apartamentos em bairros de classe alta. Canalhas de todas as espécies. Não, o Brasil não é o país do futuro.”


“Mais crianças, sem máscaras, com seus respectivos adultos adentram meu campo de visão. Uma delas é empurrada em um carrinho por uma babá com a mãe atrás. Elas não usam máscaras. Nesse condomínio, todos desafiam a morte, as orientações da OMS e das autoridades locais. A norma do condomínio é clara e recomenda o uso de proteção facial em áreas comuns. Só empregados obedecem. Claro, nesse país, as leis são para os empregados, nunca para patrões. Talvez eles já tenham uma reserva em um bom hospital particular, ou no cemitério. Ou vão furar a fila quando a vacina chegar! Mas o certo mesmo é que não se preocupam com o outro. A vizinha continua a falar ao telefone. Está andando e falando. Não quero ouvir a conversa.”


“Vejo coqueiros e cocos e isso me dá uma enorme vontade de beber a água do fruto, mas não será possível nesse momento. Não saio de casa. Não ouço mais nada a não ser as folhas das árvores balançando ao vento. O cheiro do café se foi. Passa uma ‘lavadeira’ zunindo como um drone, paira no ar e se vai. Muitas cores à minha disposição: verde, amarelo, vermelho, laranja, ocre, marrom, cinza, azul... variando as tonalidades. Parece que nada muda, sendo sempre a mesma coisa, mas tudo se mexe e a cada olhar novas cores e formas se destacam pela dança das sombras. As coisas vão se reproduzindo nesse movimento em que nada muda, nessa duração de múltiplas relações. O céu muda, tudo muda, pequenos desastres imperceptíveis, um movimento de um galho reforça outra cor em outro e assim vai se produzindo o que se vê. O coqueiro agora fica um pouco mais verde-escuro e os cocos amarelados, mas logo tudo vai mudar de novo.”


“Ela pede um abará com vatapá, pimenta e salada, e ele um acarajé com camarão e pimenta, ‘com muito molho, né?’, reforça a baiana. Tomam outra cerveja e ficam sentados olhando o céu avermelhado desse fim de tarde de frente para a igreja barroca de São Francisco. Muitas pessoas passando por lá ainda na inércia da dispersão da passeata. Enquanto comem a iguaria, fazem pausas para comentários sobre o país e sobre a vida na cidade borbulhando com as novas músicas e danças. Mas a noite se aproxima e têm que ir embora, cada um para o seu lado, pois pegam ônibus diferentes. Não podem demorar muito, pois os que saem da Praça da Sé não são frequentes e não é seguro ficar ‘dando mole’ por lá. Mas não querem sair de perto um do outro. Raulino, tímido, não consegue ser mais proativo. Conceição, esperta, entende que o tipo ao seu lado não vai dar o primeiro passo e não quer deixar passar a oportunidade de reencontrá-lo. Curtiu o seu olhar simples, o papo fácil e sua voz tranquila. Olham a baía de cima do Elevador Lacerda e ela diz que eles precisam ir embora, mas que devem voltar para tomar um dust muller gigante na Cubana. Ele diz que sim, quando ela quiser. (...) ‘Vamos nos encontrar de novo no fim de semana? Você tem telefone?’. ‘Não temos telefone em casa, meu pai está tentando comprar uma linha, mas está muito cara e difícil e também não quer alugar uma... mas temos lá na marcenaria onde meu pai trabalha. Estarei lá pelas manhãs ainda. Só começo a trabalhar na Vitória no início do mês’. Ela diz que vai ligar para ele. Raulino pergunta se ela teria um pedaço de papel e uma caneta. Conceição abre a bolsa, pega um bloquinho, um lápis e anota o número. Ele sorri, feliz. Caminham juntos até o ponto de ônibus.”


“Para os colegas de trabalho e da escola, para os familiares e amigos, ele sempre fora esquisito, mas agora parece passar dos limites, apresentando-se como alguém que tem sérios problemas mentais. Ele passou a dizer que não é um indivíduo, que ele é múltiplo, como são as coisas do mundo, que se considera mesmo uma coisa, como a árvore, a ideia de deus, a pedra no sapato, o sapato ou o telefone celular. Diz que todos são assim, contudo estão iludidos, achando-se uma individualidade. E se sente mais completo junto às coisas não humanas. Pode se sentir árvore, mas não tem empatia por humanos. É educado e prestativo, cordial, mas, com a idade, tem se afastado cada vez mais dos da sua espécie.”


“Voltei várias vezes para ver meu avô com ele ainda em Ituberá. Chego a sentir de novo o cheiro de sua lavanda nesse momento, do meu avô, não a do meu pai, que menino, ainda não a usava. Pude comprovar, mais uma vez, que era verdade a admiração dele pelo seu pai. Sempre fui muito medroso, mas toda vez que estava sujeito a algum perigo ou sentia medo, lembrava de suas palavras ao meu pai, mas que eram para mim também: não procure briga, mas não fuja, não se acovarde, leve o medo pelas mãos. Eu estava lá na sala da casa em Ituberá e ouvi todas essas palavras. Fui testemunha ocular da minha história futura, no passado.”


“O vírus não deixa mais ninguém sair de casa, embora o presidente negue tudo e faça de tudo para destruir o país em prol de seu projeto pessoal e familiar. Em dois anos de mandato, nada foi feito e tudo desmontado: educação, cultura, ambiente, saúde, economia... Pode-se dizer mesmo que, pelo prisma desse grupo de incompetentes e ignorantes, o governo é um sucesso, pois o plano era esse mesmo, acabar com tudo, roubar toda e qualquer possibilidade do país emergir como uma potência da tolerância, da pluralidade, da igualdade social e racial, do desenvolvimento econômico, da proteção do ambiente... Não há mais nenhuma esperança e todos estão mais que nunca doentes, cabisbaixos, sem capacidade de pensar em questões estratégicas, pois tudo é jogado para a mais baixa e simplória agenda conservadora. Tudo foi definitivamente roubado, inclusive a própria ideia de país, seus símbolos e é difícil ver uma saída. O que parecia não poder piorar depois do golpe parlamentar, piorou e muito a cada dia. O pesadelo agora é quando se acorda para mais um dia, o vírus e o governo destruindo tudo pela frente.”


“A performance dura exatamente o tempo que o permite passar correndo pedindo dinheiro antes que o sinal libere os carros e seus indiferentes motoristas. Passa com a mão de pedinte (nem tem um chapeuzinho). Nenhum carro abre o vidro. Nem nós. Sem nada, afasta-se, rasgado e mais fraco. Faz uma reverência, sorri mais uma vez sem dentes e volta invisível para o lugar misterioso de onde saiu.”


“Estamos eu e minha mãe de novo no ônibus. Sinto o tremor do motor e as árvores vão ficando para trás. Fico em paz, pois já sei o futuro. Estamos indo para frente, em direção a Amherst N que, desde 2019, se chama Atateken Street! Jeffrey Amherst era um general britânico que pregava o uso de armas químicas para exterminar indígenas. A municipalidade aprovou, em 2017, a mudança do nome para Atateken que significa ‘igualdade entre os povos’, na língua Kanien’kéha dos Mohawk. (...) Chegamos, mas o país é outro, o mesmo de sempre, contudo, cada dia mais desigual, governado por um canalha genocida, aniquilando instituições e vidas. Acordo. Deveríamos mudar o nome desse país?”


“Já ia saindo do automóvel quando alguém à sua direita, no fundo, chama a sua atenção. Olha para a pessoa que faz um sinal desesperado e incompreensível. Ela aponta para baixo. Pensa ser mais um pedinte, mais um guardador de rua exigindo o pagamento do estacionamento antecipado. Já atrasado, diz, fazendo mímica com os lábios, depois, depois, referindo-se à gorjeta, enquanto pega sua pasta de couro no banco e o celular jogado na console do automóvel. O rapaz continua a gesticular, apontando para baixo. Se fosse o pneu furado, tudo bem, consertaria depois, pensou. Precisa sair rápido dali. A reunião é muito importante e está para começar. Como o suposto guardador não arreda o pé, ele diz irritado mais uma vez fazendo com os lábios cada sílaba, de-po-is, de-po-is! Mas o insistente flanelinha não arreda pé. Irritado, sai do carro e, já do lado de fora, diz que está com pressa e que ele não se preocupasse que, na volta, ele daria a gorjeta. O rapaz olha para ele com cara de poucos amigos e diz: ‘A roda está em cima do meu pé!’.”



Presentes no livro de contos “Desastres” (Penalux, 2021), de André Lemos, páginas 102 e 104, 80-81, 82-83, 112-113, 37, 94, 115-116, 14, 64 e 42-43, respectivamente.

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