Pular para o conteúdo principal

Quinze poemas de Geraldo Lavigne de Lemos no livro Primeira poesia revisitada

Geraldo Lavigne de Lemos


sentimentos gravados
Geraldo Lavigne de Lemos

meu coração é de pedra
porque não se apaga
o que nele se escreve
ou precisa de muita água
                      muita água da rara
da fonte dos olhos
que mine escorra lave
            lave
                      lave
e desgaste
                     a parte gravada

todavia se reescrito
torço que encerre o ciclo
pois quando é polido
meu coração fica menor
                              e
                inscreve
           diminutas
        palavras

--------

reflexão
Geraldo Lavigne de Lemos

debruçado sobre o peitoril
numa tarde morna
em um miramar
eu fitava
com olhos vagos
o horizonte

em pensamentos rasos
por um instante
sonhei voltar no tempo

voltar ao tempo
em que não existiam lembranças saudosas
de lugares e pessoas
e eu vivia momentos eternos

eu quis voltar
mas não pude
então voltei a mim
com a conclusão
de que a vida
é como aquele mar
onde
   as
       ondas
          continuadamente
            ruem-se
               umas
                  sobre
                      as
                           outras

--------

pertencimento
Geraldo Lavigne de Lemos

o meu umbigo
foi enterrado
nas terras do curral
no meio do mijo
e do esterco

os meus pés virgens
foram postos
nos atoleiros
e nos charcos

as minhas mãos
foram dadas
ainda cedo
às coisas do campo

os meus braços
conheceram a tiririca
e as minhas pernas, o cansanção

contra minha pele
investiram muriçocas
abelhas e marimbondos

fui içado
sobre o cavalo
e dele caí
feito aprendiz

quando chego aos caminhos
que conduzem a este solo
retorno ao meu peito
e habito o meu coração

não há lugar no mundo
que substitua
a lama
que consumiu o meu umbigo

--------

contradição
Geraldo Lavigne de Lemos

o amigo fala
o par reclama
o irmão discorda
a mãe perturba
o opositor encrenca

e nós? insatisfeitos

falamos do amigo
reclamamos do par
discordamos do irmão
perturbamos a mãe
encrencamos com o opositor

queremos alguém igual
queremos a unanimidade

somos inflexíveis
exigindo a flexibilidade

queixamo-nos,
porém não entendemos.
não adianta buscarmos,
que não conseguiremos.
nós somos humanos.
nós somos pensantes.
nós somos iguais nas diferenças.

--------

de coração para coração
Geraldo Lavigne de Lemos

ao encostar
meu peito || no seu
para cuidar
                      | de seus soluços |
eu gostaria
que você pudesse
ouvir:
— o meu coração
— ele bate
— em linguagem direta
                                          e compreensível

assim saberia:
                     meu coração
                                                     | é seu |
o quanto
                     | de você |
                                                     vive em mim

--------

costumes banais, costumes cabais
Geraldo Lavigne de Lemos

ligam-se os laços da informação,
conectam-se as redes da interatividade,
amontoam-se os seres.

tudo tão perto, tão perto de nada.
um fio, um vidro, um plástico, um ferro,
um sentimento perene.

as portas tecnológicas abertas,
as portas sólidas trancadas,
e continuamos mendigando a cura.

acenei para o meu vizinho
e tive por retribuição
o meu reflexo no vidro.

na época esquecida,
costumava-se conversar,
costumava-se abraçar.

--------

não há mais tempo
Geraldo Lavigne de Lemos

corra corra
você está atrasado
vai perder a abertura
do mais novo novíssimo raro

tem o doutor:
13:30
a entrevista:
13:30:01
o seu trabalho:
13:30
se perder o ponto
diminui o salário

e não adianta pular da ponte
saltar do avião
ou deitar na estrada
todos estão muito ocupados

esqueci da escola do seu filho
é logo após o almoço viu?
aliás que almoço?
deixe esse troço insosso
deixe seu prato limpinho

corre ande logo
já já tudo é passado
e aí vai precisar desenfreadamente
acabar correndo para o outro lado

os olhos fundos são normais
o carteado jogue fora
a dor nas pernas é resultado
o cansaço cura nas seis horas

ora bolas
vejam só
o mais novo novíssimo raro
é mero objeto empoeirado

--------

racional
Geraldo Lavigne de Lemos

a razão cria
o fio tênue do equilíbrio,
constitui a ligação delicada
entre o corpo,
                            o espírito
                                               e o mundo.

a loucura persiste
em todo o universo que resta.

manter a razão
é uma tarefa diária.

--------

timoneiros
Geraldo Lavigne de Lemos

os punhos dos afogados
                                          erguem-se
nas águas da Ilha Grande,
na baía de Camamu.

homenagem
à resistência dos homens
que, embora nascidos na terra,
antes nadam do que andam,
antes governam do que dirigem.

vida sábia desse povo
que segreda as intimidades da natureza.

mansos,
                    lembram:
— o mar tem suas vontades.

--------

magarefe
Geraldo Lavigne de Lemos

não descabelo mais o porco
com água fervente
enquanto ele sangra pelas ventas
e grita os meus pesadelos

não marreto mais
a testa do carneiro
antes de abrir a veia
entre os espasmos

nem trespasso mais a lâmina
na garganta do garrote
apeado aos meus pés

hoje o máximo que me ocorre
é ver um frango
circular sem cabeça
tingindo o piso

sento em minha cadeira de couro curtido
e da varanda vejo as moscas
cobiçarem o meu jazigo

peço às larvas
que esperem o meu corpo esfriar
antes de me terem engolido

--------

diplomata
Geraldo Lavigne de Lemos

palavras moderadas pela astúcia
gestos refreados pelo ardil
e um pouco de sátira
             ou de ironia
quando a tolice é contumaz

ligeiras entrelinhas
da verdade censurada

— o silêncio fala mais

a diplomacia é a arte da náusea

--------

desbravador
Geraldo Lavigne de Lemos

retiro com as unhas a pele morta de meus calos
e lembro do cabo do facão corneta
as vinte polegadas de lâmina a abrir caminho
cortando mato e cipós com golpes enérgicos
e os braços fustigados pela tiririca

na memória ainda sinto a bainha tocar a minha coxa
sobre a calça de tecido manchado e puído
o suor em gotas na camisa entreaberta
exalando o destemor de quem enfrenta qualquer fera
sob o chapéu que defende a visão

e quando levanto para me recolher
o calcanhar trava e faço força
viciado pela lama que envolveu as minhas botas por léguas
e me deu pés macilentos úmidos e fétidos

recordo das tantas cobras imobilizadas por minhas solas
e de ter necessitado ser mais bravo do que a selva
porque se algum dia desbravasse sem vigília
o animal indômito teria me negado
a piedade que eu lhe neguei por toda a vida

--------

o paradoxo da cigarra
Geraldo Lavigne de Lemos

após anos esquecida sob a terra
a cigarra abandona a carapaça da imaturidade

sai
para cantar
os breves dias que lhe restam
e viver tudo o que calara

ensina
com o desesperado exemplo
o que parece indecisão
mas é aproveitamento:
— e se...
             se...
                   se...
                         se...
                               se...

--------

a metáfora da esperança
Geraldo Lavigne de Lemos

a esperança envelhecida
      tem cor de palha

o homem a queimará
como um trago
e ficará com as mãos sujas
das cinzas do costume

--------

as sete representações
Geraldo Lavigne de Lemos

deita no canto o moribundo as carnes maceradas
e entrega
simplesmente entrega
na vida real
seu destino fatal
um corpo perdido e indeterminado
um corpo sobre outro corpo

canta na esquina o artista coisas quaisquer
e segue
simplesmente segue
na vida banal
que ele julga cabal
um passo perdido e indeterminado
um passo sobre outro passo

mostra nos murais o revoltoso a sua revolta
e para
simplesmente para
a luta moral
sem motivo factual
um sentimento perdido e indeterminado
um sentimento sobre outro sentimento

gesticula no alto o político os braços enérgicos
e fala
simplesmente fala
a realidade ideal
sem empenho parcial
um discurso perdido e indeterminado
um discurso sobre outro discurso

labuta na vida o trabalhador sem cessar
e cansa
simplesmente cansa
da rotina infernal
no labor integral
um destino perdido e indeterminado
um destino sobre outro destino

ordena a cadeira o aristocrata tudo o que quer
e manda
simplesmente manda
sem lembrar da Terra
sem lembrar das pessoas
mil destinos perdidos e indeterminados
mil destinos sob outro destino

vivem no mundo as pessoas de olhos vendados
e calam
simplesmente calam
na situação atual
que entendem normal
uma realidade perdida e indeterminada
uma realidade sobre outra realidade


Presentes no livro de poemas “Primeira poesia revisitada” (Patuá, 2023), de Geraldo Lavigne de Lemos, páginas 182, 199, 232-233, 41, 185, 45, 37-38, 178, 122, 246, 175, 250, 254, 244 e 27-28, respectivamente.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Seleta: R.E.M.

Foto: Chris Bilheimer A “ Seleta: R.E.M. ” destaca as 110 músicas que mais gosto da banda norte-americana presentes em 15 álbuns da sua discografia (os prediletos são “ Out of Time ”, “ Reveal ”, “ Automatic for the People ”, “ Up ” e “ Monster ”). Ouça no Spotify aqui Ouça no YouTube aqui Os 15 álbuns participantes desta Seleta 01) Losing My Religion [Out of Time, 1991] 02) I'll Take the Rain [Reveal, 2001] 03) Daysleeper [Up, 1998] 04) Imitation of Life [Reveal, 2001] 05) Half a World Away [Out of Time, 1991] 06) Everybody Hurts [Automatic for the People, 1992] 07) Country Feedback [Out of Time, 1991] 08) Strange Currencies [Monster, 1994] 09) All the Way to Reno (You're Gonna Be a Star) [Reveal, 2001] 10) Bittersweet Me [New Adventures in Hi-Fi, 1996] 11) Texarkana [Out of Time, 1991] 12) The One I Love [Document, 1987] 13) So. Central Rain (I'm Sorry) [Reckoning, 1984] 14) Swan Swan H [Lifes Rich Pageant, 1986] 15) Drive [Automatic for the People, 1992]...

Dez passagens de Clarice Lispector no livro Laços de família

Clarice Lispector (foto daqui ) “A mãe dele estava nesse instante enrolando os cabelos em frente ao espelho do banheiro, e lembrou-se do que uma cozinheira lhe contara do tempo do orfanato. Não tendo boneca com que brincar, e a maternidade já pulsando terrível no coração das órfãs, as meninas sabidas haviam escondido da freira a morte de uma das garotas. Guardaram o cadáver no armário até a freira sair, e brincaram com a menina morta, deram-lhe banhos e comidinhas, puseram-na de castigo somente para depois poder beijá-la, consolando-a. Disso a mãe se lembrou no banheiro, e abaixou mãos pensas, cheias de grampos. E considerou a cruel necessidade de amar. Considerou a malignidade de nosso desejo de ser feliz. Considerou a ferocidade com que queremos brincar. E o número de vezes em que mataremos por amor. Então olhou para o filho esperto como se olhasse para um perigoso estranho. E teve horror da própria alma que, mais que seu corpo, havia engendrado aquele ser apto à vida e à felici...

Dez passagens de Jorge Amado no romance Capitães da Areia

Jorge Amado “[Sem-Pernas] queria alegria, uma mão que o acarinhasse, alguém que com muito amor o fizesse esquecer o defeito físico e os muitos anos (talvez tivessem sido apenas meses ou semanas, mas para ele seriam sempre longos anos) que vivera sozinho nas ruas da cidade, hostilizado pelos homens que passavam, empurrado pelos guardas, surrado pelos moleques maiores. Nunca tivera família. Vivera na casa de um padeiro a quem chamava ‘meu padrinho’ e que o surrava. Fugiu logo que pôde compreender que a fuga o libertaria. Sofreu fome, um dia levaram-no preso. Ele quer um carinho, u’a mão que passe sobre os seus olhos e faça com que ele possa se esquecer daquela noite na cadeia, quando os soldados bêbados o fizeram correr com sua perna coxa em volta de uma saleta. Em cada canto estava um com uma borracha comprida. As marcas que ficaram nas suas costas desapareceram. Mas de dentro dele nunca desapareceu a dor daquela hora. Corria na saleta como um animal perseguido por outros mais fortes. A...