Ferreira Gullar (Foto: Renato Parada) e Augusto dos Anjos (Desenho aqui)
Trechos do sensacional ensaio “Augusto dos Anjos ou Vida e morte nordestina” (1974-1975), em que o poeta maranhense Ferreira Gullar (1930-2016) escreve sobre o poeta paraibano Augusto dos Anjos (1884-1914):
“Não conheço nenhum outro poeta brasileiro, anterior a Augusto dos Anjos, que, a fim de exprimir a experiência concreta vivida, tenha de tal modo abandonado os recursos literários usuais, dado costas aos canais prontos da metáfora prestigiosa. Essa necessidade de não se desprender do vivido, de não traí-lo, de não disfarçá-lo com delicadezas, de erguê-lo de sua vulgaridade à condição de poesia por força da palavra é que determina a originalidade desse poeta e o salto que sua obra significa naquele momento da nossa poesia.”
“(...) É como se a poesia tivesse que descer ao mais sórdido da miséria humana para, aí, iluminá-la. É assim, me parece, que se deve entender a temática macabra de Augusto dos Anjos: como uma descida ao inferno, a uma dimensão terrível da existência humana que o poeta, sem poder ignorar, tenta redimir pela poesia.”
“Augusto caminha e ouve, dentro da noite, o apelo (...) dos seres microscópicos, dos germes, das montanhas, que lhe pedem para falar por eles. Ao mesmo tempo que, dentro do poeta, uiva ‘a matilha espantada dos instintos’, alucinações o perturbam, visões macabras, vozes o atormentam, enquanto pressente ‘o trabalho genésico dos sexos/ fazendo à noite os homens do futuro’. É o processo interminável da natureza a gerar e destruir o que gerou, essa madrasta que, avara, esconde o sentido da existência e tudo reduz a ‘uma teleologia sem princípios’. Para tentar decifrar o enigma do mundo, o poeta desce ao inferno dos leprosários, se confunde com os tuberculosos, come pratos de vermes, devora olhos humanos e sobe às alturas celestiais:
Vestido de hidrogênio incandescente,
Vaguei um século, improficuamente,
Pelas monotonias siderais...”
“(...) O passar do tempo, a decrepitude, a solidão, não as exprime através de conceitos ou imagens histórico-literárias; exprime-as com os próprios elementos dessa ruína anônima e vulgar: as lagartixas, que se encontram nos muros velhos do Nordeste, são transformadas pelo poeta em testemunhas da história, do trabalho destruidor do tempo. Subitamente, o poeta abdica de sua posição de observador para ver as ruínas pelos olhos das lagartixas que, dos esconderijos, ‘estão olhando aquelas coisas mortas’. É a expressão consumada e extrema do abandono, já que esses bichos são também as ruínas, pertencem a elas como o lodo e o cupim: é como se as próprias ruínas se mirassem a si mesmas, se vissem morrer.”
“(...) Em Augusto dos Anjos, para quem o cotidiano inclui a morte como fenômeno material, como putrefação, a expressão do amor e da ternura às vezes se defronta com uma realidade bem mais que banal, repugnante:
Amo meu Pai na atômica desordem
Entre as bocas necrófagas que o mordem
E a terra infecta que lhe cobre os rins!
Ou como nestes versos ao filho nascido morto:
Porção de minha plásmica substância,
Em que lugar irás passar a infância,
Tragicamente anônimo, a feder?!...
O que há de horroroso no tema desses versos, tanto como que há neles de impacto fácil, dificulta geralmente que se perceba a patética expressão de amor que contém, bem como o seu valor poético. Aqui também se verifica o propósito de mostrar a morte como fato real, situado, e de fazer desses objetos repugnantes – os cadáveres do pai e do filho – a expressão de um sentimento sublime. Ou melhor, de não se negar, em nome da delicadeza poética, a exprimir a realidade: aqueles corpos podres são seu pai e seu filho, objetos de seu amor.”
“Para Cruz e Sousa, a noite é ‘a grande Monja negra’; para Carlos Drummond de Andrade, ‘a noite banha tua roupa’; para Augusto dos Anjos, ‘a noite funcionava como um pulso’. (...) Para Raimundo Correia, a lua é um ‘golfão de cinzas’; para Drummond, a lua é ‘diurética’; para Augusto, ‘um doente de icterícia’. (...) Para Vicente de Carvalho, o cemitério são ‘alas de ciprestes negros a gemer ao vento’; para João Cabral de Melo Neto, uma ‘constantinopla complicada’ e fornos em que ‘nenhuma coisa é apurada’; para Augusto, o cemitério é um ‘boulevard que fede’ e um ‘alambique’ onde se processa uma ‘química feroz’.”
“Lendo Spencer convenceu-se de que a ciência é incapaz de penetrar a essência das coisas – o incognoscível –, a realidade absoluta que seria fonte de todo o conhecimento humano; que o evolucionismo não era um fenômeno limitado aos seres vivos mas se estenderia a todo o mundo material e também à sociedade humana. Com Haeckel aprendeu que a monera estava na origem de todos os seres animais. Dessas concepções materialistas, atingiu-o sobretudo a noção da morte como fato material, da vida como um processo químico dentro do qual o corpo humano não era mais que uma organização ‘de sangue e cal’, condenada inapelavelmente ao apodrecimento e à desintegração. A isso veio somar-se a influência de Schopenhauer, com seu idealismo voluntarista que nega o progresso histórico, afirma que a essência do mundo é uma vontade cega e apresenta como única perspectiva para o homem, condenado ao sofrimento, o aniquilamento da vontade de viver. Essa filosofia negativa se tornava tanto mais aceitável para Augusto dos Anjos porque apresentava a arte como o caminho para atingir a ideia de Homem Absoluto.”
“O filho do dr. Alexandre e dona Córdula, que caminha (ou imagina caminhar) agora pelas ruas escuras e pontes do Recife, sob ‘o fósforo alvo das estrelas’, é a testemunha perplexa e atormentada da grande tragédia. A sua visão abarca todos os fenômenos e todas as eras, desde sua origem como ‘larva do caos telúrico’ até ‘o vagido de uma outra Humanidade’, desde a ‘miséria anatômica da ruga’ até as eterizações da ‘energia intra-atômica liberta’. Mas essa capacidade de generalização e abstração não o desliga da realidade menor dos bezerros que são arrastados para os açougues, dos cães ‘ganindo incompreendidos verbos’, do tamarindo que o machado abate, das negras quitandeiras, do corrupião que a gaiola fez triste, dos índios que a civilização esmagou, dos escravos que trabalham para os brancos, dos indigentes que são enterrados nus, dos tuberculosos, dos leprosos, dos bêbados, das prostitutas, de sua ama de leite Guilhermina (‘que roubava a moeda que o Doutor me dava’), do finado Toca (‘que carregava cana para o engenho’).”
“(...) o soneto de Alberto de Oliveira não transmite uma experiência viva do real, mas uma noção, um conhecimento prosaico, amortecido, do fato. Os versos de Augusto, pelo contrário, contêm os estímulos da experiência que injetam vida à linguagem. Enquanto Alberto nos fala de um ‘alegre passarinho’, (...) Augusto vê no seu pássaro um ‘alvo artífice da teia’ (note-se a ambivalência da adjetivação que atinge tanto o pássaro como a teia), que trabalha com ‘a rapidez de uma semicolcheia’, saltando de um ponto a outro. E com essa segunda imagem, o poeta transforma as árvores e galhos em pauta musical e nos comunica, ao mesmo tempo, o silêncio daquela faina, a ausência momentânea do canto que está implícito no pássaro como a música na pauta. Exemplos como esse revelam não apenas o nível de complexidade a que Augusto conduz a expressão verbal, como também o rompimento com a concepção literária acadêmica, o que o situa como precursor, a meu juízo, da poesia que se fará no Brasil depois do movimento de 22.”
“(...) Em poucos poetas brasileiros a indagação filosófica desempenha papel tão importante como em Augusto; não obstante, nem por isso seus poemas são menos irredutíveis à explicação lógica. E mais: na verdade oferecem grande dificuldade ao entendimento lógico. E isso porque a expressão, neles, não se elabora abstratamente, linearmente, mas convocando e misturando, com extraordinária liberdade, os elementos objetivos e subjetivos, a sensação e a fantasia, o cotidiano e o ‘histórico’, a alucinação e o conceito.”
“(...) o universo metafórico de Augusto se alimenta da podridão, dos vermes, da noite, do luto, do carvão, dos signos zodiacais, da superstição; o de João Cabral, da calcinação, da aridez, do ossuário, da cal viva – a morte diurna. Os mortos de Augusto apodrecem e fedem; os de João secam, viram cal; Augusto fala de sua própria morte; João, da morte dos outros.”
“Do parnasianismo, Augusto herdou, sobretudo, o verso conciso, o ritmo tenso e a tendência ao prosaico e ao filosofante; do simbolismo, além do gosto por palavras-símbolo com maiúscula, o recurso da aliteração e certos valores fonéticos e melódicos. Todos esses elementos aparecem mesclados em seus poemas, transformados por uma impostação original que os utiliza livremente, como meio. Não há nele a preocupação formalista, mas, antes, a busca de uma linguagem intensa que, por barroca que seja, jamais é meramente ornamental.”
“(...) Do mesmo modo que a realidade terrível – que a ciência e a filosofia lhe põem diante dos olhos – constitui um dos polos de sua indagação poética, a terminologia científico-filosófica constitui um dos polos de sua linguagem; isto é, como a realidade, essa terminologia – expressão da realidade – deve ser transfigurada. É sem dúvida impossível descartar a presença de certo pernosticismo no uso de palavras às vezes abstrusas, mas isso pode ser explicado como um escudo de erudição com que o poeta se protege para descer ao inferno da vulgaridade e do mau gosto.”
“(...) ninguém obrigou Augusto a escrever, em tantos casos, sonetos no lugar de poemas mais livres. O fato de ter ele, com tanta frequência, adotado a forma soneto indica o quanto estava condicionado por ela, à qual recorria quando o que desejava exprimir – e portanto quando sua disposição interior – não pedia uma forma mais ampla. Pode-se dizer, sem maior exagero, que, na dialética interna do processo expressivo de Augusto, os poemas longos assinalam os momentos em que a necessidade expressiva conduz o poeta a superar suas próprias limitações e condicionamentos. São momentos em que ele se dispõe a questionar mais profundamente suas relações com a realidade cotidiana têm maior peso e, ao mesmo tempo, em que sua imaginação poética e sua inventividade verbal atingem nível mais alto.”
Trechos presentes no livro Toda poesia de Augusto dos Anjos (José Olympio, 2016), páginas 28-29, 50, 18-19, 28, 49-50, 50-51, 16-17, 18, 26, 62, 79-80, 21, 74 e 60, respectivamente.
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