Clarice Lispector (foto daqui)
“Ainda mergulhadas no conto as crianças moviam-se lentamente, os olhos leves, as bocas satisfeitas.
— O que é que se consegue quando se fica feliz? sua voz era uma seta clara e fina. A professora olhou para Joana.
— Repita a pergunta...?
Silêncio. A professora sorriu arrumando os livros.
— Pergunte de novo, Joana, eu é que não ouvi.
— Queria saber: depois que se é feliz o que acontece? O que vem depois? — repetiu a menina com obstinação.
A mulher encarava-a surpresa.
— Que ideia! Acho que não sei o que você quer dizer, que ideia! Faça a mesma pergunta com outras palavras...
— Ser feliz é para se conseguir o quê?
(...)
— Que é que você vai ser quando for grande?
— Não sei.
— Bem. Olhe, eu tive também uma ideia — corou (...) — Ou talvez isso não tenha importância e pelo menos você se divertirá com...
— Não.
— Não o quê? — perguntou surpresa a professora.
— Não gosto de me divertir, disse Joana com orgulho.”
“(...) Cada vez que reparava no mar e no brilho quieto do mar, sentia aquele aperto e depois afrouxamento no corpo, na cintura, no peito. (...) A água corria pelos seus pés agora descalços, rosnando entre seus dedos, escapulindo clarinha clarinha como um bicho transparente. Transparente e vivo... Tinha vontade de bebê-lo, de mordê-lo devagar. Pegou-o com as mãos em concha. O pequeno lago quieto faiscava serenamente ao sol, amornava, escorregava, fugia. A areia chupava-o depressa-depressa, e continuava como se nunca tivesse conhecido a aguinha. Nela molhou o rosto, passou a língua pela palma vazia e salgada. O sal e o sol eram pequenas setas brilhantes que nasciam aqui e ali, picando-a, estirando a pele de seu rosto molhado. Sua felicidade aumentou, reuniu-se na garganta como um saco de ar. Mas agora era uma alegria séria, sem vontade de rir. Era uma alegria quase de chorar, meu Deus. Devagar veio vindo o pensamento. Sem medo, não cinzento e choroso como viera até agora, mas nu e calado embaixo do sol como a areia branca. Papai morreu. Papai morreu. Respirou vagarosamente. Papai morreu. Agora sabia mesmo que o pai morrera. Agora, junto do mar onde o brilho era uma chuva de peixe de água. O pai morrera como o mar era fundo! compreendeu de repente. O pai morrera como não se vê o fundo do mar, sentiu.”
“(...) eu não pensava em me casar. O mais engraçado é que ainda tenho a certeza de que não casei... Julgava mais ou menos isso: o casamento é o fim, depois de me casar nada mais poderá me acontecer. Imagine: ter sempre uma pessoa ao lado, não conhecer a solidão. — Meu Deus! — não estar consigo mesma nunca, nunca. E ser uma mulher casada, quer dizer, uma pessoa com destino traçado. Daí em diante é só esperar pela morte. Eu pensava: nem a liberdade de ser infeliz se conservava porque se arrasta consigo outra pessoa. Há alguém que sempre a observa, que a perscruta, que acompanha todos os seus movimentos. E mesmo o cansaço da vida tem certa beleza quando é suportado sozinha e desesperada — eu pensava. Mas a dois, comendo diariamente o mesmo pão sem sal, assistindo à própria derrota na derrota do outro... Isso sem contar com o peso dos hábitos refletidos nos hábitos do outro, o peso do leito comum, da mesa comum, da vida comum, preparando e ameaçando a morte comum. Eu sempre dizia: nunca.”
“O amor veio afirmar todas as coisas velhas de cuja existência apenas sabia sem nunca ter aceito e sentido. O mundo rodava sob seus pés, havia dois sexos entre os humanos, um traço ligava a fome à saciedade, o amor dos animais, as águas das chuvas encaminhavam-se para o mar, crianças eram seres a crescer, na terra o broto se tornaria planta. Não poderia mais negar... o quê? — perguntava-se suspensa. O centro luminoso das coisas, a afirmação dormindo embaixo de tudo, a harmonia existente sob o que não entendia.”
“Sobretudo no momento em que a tocara, compreendera: o que se seguisse entre eles seria irremediável. Porque quando a abraçara, sentira-a viver subitamente em seus braços como água correndo. E vendo-a tão viva, entendera esmagado e secretamente contente que se ela o quisesse ele nada poderia fazer... No momento em que finalmente a beijara sentira-se ele próprio de repente livre, perdoado além do que ele sabia de si mesmo, perdoado no que estava sob tudo o que ele era...”
“O silêncio se prolongava à espera do que pudessem dizer. Mas nenhum dos dois descobria no outro o começo de alguma palavra. Fundiam-se ambos na quietude. Aos poucos ele deixou de palpitar, seus olhos pousaram mais fundo no corpo da mulher, apoderaram-se suavemente dele e de seu cansaço. Olhava-a esquecido de si próprio e de sua timidez. Joana sentia-o penetrá-la e deixou-o.”
“Despiu a roupa que vestira para ir ver o homem. (...) Joana nem sabia o nome dele... Não desejara sabê-lo, dissera-lhe: quero te conhecer por outras fontes, seguir para tua alma por outros caminhos; nada desejo de tua vida que passou, nem teu nome, nem teus sonhos, nem a história do teu sofrimento; o mistério explica mais que a claridade; também não indagarás de mim o que quer que seja; sou Joana, tu és um corpo vivendo, eu sou um corpo vivendo, nada mais.”
“Assim como o espaço rodeado por quatro paredes tem um valor específico, provocado não tanto pelo fato de ser espaço mas pelo de estar rodeado por paredes. Otávio transformava-a em alguma coisa que não era ela mas ele mesmo e que Joana recebia por piedade de ambos, porque os dois eram incapazes de se libertar pelo amor, porque aceitava sucumbida o próprio medo de sofrer, sua incapacidade de conduzir-se além da fronteira da revolta. E também: como ligar-se a um homem senão permitindo que ele a aprisione? como impedir que ele desenvolva sobre seu corpo e sua alma suas quatro paredes? E havia um meio de ter as coisas sem que as coisas a possuíssem?”
“(...) A cama desaparece aos poucos, as paredes do aposento se afastam, tombam vencidas. E eu estou no mundo solta e fina como uma corça na planície. Levanto-me suave como um sopro, ergo minha cabeça de flor e sonolenta, os pés leves, atravesso campos além da terra, do mundo, do tempo, de Deus. Mergulho e depois emerjo, como de nuvens, das terras ainda não possíveis (...) Daquelas que eu ainda não soube imaginar, mas que brotarão. Ando, deslizo, continuo, continuo... Sempre, sem parar, distraindo minha sede cansada de pousar num fim. (...) Estou me enganando, preciso voltar. Não sinto loucura no desejo de morder estrelas, mas ainda existe a terra. E porque a primeira verdade está na terra e no corpo. Se o brilho das estrelas dói em mim, se é possível essa comunicação distante, é que alguma coisa quase semelhante a uma estrela tremula dentro de mim. Eis-me de volta ao corpo. Voltar ao meu corpo. Quando me surpreendo ao fundo do espelho assusto-me. Mal posso acreditar que tenho limites, que sou recortada e definida. Sinto-me espalhada no ar, pensando dentro das criaturas, vivendo nas coisas além de mim mesma.”
“(...) Em vez de me obter com a fuga, vejo-me desamparada, solitária, jogada num cubículo sem dimensões, onde a luz e a sombra são fantasmas quietos. No meu interior encontro o silêncio procurado. Mas dele fico tão perdida de qualquer lembrança de algum ser humano e de mim mesma, que transformo essa impressão em certeza de solidão física. Se desse um grito — imagino já sem lucidez — minha voz receberia o eco igual e indiferente das paredes da terra. (...) na solitude branca e ilimitada onde caio, ainda estou presa entre montanhas fechadas. Presa, presa. Onde está a imaginação? Ando sobre trilhos invisíveis. Prisão, liberdade. São essas as palavras que me ocorrem. No entanto não são as verdadeiras, únicas e insubstituíveis, sinto-o. Liberdade é pouco. O que desejo ainda não tem nome.”
Presentes no romance “Perto do coração selvagem” (Rocco, 2019), de Clarice Lispector, páginas 27 e 28, 37, 144-145, 95, 92, 156, 184, 29, 65-66 e 67, respectivamente.
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