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Oito passagens de Margaret Atwood no romance O conto da aia

Margaret Atwood (foto daqui)


“Eu costumava pensar em meu corpo como um instrumento de prazer, ou um meio de transporte, ou um implemento para a realização de minha vontade. Eu podia usá-lo para correr, para apertar botões, deste ou daquele tipo, fazer coisas acontecerem. Havia limites, mas meu corpo era, apesar disso, flexível, único, sólido, parte de mim. (...) Agora a carne se arruma de maneira diferente, sou uma nuvem, congelada ao redor de um objeto central, com o formato de uma pera, que é duro e mais real do que eu e que incandesce vermelho dentro de seu invólucro translúcido. Dentro dele está um espaço, imenso como o céu à noite e curvo como ele, embora negro-avermelhado em vez de negro. Pontos infinitesimais de luz incham, chispam, explodem e murcham dentro dele, incontáveis como estrelas. Todo mês há uma lua, gigantesca, redonda, pesada, um augúrio. Ela transita, se detém, segue em frente e passa, desaparece de vista, e eu vejo o desespero vindo em minha direção como uma grande fome, uma escassez absoluta. E sentir aquele vazio, vezes sem fim, e outra vez. Escuto meu coração onda após onda, salgado e vermelho, batendo e batendo sem parar, marcando o tempo.”


“(...) ninguém morre por falta de sexo. É por falta de amor que morremos. Não há ninguém que eu possa amar, todas as pessoas que eu podia amar estão mortas ou em outro lugar. Quem sabe onde estão ou quais são seus nomes agora? Poderiam muito bem não estar em lugar nenhum, como eu estou para elas. Também sou uma pessoa desaparecida. (...) De tempos em tempos posso ver-lhes os rostos, contra a escuridão, tremeluzindo como as imagens de santos, em velhas catedrais estrangeiras, iluminados pela luz intermitente das velas; velas que você acenderia a seus pés para fazer uma prece, ajoelhada, com a fronte apoiada no anteparo de madeira, na esperança de uma resposta. Posso conjurá-los, mas são miragens apenas, não duram. Posso ser culpada por querer um corpo de verdade para pôr meus braços ao redor? Sem isso também estou desprovida de corpo. Posso ouvir a batida de meu próprio coração contra o estado de molas da cama, posso acariciar a mim mesma, debaixo dos lençóis brancos e secos, na escuridão, mas também estou seca e branca, dura, granular: é como passar a mão sobre um prato cheio de arroz seco; é como neve. Há algo de morto nisso, algo que foi abandonado. Sou como um quarto onde outrora as coisas aconteciam e agora nada acontece, exceto o pólen das ervas que crescem do lado de fora da janela que entra trazido pelo vento, como poeira espalhada pelo chão.”


“Afundo dentro de meu corpo como se dentro de um pântano, um atoleiro, onde só eu conheço os pontos de apoio seguros para os pés. Terreno traiçoeiro, meu próprio território. Torno-me a terra contra a qual encosto minha orelha, para escutar rumores do futuro. Cada pontada, cada murmúrio de ligeira dor, ondulações sucessivas de matéria na época de muda periódica, inchaços e diminuições de tecido, as secreções viscosas da carne, esses são os sinais, essas são as coisas de que preciso saber. A cada mês fico vigilante à espera de sangue, temerosamente, pois quando ele vem significa fracasso. Falhei mais uma vez em satisfazer as expectativas de outros, que se tornaram as minhas próprias expectativas.”


“Foi depois da catástrofe, quando mataram a tiros o presidente e metralharam o Congresso, e o exército declarou um estado de emergência. Na época, atribuíram a culpa aos fanáticos islâmicos. (...) Mantenham a calma, diziam na televisão. Tudo está sob controle. (...) Fiquei atordoada. Todo mundo ficou, sei disso. Era difícil de acreditar. O governo inteiro massacrado daquela maneira. Como conseguiram entrar, como isso aconteceu? (...) Foi então que suspenderam a Constituição. Disseram que seria temporário. Não houve sequer nenhum tumulto nas ruas. As pessoas ficavam em casa à noite, assistindo à televisão, em busca de alguma direção. Não havia nem um inimigo que se pudesse identificar. (...) Cuidado, disse Moira para mim, ao telefone. Está vindo por aí. (...) O que está vindo por aí?, perguntei. (...) Espere só, disse ela. Eles têm se preparado para isso. Seremos você e eu contra a parede, querida.”


“(...) o Comandante fode, com um ritmo regular de marcha de compasso dois por quatro, sem parar, como uma torneira gotejando. Ele está preocupado, como um homem cantarolando consigo mesmo no chuveiro sem saber que está cantarolando; como um homem que tem outras coisas em sua mente. É como se ele estivesse em algum outro lugar, esperando por si mesmo gozar, tamborilando com os dedos o tampo da mesa enquanto espera. Há uma impaciência em seu ritmo agora. Mas este não é o sonho erótico de todos, duas mulheres ao mesmo tempo? Eles costumavam dizer isso. Excitante, costumavam dizer. (...) O que está acontecendo neste quarto, sob o dossel argênteo de Serena Joy, não é excitante. Não tem nada a ver com paixão ou amor, ou romance ou qualquer daquelas outras noções com as quais costumávamos nos empolgar. Não tem nada a ver com desejo sexual, pelo menos não para mim, e certamente não para Serena. Excitação sexual e orgasmo não são mais considerados necessários; seriam meramente um sintoma de frivolidade, como ligas rendadas ou pintas falsas: distrações supérfluas para os volúveis. Fora de moda. (...) Isto não é recreação, nem mesmo para o Comandante. Isto é trabalho sério. O Comandante, também, está cumprindo seu dever.”


“Nada muda instantaneamente: numa banheira que se aquece gradualmente você seria fervida até a morte antes de se dar conta. Havia matérias nos jornais, é claro. Corpos encontrados em valas ou na floresta, mortos a pauladas ou mutilados, que haviam sido submetidos a degradações, como costumavam dizer, mas essas matérias eram a respeito de outras mulheres, e os homens que faziam aquele tipo de coisas eram outros homens. Nenhum deles eram os homens que conhecíamos. As matérias de jornais eram como sonhos para nós, sonhos ruins sonhados por outros. Que horror, dizíamos, e eram, mas eram horrores sem ser críveis. Eram demasiado melodramáticas, tinham uma dimensão que não era a dimensão de nossas vidas. (...) Éramos as pessoas que não estavam nos jornais. Vivíamos nos espaços brancos não preenchidos nas margens da matéria impressa. Isso nos dava mais liberdade. (...) Vivíamos nas lacunas entre as matérias.”


“(...) Meu nome não é Offred, tenho outro nome que ninguém usa porque é proibido. Digo a mim mesma que isso não tem importância, seu nome é como o número de seu telefone, útil apenas para os outros; mas o que digo a mim mesma está errado, tem importância sim. Mantenho o conhecimento desse nome como algo escondido, algum tesouro que voltarei para escavar e buscar, algum dia. Penso nesse nome como enterrado. Esse nome tem uma aura ao seu redor, como um amuleto, um encantamento qualquer que sobreviveu de um passado inimaginavelmente distante. Deito-me em minha cama de solteiro, de noite, com os olhos fechados e o nome flutua ali, por trás de meus olhos, não totalmente ao alcance, resplandecendo na escuridão.”


“O âncora agora aparece na tela. A expressão dele é gentil, paternal, olha para nós da tela, parecendo, com sua pele bronzeada, cabelo branco e olhos sinceros, cercados por rugas de sábia vivência, o avô ideal de todo mundo. O que ele está nos dizendo, seu sorriso comedido sugere, é para nosso próprio bem. Tudo estará resolvido brevemente. Eu prometo. Haverá paz. Vocês têm que ter confiança. Vocês devem ir dormir, como crianças bem-comportadas. (...) Ele diz o que ansiamos por acreditar. É muito convincente. (...) Luto contra ele. É como um velho ator de cinema, digo a mim mesma, com dentes falsos e o rosto trabalhado com plástica. Ao mesmo tempo me inclino de leve em sua direção, como uma pessoa hipnotizada. Quem dera isso fosse verdade. Quem dera eu pudesse acreditar nisso.”



Trechos presentes no romance O conto da aia (Rocco, 2017), de Margaret Atwood, na tradução de Ana Deiró, páginas 90-91, 125-126, 90, 208, 115-116, 71, 103 e 102, respectivamente.

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