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Nove passagens de Estevão Azevedo no romance Tempo de espalhar pedras

Estevão Azevedo (foto daqui)


“O sono do homem do garimpo é repleto de explosões, de baques metálicos de ferro contra rocha, do chocalho das peneiras preenchidas de areia e cascalho. Sonha mais com o árduo trabalho que precede a pedra que com a pedra dos sonhos, o garimpeiro em seu catre. Com a pedra da riqueza, sonha muito mais acordado – o corpo em seu descanso e a mente em seu torpor são mais afeitos à realidade que o garimpeiro em pleno entendimento, durante a vigília. (...) Tampouco sonha com outra vida, pois pena em concebê-la, cerceado pela imponência dos chapadões e do universo por eles delimitado. Se não os ultrapassa, se é por eles comprimido em vales e gerais, esse universo expande-se cada vez mais para dentro, rumo às entranhas da terra onde homem nenhum, por mais valente que seja, se aventura, perigo de apagar-se o lampião e ganhar, o homem, caixão mais amplo e mais escuro que o do mais rico dos ricos.”


“(...) Um átimo de dor faz esquecer toda uma vida anterior de felicidade. O tempo bom, por outro lado, demora a se assentar nos ânimos dos que sofreram. Por isso, o motor dessa inversão, a causa persistente que logra fazer vencer a temidamente frágil e quebradiça bonança, punhado a punhado, a fortaleza de uma memória de sofrimento, tal teimosia reconfortante assume na estima do ser reconfortado enorme importância. Na sucessão lenta de dias e noites, a mulher afeiçoava-se ao senhor que os recebera sem nada pedir em troca e quase a fizera, o que até então lhe parecia impossível, pensar nos dias de fome e na penosa caminhada como parte de uma vida que nunca fora a sua.”


“– Meus braços já não têm força pra carregar o meu filho... De hoje em diante é você, meu filho, quem me carrega. Até a derradeira vez, a mão na alça do caixão. Você carrega também meu nome. Esse, pra sua desinfelicidade, não morre. Você morre antes, e aí um neto carrega o seu e o meu, o fardo é dele. Como eu carreguei o de seu avô e bisavô. Meu nome pisa primeiro no lugar em que você entra, e quem o aguarda sabe se aperta sua mão com firmeza ou se a isso nem se digna pelo respeito que causa o nome que precede sua chegada.”


“(...) O ir-se deste mundo, só a Deus; à mãe cabia ensinar à filha que aquela dor não era maior do que qualquer outra, sabido que o banal da vida era assim: fazer o suficiente com aquilo que a dor faz de você. E o suficiente era não se oferecer em sacrifício em seu altar, posto que o sangue derramado fosse sempre o próprio e o benefício fosse de quem assistia ao ritual que sustentava um mundo já em ruínas – carência só de todos aceitarem. (...) – A dor que vale sentir é a de amanhã – Vitória soprou no ouvido da filha, enquanto a enlaçava pela cintura com o braço fino e forte e a puxava para um longe qualquer dali. (...) No dia seguinte, no outro e no outro, repetiria a sabedoria: 'A de amanhã'.”


“(...) Era preciso ser temido para ser atendido, e os dois homens que o haviam acompanhado se encarregariam de fazer correr os relatos de sua frieza na estripação. Entre os homens do coronel, entretanto, o que circulava era a certeza de que sua bravura não se sustentava na inclinação natural à peleja, típica dos corajosos, aquela que faz homem desarmado, de olhos injetados e coração acelerado sentir-se mais forte que outros dois ou três munidos de lâmina. Fiava-se no mando do tio, esse sim homem de tão destemido quanto justo, tão rígido quanto honrado – não que suas vítimas concordassem, era claro –, e sem a segurança que advinha desse laço de sangue e a retaguarda dos que trabalhavam para ele, o fresco do sobrinho não teria a audácia de olhar nos olhos de uma dama armada de leque.”


“(...) Sentiu-se enfraquecer e escorrer pela parede, como se a designação tivesse dissolvido, em seu interior, o que de rígido ele necessitasse para ser um homem capaz de suportar em pé o término de um dia como aquele.”


“(...) Em uma única vez, no entanto, e justo naquela, eis a sorte dentro do azar, foi acontecer o improvável: um desacordo entre gatilho, martelo e agulha, talvez pela fadiga dos frequentes e bem prestados serviços, fez a bala, ao contrário das predecessoras, que daquele útero mecânico foram todas expelidas em explosivo nascimento e, uma vez dadas à luz, desconfortáveis no contato com o ar, como se desistissem, em uma espécie de desparto, pode-se dizer, logo encontraram novo corpo em que se aninhar, o desacordo mecânico fez essa bala, a dessa única e precisa vez, não entendendo que deveria deixar o cano e desnascer em outras carnes, incendiar-se ali mesmo, dentro da arma, não vingar e explodir. O estouro lastimou a mão de Rosário e, por causa da dor e do susto, ele deixou cair punhal e revólver no chão e o próprio corpo sobre os joelhos. Bezerra vislumbrou a intervenção misteriosa do acaso e não teve tempo de pensar se fora Deus que decidira salvá-lo ou o Diabo que achara por bem convocar justo naquela hora o matador para suas hostes. Apanhou uma grande pedra, correu em direção ao homem caído e antes que Rosário terminasse de exprimir seus primeiros e passageiros ais – era cabra escolado em ferimentos – e decidisse terminar a tarefa com punhal, mãos ou com nada, que o inimigo não era assim tão difícil de subjugar, Bezerra golpeou-lhe a cabeça com a força que o medo, agora aliado, lhe fornecia. Os gemidos findaram como findou o sopro e a fagulha nos olhos do famigerado Rosário.”


“(...) Amigo era irmão por escolha, e nisso uma grande surpresa para ele, que nunca tivera outros além dos irmãos. Bezerra sabia aproveitar a vida, por isso Joca o admirava. Aceitava dar duro, mas só por boa causa: não concordava com que seu suor escorresse apenas para evitar que o açude do tédio permanecesse sempre no mesmo nível. Não sabia, mas, por trás de todos os motivos, o que mais o encantava no amigo, e isso de um modo que a razão não captava, era o fato de que Bezerra o tratava como alguém com quem se podia compartilhar uma decisão. Alguém valoroso o suficiente para arcar com o que dizia, vivido para além das infâncias. Algo que Joca até então não havia experimentado.”


“Joca pensou se não seria melhor correr, mas o mato ali não era muito aberto. A sua frente, Antônio bloqueava a passagem, enquanto seguia no relato da monstruosidade com a serenidade de quem se lembra da preparação de um guisado. Atrás, o coronel e seus homens pareciam desinteressados de tudo, mas só com um dos olhos: quem carece de ser dissimulado desenvolve providencial vesguice.”



Presentes no romance “Tempo de espalhar pedras” (Cosac Naify, 2014), de Estevão Azevedo, páginas 154, 130, 191, 230, 111, 189-190, 40-41, 56-57 e 116, respectivamente.

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