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Oito passagens de Don DeLillo no romance Zero K

Don DeLillo (foto daqui)


“Então estou eu no metrô com Paula, de Twin Falls, Idaho, turista animada e gerente de restaurante, e um homem na outra extremidade do vagão, dirigindo-se aos passageiros, sofrimento e perda, sempre um momento tenso, o homem que vai atravessando toda a composição, indo de vagão em vagão, sem emprego, sem teto, contando sua história, copo de papel na mão. Os olhos de todos os passageiros estão firmemente vazios, mas nós vemos o homem, é claro, passageiros veteranos, peritos em olhar de esguelha, enquanto ele dá um jeito de seguir em frente com firmeza, apesar das ondas sísmicas e sacudidelas do metrô. E lá está Paula, encarando o homem, examinando-o com olho clínico, violando o código. É a hora do rush e estamos de pé, eu e ela, e eu lhe dou uma cutucada com o quadril, que ela ignora. O metrô é o ambiente total do homem, ou quase isso, (...) e ele está investido do direito de apelar para nossa sensibilidade, até mesmo de certa autoridade que enfrentamos com um respeito desconfiado, ainda que ao mesmo tempo sintamos vontade de que ele desapareça. Ponho uns dois dólares no copo dele, cutucando Paula de novo com o quadril, dessa vez de brincadeira, e o homem abre a porta que separa os vagões, e agora sou eu o alvo de alguns dos olhares sub-reptícios antes dirigidos ao homem.”


“Ele não vai mais com ela. (...) Aquilo o estava massacrando, tudo aquilo, o peso esmagador de toda uma existência, tudo que ele já disse e fez trazido a este momento. Ei-lo, lasso, desgrenhado, aparvalhado, gravata desamarrada, mãos largadas sobre a virilha. (...) Como as coisas mudam da noite para o dia, e o que era uma decisão férrea se torna o testemunho débil da oscilação de um coração humano, e o homem que ontem falava com firmeza, andando de uma parede a outra com passos largos, agora está largado na cadeira, pensando na mulher que ele abandonou.”


“‘Quando tivermos conquistado a extensão da vida e nos aproximado da possibilidade de nos tornarmos eternamente renováveis, o que será das nossas energias, nossas aspirações?’
(...)
‘Sobre o que os poetas vão escrever?’
(...)
‘Não estaremos abrindo caminho para níveis insustentáveis de população, estresse ambiental? (...) Excesso de seres vivos, escassez de espaço.’
(...)
‘Metade do mundo está reformando a cozinha, a outra metade passa fome.’
(...)
‘O elemento definidor da vida é o fato de que ela tem fim.’
(...)
‘Qual o sentido da vida se ela se torna ilimitada?’
(...)
‘Não é a consciência de que um dia vamos morrer que nos torna preciosos para as pessoas que convivem conosco?’”


“‘O senhor não acredita?’, retruquei
‘Acho que não quero acreditar, não. Eu só faço falar sobre o fim. De modo tranquilo.’
‘Mas a ideia em si. A razão por trás de todo esse empreendimento. O senhor não aceita.’
‘Eu quero morrer e acabar pra sempre. Você não quer morrer?’, ele perguntou.
‘Não sei.’
‘Qual o sentido de viver se no final a gente não morre?’”


“(...) ‘A pessoa é a máscara, o personagem criado no pot-pourri de dramas que constitui a sua vida. Cai a máscara, e a pessoa se transforma em você no sentido mais verdadeiro. Todo um. O eu. O que é o eu? Tudo que você é, sem os outros, nem amigos nem estranhos nem namorados nem filhos nem ruas para percorrer nem comida para comer nem espelhos em que se ver. Mas será que você é alguém sem os outros?’”


“(...) ‘A iminência da morte não estimula o processo mais intenso de autoengano?’”


Sou alguém que dizem ser eu.”


“(...) Também me perguntava por que estávamos tendo aquela conversa besta naquelas circunstâncias terríveis. Será que isso é o que acontece no meio de questões terminais? A gente recua para um espaço neutro.”




Trechos presentes no romance Zero K (Companhia das Letras, 2017), de Don DeLillo, na tradução de Paulo Henriques Britto, páginas 58-59, 133, 69-70, 42, 67, 84, 54 e 53, respectivamente.

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