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Quinze passagens do livro “Rita Lee: outra autobiografia”

Rita Lee (foto: Guilherme Samora)


“Algo me diz que tenho escrito muito sobre morte. Aliás, por que há tanta gente que até se benze quando tocamos no assunto? A morte é a única verdade, e cada dia a mais vivido é um dia a menos que se vive. Pra quê fazer tanta cara de enterro quando deveríamos tratar dela com humor? Desta vida não escaparemos com vida.”


“(...) pedi para que ele me desse morfina e acabasse logo com aquela balela de tratamento para curar uma doença que eu sabia ser incurável. Disse a ele que minha vida tinha sido maravilhosa, e que por mim tomava o ‘chazinho da meia-noite’ para ir desta para melhor. Que me deixassem fazer uma passagem digna, sem dor, rápida e consciente: queria estar atenta para logo recomeçar meu caminho em outra dimensão. Sou totalmente favorável à eutanásia. Morrer com dignidade é preciso.”


“(...) sou a artista brasileira campeã de músicas censuradas na época da ditadura. Eu crente que fosse Chico Buarque. Para os milicos, eu era uma persona non grata porque ia contra os bons costumes da família tradicional brasileira. Fico lisonjeada de ter essa marca no meu currículo. Além disso, meu nome aparecia na lista de ‘pessoas de interesse’ da ditadura, bem pertinho do de Elza Soares. Tenho a impressão de que me enxergavam como uma mulher perigosa que atentava contra o pudor exasperado do patriarcado. Aquela velha frase: nunca fui um bom exemplo, mas sempre fui gente fina.”


“Fico contente quando mudo de opinião (...) Como é bom não ter personalidade fanática, a gente passa por tantas ‘verdades’, o que faz com que cheguemos à conclusão de que só mesmo sendo um espírito sem corpo físico é que vamos ter acesso aos arquivos akáshicos de nossa existência eterna até alcançar a Luz Divina. O caminho é longo, cheio de armadilhas, e o velho ditado é aqui aplicado: só os tolos não mudam de opinião. Velhos devem praticar a leveza do ser e o desapego da matéria, tolerar papo ‘inteligente’ dos jovens, voltar a ser criança conhecendo o mundo pela primeira vez. (...) Sei que estou mais perto da morte do que jamais estive, mas não sinto meu coração apertar de medo, e sim que vou deixar meu corpo físico e partir para o desconhecido do qual também não tenho medo. (...) Morte deve ser o grande gozo final da vida, aonde quer que eu vá, lá estarei eu.”


“É importante a gente cantar o que deseja. Sem intromissão. Quando eu estava começando a trabalhar com música, depois de um disco meu ter sido negado pela gravadora, foi organizada uma reunião com os bambambãs especialistas em sugerir quais atitudes os artistas deveriam seguir para terem sucesso. (...) Cheguei à mesa redonda e só vi homens de terno me olhando como se eu fosse uma mulher-objeto, algo a ser trabalhado para atender às opiniões deles de como deveria me comportar como artista. Papo vai, papo vem, e eu lá quietinha, só ouvindo. Os caras começaram a dizer como eu deveria me vestir: tipo minissaia e casaquinho cor-de-rosa, fazendo a cocotinha fofinha e bem comportadinha, cantando músicas de outros compositores, falando de amor pueril e bobinho. Me levantei da mesa, mandei todos tomarem no cu e fui para o banheiro da gravadora queimar um baseado. Não é preciso dizer que o meu contrato foi cancelado pelos eguinhos masculinos e fiquei desempregada. Mas o lado bom daquela reunião foi aprender o que não fazer.”


“Volta e meia recebo cartinhas de fãs, e alguns são bem jovens, contando como meu trabalho com a música mudou a vida deles e lamentando que antes não tinham idade para assistir a um show meu. (...) Fico no céu lendo essas coisas e me emociono quando escrevem que não são aceitos pelos pais por serem diferentes, e como minhas músicas são uma companhia e os libertam nessas horas de solidão. (...) Dia desses, um menino, rejeitado pela família por ser gay, me disse que pensou até em desistir desta vida, mas que ao ouvir minhas músicas decidiu ficar. (...) Dá vontade de pegar todos no colo e cantar baixinho no ouvido deles: ‘Você não está só, é só um nó que precisa ser desfeito’. (...) Mas sinto que é mais complicado ser jovem hoje, já que nunca tivemos essa superpopulação no planeta: haja competitividade, culto à beleza, ter filho ou não, estudar, ralar para arranjar trabalho, ser mal remunerado, ser bombardeado com trocentas informações, lavagens cerebrais...”


“Na real, eu passava por três situações desagradáveis all together: crises de pânico intermitentes, abstinência de cigarro e câncer no pulmão. Isso tudo em meio a uma pandemia que, na época, já tinha feito 500 mil brasileiros mortos. (...) Depois que cortaram minhas asinhas sumindo com meus tarjas, passei três dias sem dormir, que nem uma zumbi arrastando correntes pelo quarto e corredor. As enfermeiras me punham na cama e eu fingia ter dormido. Elas saíam e eu pulava do colchão e andava pelo quarto feito animal enjaulado. O staff todo era supergentil e ficava assustado quando aquela velhinha magrela entrava em parafuso e bradava contra o Bozonaro et caterva. (...) A medicação que me davam parecia pó, e seu efeito anfetamínico me deixava falando até com as paredes. Às vezes, eu segurava umas enfermeiras pelo uniforme e fazia altos discursos sobre os políticos e seus crimes contra o país. E me exaltava tanto que acabavam me dando um sossega-leão, e, quando o remédio batia, o ódio dava lugar ao choro, e eu pensava nos brasileiros que estavam morrendo por falta de compaixão dos canalhas no poder. (...) Passado o efeito do calmante, voltava meu côté anarquista de querer subir num caixote e xingar o presidento e todos que o cercavam. O povo brasileiro tinha passado um ano e meio recebendo avalanches de informações sobre o caos da pandemia no mundo, a destruição da Amazônia, do Pantanal e da Mata Atlântica, o aquecimento global, a mortandade e os maus-tratos de crianças e de animais; enfim, eu tinha motivos de sobra para discursar sobre ‘n’ assuntos cabulosos para quem entrasse no quarto.”


“(...) expliquei os benefícios do óleo de cannabis. Será que é por isso que não tenho reação à quimio? (...) O Brasil sai perdendo diante da possibilidade de ser um grande exportador de produtos à base de cannabis. Temos apenas um laboratório que fabrica o óleo, chamado Abrace Esperança, na Paraíba. A Anvisa volta e meia vem com um papo de fechar o lugar, imaginando que é tudo para liberar cannabis para recreação, o que não é verdade, pois o trabalho da organização é estritamente produzir óleos medicinais que atuam positivamente em inúmeras reações dolorosas para quem já testou, sem efeito, todas as alopatias que existem por aí. A demanda é grande, e tem ótimos resultados porque é uma planta sagrada que Deus colocou na Terra, mas os sapiens dizem ser diabólica. Olha só a audácia de acreditarem que ‘o Criador errou’ e os religiosos políticos estão certos. Haja ego nessa gente.”


“Você está lá, numa boa, e chega uma chata dizendo ‘com tantas crianças pobres no mundo e você aí, defendendo animais’. A primeira vontade que dá é encher a chata de porrada, mas a gente é educada e responde: ‘Defendendo animais, você educa as crianças a respeitar todas as formas de vida, e o animal, assim como a criança, não consegue dizer que está sendo maltratado por um adulto. Crianças e animais não sabem se defender e denunciar abusos cometidos, e cabe a nós dar voz a eles’. (...) Se a chata não entende, aperto o foda-se, mostro o dedo do meio e vou embora deixando a besta falando sozinha. Os humanos se acham mais sagrados que os animais, deploram o aborto e matam bezerrinhos porque a carne é mais tenra”


“Se você não leu minha primeira autobiografia, posso fazer um resumo: é a história de uma menina tímida mas safada que passou por altos e baixos, virou uma adolescente metida no clube do bolinha do rock, foi expulsa de uma banda, começou a compor música sozinha sem saber tocar nem cantar direito, conseguiu certa evidência, encontrou o amor de sua vida, foi presa grávida na época da ditadura, ganhou projeção nacional, caiu nas drogas enquanto sua antiga família morria um a um, teve três filhos, entrou e saiu de hospícios, conseguiu sucesso e fama, teve uma neta e um neto. Hoje, já velhinha, está careta, tem pouquíssimos amigos humanos e mora numa casinha no meio do mato com seus bichos e suas plantas e é feliz para sempre. Fora o resto. The end.”


“Depois de três dias e três noites sem dormir nem comer, bateu um pânico arrebatador de madrugada, uma vontade de ir embora pra casa, e comecei a tremer, a chorar, a hiperventilar, sem nenhum controle corporal, enquanto tinha visões tipo Inferno de Dante. Entendo perfeitamente nosso querido Grande Otelo quando, numa brecha dos enfermeiros, fugiu do hospital onde estava internado de camisola, daquelas que deixam a bunda de fora. (...) Já cansadas e impotentes com minhas panikadas, as enfermeiras do plantão da madrugada concluíram que um bom banho me acalmaria. (...) Tiraram minha roupa e me sentaram pelada numa cadeira de plástico com rodinhas e assento aberto igual privada. Eram seis mãos me ensaboando inteira, lavando meus cabelos, minha xereca, minha bunda. O chuveirinho estava frio, me fazendo tremer ainda mais (...) só conseguia chorar diante da minha impotência. Imagino que as enfermeiras tenham feito aquele horror comigo com a maior das boas intenções. Enquanto me lavavam, conversavam até sobre amenidades da vida delas e eu lá, ora puxada pra esquerda, ora pra direita, chorando como um bebê largado na lata de lixo na chuva.”


“Quando você fala que está com câncer, a pessoa geralmente fica séria e não sabe o que dizer; eu também agia assim. Ainda é um doença tabu porque no passado o tratamento era uma câmara de tortura e muitos morriam com dores lancinantes que nem um litro de morfina por segundo seguraria a barra. Não tive nenhum dos efeitos colaterais do tratamento, a não ser a queda de cabelo. O que ninguém comenta abertamente é a vergonhosa flatulência que vem quando você menos espera. Para não ficar um climão, já me denuncio: ‘Fui eu, acabei de soltar um pum’.”


“Agora sobre essa pandemia, pelo que sabemos, há mais interesses em negar o fato do que em salvar vidas. No palanque está um palhaço sem graça comandando nossa nave dos desesperados e levando meu querido país para o cu do mundo em matéria de destruição. (...) Mas, apesar dos pesares, daqui não saio, daqui ninguém me tira. Não desistirei nunca do Brasil. Se chegar aos meus 107 anos, estarei numa cadeira de balanço tricotando dizeres para um neto meu usar na passeata: ‘O Brasil repetiu de ano’.”


          “Na ala da quimio, perguntei para uma enfermeira negra, alta e bonita, com uma megacabeleira trançada, se ela poderia me ensinar a colocar um turbante e se eu estaria me apropriando culturalmente ao fazer isso. Ela riu e falou:
          — Ah, você pode!
          Fofa.”


“E foi de repente que me vi saindo do meu corpo físico, embora estivesse totalmente consciente. Difícil descrever em palavras o que vi e senti quando fui parar na presença de uma esfera flamejante multicolor. No primeiro segundo senti medo, mas, no segundo seguinte, fui envolvida por um amor tão imenso que me entreguei por inteira àquela aparição e, a partir de então, fui inundada de revelações e visões nunca dantes imaginadas por mim. (...) Meu lado são Tomé recebeu a prova que sempre esperou para crer que de fato a vida só começa mesmo quando nos transformamos em espírito. O ‘outro lado’, ou seja, as Dimensões de Luz, nos é muito mais familiar do que este lado, onde vivemos presos dentro de corpos densos. Não sei quanto tempo durou a viagem até me sentir puxada de volta para a cama do hospital. Aterrissei em estado de graça e com o sol nascendo em primeiro de maio.”


Presentes no livro “Rita Lee: outra autobiografia” (Globo Livros, 2023), páginas 82, 23, 120, 27-28, 180, 123-124, 12-13, 104-105, 163, 47, 16-17, 99, 136, 77-78 e 32, respectivamente.


Aforismos de Rita Lee no livro

“Foda-se, o que vier eu traço”

“Sempre quis ter alguém que não soubesse nada da minha identidade para jogar conversa fora sem querer tirar um pedaço de mim”

“Quando a raça humana vai entender que não se vende bichos? Quando a raça humana vai entender que eles não foram feitos para ficar em jaulas e gaiolas?”

“Está tudo certo, até o errado está certo”

“Todo dia o mundo se afoga no caos”

“Como bom coringa que sou, escolho a carta do tarô que mais me representa: o Louco”

“A atividade física que eu mais gosto é dormir”

“Não negocio com Deus, agradeço e peço licença para fazer xixi”

“Vai ser difícil achar um lugar para observar o fim dos tempos de camarote”

“Passamos a chamar o quisto cancerígeno de Jair, em homenagem ao maior inimigo do Brasil”

“Ficar pela primeira vez desde que nasci sem franja (...) é a mesma sensação de estar pelada no meio da avenida Paulista e todos rirem de mim”

Aforismos presentes no livro de crônicas “Rita Lee: outra autobiografia” (Globo Livros, 2023), páginas 70, 116, 171, 51, 124, 189, 86, 183, 124, 63 e 92, respectivamente.

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