Pular para o conteúdo principal

Dez passagens de Jorge Amado no romance O país do carnaval

Jorge Amado (foto daqui)


“(...) nas sombras da noite a Bahia parecia uma grande ruína de uma civilização que apenas começara a florescer.”


“E durante toda a viagem Julie ia admirando os músculos das costas de Honório que marchava indiferente, mascando um pedaço de fumo negro entre os dentes alvíssimos. (...) Algemiro ajudava Paulo a descer. Honório tomou Julie nos braços e a colocou no chão. Ela chegara bem a sua cabeça loura ao peito de cimento armado do trabalhador. Sentiu um cheiro sadio de macho. (...) Naquela noite, quando Rigger a apertou nos seus braços fracos de supercivilizado, ela pensou voluptuosamente nos músculos de Honório e na sua estatura agigantada. E Rigger achou um sabor novo nos seus beijos e um sentimento maior nos seus abraços. (...) Dormiu feliz.”


“— A gente deve pensar também na felicidade do povo... na felicidade da pátria...
Rigger discordava:
— Só se deve cuidar da felicidade pessoal. No dia em que cada um for feliz, a humanidade o será... Esse negócio de sacrificar-se pelo bem-estar comum não vai comigo. E pátria... Eu não tenho o sentido de pátria. Só me senti brasileiro duas vezes. Uma, no Carnaval, quando sambei na rua. Outra, quando surrei Julie, depois que ela me traiu.”


“— Comunista, você? Um aristocrata? ‘Comigo não, violão...’
— Mas, Rigger, o comunismo é bonito em teoria... Na prática, um fracasso. Igualdade, igualdade... Depois os operários que governam a surrar o povo... É isso o comunismo na prática.
— Mas é exatamente por isso que eu sou comunista... O comunismo mandaria surrar os brasileiros três vezes por dia. O povo endireitava... No Brasil eu sou comunista prático. O único remédio eficaz para o brasileiro é o chicote...”


“(...) Eu, quando leio um artigo, não quero saber se o seu autor tem ou não boas ideias, se é ou não útil. O que eu quero saber logo é se ele é ou não escritor, se escreve bem ou mal. Mas a verdade é que a literatura anatoliana tinha também ideias. Dava soluções. Mandava que se duvidasse sempre. É, ou não uma solução? Colocava a Beleza acima de todas as coisas. Vocês aceitam Deus porque Deus é útil. Nós o negávamos porque achávamos que ele não satisfazia o nosso ideal estético.
— Vocês eram terrivelmente egoístas. Ególatras, às vezes.
— E vocês praticam o Egoísmo na sua forma mais torpe: o humanitarismo. Nós queríamos a aristocracia do talento, do espírito. Vocês hoje pleiteiam a aristocracia da força. Vocês fazem com que a inteligência abra falência... Só a cultura fica valendo alguma coisa. Porque a cultura é útil.
— Mas vocês foram fracassados.
— Sim, porque toda vitória na vida é um fracasso na Arte...”


“O senador, com o prestígio que lhe dava a posição, resumiu toda a conversa:
— É o país de mais futuro no mundo!
— Perfeitamente! (...) O senhor acaba de definir o Brasil. (O senador sorriu baboso.) O Brasil é o país verde por excelência. Futuroso, esperançoso... Nunca passou disso... Vocês, brasileiros, velhos que já foram e rapazes que são a esperança da pátria, sonham o futuro. ‘Dentro de cem anos o Brasil será o primeiro país do mundo.’ Garanto que aquele detestável cronista Pero Vaz de Caminha teve essa mesma frase ao achar Cabral, por um acaso, o país que viera expressamente descobrir.”


“(Porque na Bahia, boa cidade de Todos-os-Santos e em particular de Senhor do Bonfim, todo mundo é intelectual. O bacharel é por força escritor, o médico que escreve um trabalho sobre sífilis passa a ser chamado de poeta e os juízes dão valiosas opiniões literárias, das quais ninguém tem coragem de discordar.)
Pedro Ticiano dizia que, na Bahia, todo tolo se fazia poeta. O mais sério dos homens conspícuos da Bahia, se não publicava maus versos em revistas elegantes, tinha com certeza algumas trovas rabiscadas no fundo da gaveta.”


“— A felicidade reside na própria infelicidade, na insatisfação. Essa insatisfação, essa dúvida, o ceticismo é que devem ser a filosofia do homem de talento. Sofismar sempre. Negar quando afirmarem, afirmar quando negarem. O fim de não ter fins.
— Tudo isso é muito velho, Ticiano. Hoje não pega mais... Hoje se quer coisa séria, obra útil.
— E essa seriedade é nova? Sócrates já quis ser sério. Sérios foram Aristóteles, São Tomás. Homens incríveis... A finalidade do artista é viver, apenas... Viver por viver, por obrigação, porque nasceu...”


“— Só o estômago não tem nada a ver com as nossas tragédias. Continua a exigir comida da mesma maneira.
(...)
— Um rico homem ladrão deita-se com o estômago satisfeito e dorme o sono do mais inocente filho de Deus. Mas o pobre, que foi para a cama com o estômago a dar horas, esse desgraçado não conseguirá conciliar o sono, com remorso de não ter roubado...”


“— Os deputados são todos assim?
— Todos. Uma corja. Uns ladrões... Não têm o verdadeiro patriotismo. É um venha a mim horrível. O que o Brasil precisa é de uma revolução. Fui sempre revolucionário. A revolução cortaria a cabeça a um grande número de políticos, pagaria a dívida externa e o país entraria no caminho da prosperidade...
— Mas, ao que me parece, os políticos da oposição são iguais a estes.
— Psiu! São iguais! Mas eu já sei quem será ministro do Exterior: um velho amigo meu... E eu terei, com certeza, uma legação. Ah, terei!”


Presentes no romance “O país do carnaval” (Companhia das Letras, 2011), de Jorge Amado, páginas 32, 49, 62-63, 63-64, 78, 19, 34, 42-43, 94 e 26-27, respectivamente.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Seleta: Gipsy Kings

A “ Seleta: Gipsy Kings ” destaca as 90 músicas que mais gosto do grupo cigano, presentes em 14 álbuns (os prediletos são “ Gipsy Kings ”, “ Este Mundo ”, “ Somos Gitanos ” e “ Love & Liberté ”). Ouça no Spotify aqui Ouça no YouTube aqui Os 14 álbuns participantes desta Seleta 01) Un Amor [Gipsy Kings, 1987] 02) Tu Quieres Volver [Gipsy Kings, 1987] 03) Habla Me [Este Mundo, 1991] 04) Como un Silencio [Somos Gitanos, 2001] 05) A Mi Manera (Comme D'Habitude) [Gipsy Kings, 1987] 06) Amor d'Un Dia [Luna de Fuego, 1983] 07) Bem, Bem, Maria [Gipsy Kings, 1987] 08) Baila Me [Este Mundo, 1991] 09) La Dona [Live, 1992] 10) La Quiero [Love & Liberté, 1993] 11) Sin Ella [Este Mundo, 1991] 12) Ciento [Luna de Fuego, 1983] 13) Faena [Gipsy Kings, 1987] 14) Soledad [Roots, 2004] 15) Mi Corazon [Estrellas, 1995] 16) Inspiration [Gipsy Kings, 1987] 17) A Tu Vera [Estrellas, 1995] 18) Djobi Djoba [Gipsy Kings, 1987] 19) Bamboleo [Gipsy Kings, 1987] 20) Volare (Nel

Seleta: Ramones

A “ Seleta: Ramones ” destaca as 154 músicas (algumas dobradas em versões ao vivo) que mais gosto da banda nova-iorquina, presentes em 19 álbuns da sua discografia (os prediletos são “ Ramones ”, “ Loco Live ”, “ Mondo Bizarro ”, “ Road to Ruin ” e “ Rocket to Russia ”). Ouça no Spotify aqui [não tem todas as músicas] Ouça no YouTube aqui Os 19 álbuns participantes desta Seleta 01) The KKK Took My Baby Away [Pleasant Dreams, 1981] 02) Needles and Pins [Road to Ruin, 1978] 03) Poison Heart [Mondo Bizarro, 1992] 04) Pet Sematary [Brain Drain, 1989] 05) Strength to Endure [Mondo Bizarro, 1992] 06) I Wanna be Sedated [Road to Ruin, 1978] 07) It's Gonna Be Alright [Mondo Bizarro, 1992] 08) I Believe in Miracles [Brain Drain, 1989] 09) Out of Time [Acid Eaters, 1993] 10) Questioningly [Road to Ruin, 1978] 11) Blitzkrieg Bop [Ramones, 1976] 12) Rockaway Beach [Rocket to Russia, 1977] 13) Judy is a Punk [Ramones, 1976] 14) Let's Dance [Ramones, 1976] 15) Surfin' Bi

Oito passagens de Conceição Evaristo no livro de contos Olhos d'água

Conceição Evaristo (Foto: Mariana Evaristo) "Tentando se equilibrar sobre a dor e o susto, Salinda contemplou-se no espelho. Sabia que ali encontraria a sua igual, bastava o gesto contemplativo de si mesma. E no lugar da sua face, viu a da outra. Do outro lado, como se verdade fosse, o nítido rosto da amiga surgiu para afirmar a força de um amor entre duas iguais. Mulheres, ambas se pareciam. Altas, negras e com dezenas de dreads a lhes enfeitar a cabeça. Ambas aves fêmeas, ousadas mergulhadoras na própria profundeza. E a cada vez que uma mergulhava na outra, o suave encontro de suas fendas-mulheres engravidava as duas de prazer. E o que parecia pouco, muito se tornava. O que finito era, se eternizava. E um leve e fugaz beijo na face, sombra rasurada de uma asa amarela de borboleta, se tornava uma certeza, uma presença incrustada nos poros da pele e da memória." "Tantos foram os amores na vida de Luamanda, que sempre um chamava mais um. Aconteceu também a paixão