Lev Tolstói - Foto daqui
“O chafariz estava emporcalhado, provavelmente deixado assim
a propósito, de modo que não se podia apanhar água nele. Igualmente
emporcalhada estava a mesquita, e o muezim com os mutalins a estavam
limpando. Os velhos, chefes de família, reuniram-se na praça e, de cócoras,
discutiam a situação. Ninguém falava sequer do ódio aos russos. O sentimento
que experimentavam todos os tchetchenos era mais forte que o ódio. Não odiavam,
mas simplesmente não reconheciam aqueles cães russos como gente. Era uma
sensação de asco e estupefação ante a crueldade absurda daquelas criaturas, e o
desejo de destruí-las, a exemplo do desejo de destruir os ratos, as aranhas
venenosas e os lobos, era um sentimento natural como o instinto de conservação.”
“O pequeno tufo consistia em três plantas. Uma delas fora cortada, e o resto de um ramo aparecia como um braço decepado. Em cada uma das outras duas havia uma flor. Essas flores tinham sido vermelhas, mas agora estavam negras. Uma haste fora quebrada, e a sua metade, com uma flor suja na ponta, pendia para baixo; e a outra, apesar de coberta de lama negra, ainda se mantinha erguida. Via-se que todo o tufo tinha sido pisado por uma roda, e que se erguera mais tarde, fincando inclinado para um lado, mas sempre se mantendo de pé – como se lhe tivessem arrancado um pedaço do corpo, revolvendo-lhe as entranhas, e lhe decepassem um braço e furassem os olhos, mas ele sempre se mantivesse firme, sem se entregar ao homem, que destruíra todos os seus irmãos ao redor. (...) ‘Que energia’ – pensei. ‘O homem venceu tudo, destruiu milhões de ervas, mas esta não se rende.’”
“Nikolai estava certo de que todos roubavam. Ele sabia que seria preciso castigar agora os funcionários da Intendência, e resolveu engajá-los como soldados, mas sabia também que isso não impediria aqueles que os substituíssem de fazer exatamente o mesmo. Roubar era algo inerente aos funcionários, e a obrigação dele consistia em castigá-los, e, por mais entediado que estivesse com semelhante tarefa, cumpria conscienciosamente essa obrigação. (...) – Pelo que se vê, existe na Rússia um único homem honesto – disse ele. (...) Tchernichóv compreendeu imediatamente que esse único homem honesto na Rússia era o próprio Nikolai, e sorriu em sinal de aprovação. (...) – Deve ser exato, Majestade – disse ele.”
“Os olhos daqueles dois homens se encontraram e disseram um ao outro muita coisa inexprimível por palavras e algo bem diferente daquilo que dizia o intérprete. Diretamente, sem palavras, exprimiam mutuamente toda a verdade: os olhos de Vorontzóv diziam que ele não acreditava em uma palavra sequer do que lhe dizia Khadji-Murát e que sabia ser esse homem um inimigo de tudo o que era russo, que assim permaneceria, e que se submetia agora unicamente por ter sido obrigado a tal passo. Khadji-Murát compreendia isso e, apesar de tudo, afirmava a sua fidelidade. Os seus olhos, porém, diziam que aquele velho devia pensar na morte e não em guerras, mas que, apesar da idade, era muito esperto e, por conseguinte, devia-se tomar cuidado.”
“(...) A lisonja permanente, asquerosa e sem rebuços, dos que o cercavam, reduzira-o a tal estado que não via mais as suas contradições e não fazia concordar os seus atos e palavras com a realidade, a lógica ou sequer com o comezinho bom senso, e estava plenamente convencido de que todas as suas disposições se tornavam inteligentes, justas e coerentes entre si, pelo simples fato de provirem dele.”
“– Temos um provérbio – disse ele ao intérprete –, um cachorro alimentou um asno com carne, e este por sua vez serviu feno àquele. Ambos ficaram com fome – sorriu. – Para cada povo, são bons os seus próprios costumes.”
“(...) caminhando tão suave e harmoniosamente que um copo d’água que lhe fosse posto sobre a cabeça não se derramaria, acercou-se da porta que se abria silenciosa e, mostrando com todo o seu ser o respeito que tinha por aquele lugar onde entrava, desapareceu atrás da porta. (...) esta se abriu novamente e dela saiu o ajudante de campo, ainda mais radiante e respeitoso que antes, e, com um gesto, convidou o ministro e seu imediato a entrarem no gabinete do tsar. (...) Nikolai estava sentado à secretária, de sobretudo preto, com galões pequenos em lugar de dragonas, e, tendo inclinado para trás o busto volumoso, fortemente apertado sobre a barriga túmida, dirigia para os recém-chegados o seu olhar imóvel e sem vida. O rosto branco e comprido, de enorme fronte inclinada, que sobressaía sob os cachinhos das têmporas, cuidadosamente alisados e habilmente unidos à peruca, que lhe cobria a calva, estava naquele dia particularmente frio e imóvel. Os seus olhos, sempre embaçados, que pareciam ainda mais turvos que de costume, os lábios apertados, sob os bigodes virados para cima, as faces flácidas, recém-barbeadas, escoradas por um colarinho alto e cobertas pelas salsicinhas regulares das suíças, e o queixo comprimido contra o colarinho, davam ao seu rosto uma expressão de aborrecimento ou mesmo de ira.”
Trechos presentes no romance Khadji-Murát (Editora 34, 2017), de Lev Tolstói, na tradução de Boris Schnaiderman, páginas 132-133, 26-27, 118, 84-85, 120, 149 e 113-114, respectivamente.
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