Pular para o conteúdo principal

Oito passagens de Antônio Torres no romance Um táxi para Viena d’Áustria

Antônio Torres (foto daqui)


"Na praia é a mesma coisa. Principalmente nos fins de semana, quando aparecem os amigos e conhecidos que você invariavelmente encontra batendo perna na areia ou no calçadão. Tudo bem? Como vão as coisas? Patati, patatá, você acaba abrindo o jogo, a maldita palavra escapa da sua boca. Desemprego. Ai, que horror. Até parece sinônimo de lepra. Aí o papo fica atado, não vai pra lá nem vem pra cá. As despedidas também são invariavelmente iguais: – Depois a gente se fala. (...) – Telefona pra mim, um dia desses. (...) – Qualquer coisa me procura, tá? Estamos aí. (...) Aí, onde? (...) E assim vou confirmando, comprovando, experimentando, sentindo na pele a hospitalidade tipicamente carioca: – Aparece lá em casa pra gente tomar um drinque. (...) O gentil autor do convite, porém, nunca se lembra de dar o seu endereço. Muito menos o telefone."


"Sol, céu, mar. Meu sentimento é oceânico. É sal, é sol, é sul. Minha visão é atlântica. Vai até a linha do horizonte, na fronteira da nostalgia. E tudo é azul demais – a cor perfeita para se morrer em estado de graça ou para se viver à flor dos poros."


"Palmas para quem consegue tirar um desemprego de letra. Eu não estou conseguindo. Os meus sentimentos a respeito, na verdade, são contraditórios. Às vezes penso que, quando pintar uma oportunidade, vou ficar muito chateado. Porque vou ser obrigado a aceitá-la. E aí? Trabalhar de novo? Voltar a me aporrinhar o dia todo, com a chatice do dia a dia empregatício? Emprego é um saco. Cansa, dá gases, úlcera, infarto e câncer. Vai ver até Aids. Hemorroidas, com certeza. E o desemprego? Dá preocupação, cabelos brancos e tudo o mais. Então fica combinado assim: se correr o bicho pega, se ficar o bicho come."


"Ai se eu soubesse antes que matar era tão fácil, tão bom. (...) Agora já sei que não existe emoção mais forte. Uma emoção única. Indivisível. (...) É assim como uma prova definitiva de potência, de saúde – você se sente física e mentalmente em plena forma. (...) E descobri mais: não existe movimento mais moderno. (...) Só requer velocidade e cinismo, a receita universal da modernidade."


"Belo exemplar de tirarucu brasiliense, esse motorista. Pintou uma trolha, vai tirando o dele da reta, rapidinho. Como todos fazem. Todos os tirarucus brasilienses. Mau-caráter. Pusilânime. Hipócrita. Vai ver frequenta uma igreja todos os dias. (...) Sou capaz de jurar que não passa de um dedo-duro. De minha parte terá cem anos de perdão se não desligar o rádio ou mudar de estação. Estamos viajando em dó maior, o tom sob medida para os torturadores abafarem os gritos dos torturados."


"É uma parede que aumenta e diminuiu de tamanho de acordo com o espaço que estou ocupando. E se move, acompanhando os meus passos, sempre ao meu lado. Quando me ergo da cama, ao acordar, ela também se levanta e me segue até o banheiro, me cercando. E assim por diante. Não me larga. Nem dentro de casa, nem na rua, muito menos quando estou andando na praia, onde às vezes ela se posta ao lado do mar e em outras do lado da rua, dependendo se estou indo ou vindo. Ainda não sei por quê, mas ela prefere sempre a minha direita. De vez em quando apostamos uma corrida, que acabo perdendo. É uma parede olímpica."


"Quero tropeçar num bêbado genial, como os de antigamente – mas neste momento todos os bares estão repletos de homens vazios. (...) E o poeta que disse isso não mora mais aqui. (...) Ele virou nome de rua e me abandonou numa garganta engarrafada. (...) Poetas, seresteiros, namorados, correi. Lá vem bala. (...) Todos ao mar – esse marzão besta que Deus nos deu e que ainda não aterraram e ainda é de graça e não me perguntem qual foi o milagre."


"E o morro mora ao lado. Se descer mesmo, como é que vai ficar? Vai caber todo mundo na nossa garganta?"



Presentes no romance "Um táxi para Viena d’Áustria" (Record, 2013), de Antônio Torres, páginas 138, 52, 146, 92-93, 51, 123-124, 18 e 17, respectivamente.

Comentários

artur carmel disse…
Sempre tive vontade de comprar esse livro. Li muito sobre ele quando do lançamento e do prêmio ganho pelo seu autor. Um dia ainda compro !
Engraçado a imagem dos cariocas, já ouço falar essas coisas de há muito. Carioca é sempre 'maneiro'. É déixxxx.
Abraço brimo Mirdad. Paz e Luz !

Postagens mais visitadas deste blog

Oito passagens de Conceição Evaristo no livro de contos Olhos d'água

Conceição Evaristo (Foto: Mariana Evaristo) "Tentando se equilibrar sobre a dor e o susto, Salinda contemplou-se no espelho. Sabia que ali encontraria a sua igual, bastava o gesto contemplativo de si mesma. E no lugar da sua face, viu a da outra. Do outro lado, como se verdade fosse, o nítido rosto da amiga surgiu para afirmar a força de um amor entre duas iguais. Mulheres, ambas se pareciam. Altas, negras e com dezenas de dreads a lhes enfeitar a cabeça. Ambas aves fêmeas, ousadas mergulhadoras na própria profundeza. E a cada vez que uma mergulhava na outra, o suave encontro de suas fendas-mulheres engravidava as duas de prazer. E o que parecia pouco, muito se tornava. O que finito era, se eternizava. E um leve e fugaz beijo na face, sombra rasurada de uma asa amarela de borboleta, se tornava uma certeza, uma presença incrustada nos poros da pele e da memória." "Tantos foram os amores na vida de Luamanda, que sempre um chamava mais um. Aconteceu também a paixão

Dez passagens de Clarice Lispector nas cartas dos anos 1950 (parte 1)

Clarice Lispector (foto daqui ) “O outono aqui está muito bonito e o frio já está chegando. Parei uns tempos de trabalhar no livro [‘A maçã no escuro’] mas um dia desses recomeçarei. Tenho a impressão penosa de que me repito em cada livro com a obstinação de quem bate na mesma porta que não quer se abrir. Aliás minha impressão é mais geral ainda: tenho a impressão de que falo muito e que digo sempre as mesmas coisas, com o que eu devo chatear muito os ouvintes que por gentileza e carinho aguentam...” “Alô Fernando [Sabino], estou escrevendo pra você mas também não tenho nada o que dizer. Acho que é assim que pouco a pouco os velhos honestos terminam por não dizer nada. Mas o engraçado é que não tendo absolutamente nada o que dizer, dá uma vontade enorme de dizer. O quê? (...) E assim é que, por não ter absolutamente nada o que dizer, até livro já escrevi, e você também. Até que a dignidade do silêncio venha, o que é frase muito bonitinha e me emociona civicamente.”  “(...) O dinheiro s

Dez passagens de Jorge Amado no romance Mar morto

Jorge Amado “(...) Os homens da beira do cais só têm uma estrada na sua vida: a estrada do mar. Por ela entram, que seu destino é esse. O mar é dono de todos eles. Do mar vem toda a alegria e toda a tristeza porque o mar é mistério que nem os marinheiros mais velhos entendem, que nem entendem aqueles antigos mestres de saveiro que não viajam mais, e, apenas, remendam velas e contam histórias. Quem já decifrou o mistério do mar? Do mar vem a música, vem o amor e vem a morte. E não é sobre o mar que a lua é mais bela? O mar é instável. Como ele é a vida dos homens dos saveiros. Qual deles já teve um fim de vida igual ao dos homens da terra que acarinham netos e reúnem as famílias nos almoços e jantares? Nenhum deles anda com esse passo firme dos homens da terra. Cada qual tem alguma coisa no fundo do mar: um filho, um irmão, um braço, um saveiro que virou, uma vela que o vento da tempestade despedaçou. Mas também qual deles não sabe cantar essas canções de amor nas noites do cais? Qual d