Mia Couto (foto: Renato Parada)
“Encosto-me à porta, fecho os olhos e suspiro. Escuto os passos do porteiro que se aproxima com a gentileza de um gato. Encosta a boca ao meu ouvido para superar o volume da música.
— Está cansado, meu poeta? — quer saber o homem. — Que direi eu que trabalho aqui há mais de quarenta anos? Vou confessar-lhe uma coisa: estas festas são iguais às dos antigos colonos...
— Nada mudou para si?
— Para mim? — E o porteiro revira os olhos como se buscasse a resposta no escuro. — O que mudou foi assim: antes, eu não existia; agora, sou invisível.”
“O médico conhecia as tendências hipocondríacas do poeta. E sabia dos fundamentos desse estado de carência. Um escritor, defendia Adriano Santiago, precisa de uma doença, de preferência uma que não seja possível diagnosticar. Segundo ele, havia dois inimigos da inspiração poética: o primeiro era ser saudável num mundo tão doente; o segundo era ser feliz num mundo tão injusto.”
“— Desde ontem que rezo por si — disse o holandês.
— Reze antes por Sandro que anda por aí perdido. Reze por todos, menos por mim que sou ateu.
— Ninguém é ateu — afirmou o padre.
— Talvez tenha razão. Sou tão religioso que não me basta um só deus.
— Não fale assim do que é sagrado — admoestou o padre.
— É o que lhe digo: todos os dias me nascem deuses. Não imagina quantos nasceram e morreram nesta viagem.”
“Não sou natural de Inhaminga. Contudo, sou igualmente de um lugar pequeno, onde todos proclamavam o seu amor à terra, mas cujo anseio secreto era emigrar. Nessa cidade a vida decorria entre a culpa e o medo. Os que ficavam odiavam os que partiam, acusando-os de traição. Os que partiam odiavam os que ficavam, acusando-os de cobardia.”
“(...) Benedito relembra o dia em que o seu pai o trouxe à festa da inauguração daquela piscina. Estava-se em 1972. Pai e filho sabiam que não podiam entrar. Não era preciso um cartaz alardeando essa interdição. Sabia-se simplesmente que era assim. Capitine disse então ao filho: as boas leis são as que não precisam de ser escritas. Mas o régulo ainda tinha esperança de que os negros assimilados, como ele, fossem admitidos. Não foi o caso. Teve que se contentar em observar à distância a festa dos outros. O jovem Benedito crispou os dedos nos arames da vedação enquanto escutava os gritos de júbilo dos rapazes brancos que se lançavam como anjos alados da prancha mais alta.
— Lembro ainda os meus dedos ferindo-se na vedação, mas a alegria do meu pai foi tão verdadeira que me convenci de que aquele era o nosso lugar e que devíamos dar graças a Deus por poder ver a alegria dos outros.
Um dia os padres holandeses construíram uma piscina para os negros. Era acanhada e pouco profunda. Abria aos domingos e ficava tão sobrelotada que parecia que ali se concentravam as crianças negras do mundo. Era tão modesta que dela não sobrou ruína.
(...)
Liana é a primeira a dirigir-se para a viatura. Benedito fica um instante com as mãos sobre o volante e comenta, suspirando:
— Agora que já posso entrar na piscina, deixou de haver piscina. Esta é a metáfora da minha vida: Agora que já posso entrar, deixou de haver dentro.”
“Contrariada, a filha acede ao pedido da mãe. E conta a história de Maria Lampadinha, uma moça da sua aldeia que matou o marido com agulhas de croché. Espetou-as, uma de cada lado, no peito do homem, que tombou de borco sobre o tapete. Lampadinha retirou lentamente as agulhas do corpo e, sem as limpar, terminou de costurar a blusa que, nesse mesmo dia, ofereceu à amante do marido.”
“Quando um regime começa a prender os poetas é porque esse regime está perdido, A PIDE assinou, numa só penada, a sua própria certidão de óbito e a da prostituta. Se os senhores fossem inteligentes procediam exatamente ao inverso: concediam um prémio ao Adriano. É assim que se cala um escritor. Uma outra alternativa seria oferecer-lhe emprego na vossa polícia. Dizem que a PIDE emprega muita gente, por que motivo não empregaria o meu filho? Quem escreve tão bem versos, saberia com certeza redigir relatórios maravilhosos. Os senhores não aprenderam com as mulheres da minha geração. Era o que fazíamos no casamento. Trazíamos o lobo para dentro de casa, que era onde ele se convertia num cachorro manso.”
“E hoje voltei a acordar tarde quando já terminou o serviço do pequeno almoço. O gerente do hotel, simpático, guardou uma mesa para mim. A sala de refeições está sobrelotada. Decorre mais um seminário de organizações não governamentais e agências que a si mesmo se chamam de ‘doadoras’. Uma vez mais discutem a miséria do povo nos hotéis mais luxuosos da cidade.”
“Toco na sua pele como se desenhasse uma minha própria fronteira. E lembro os versos do meu pai: ‘Não quero o teu corpo. Quero deixar de ter o meu’. Ela pede que lhe beije os ombros, as omoplatas, as costas — Sou a sua sereia — murmura.
Deitamo-nos no chão por cima do meu caderno. O suor dos nossos corpos faz desbotar as folhas. A tinta inscreve-se no corpo de Liana. Leio a minha caligrafia nas suas pernas, nas suas costas. Estou escrito no corpo dela.”
“(...) Vivíamos, dizia, uma nova etapa da violência da guerra colonial. As autoridades portuguesas tinham retirado lições dos anteriores massacres e decidiram apurar o método: este novo massacre seria executado lentamente, tão lentamente como se, por um lado, não chegasse nunca a acontecer e, por outro, nunca parasse de suceder. Chama-se a isso o estratagema do relógio. O ponteiro dos segundos saltita tantas vezes que ninguém repara no seu movimento. Aqueles negros massacrados são o ponteiro dos segundos: ninguém repara neles, ninguém os contabiliza. Mas são eles que fazem o tempo.”
“— Vejo que és uma pessoa importante — afirmo. — Quem diria, o meu amigo Benedito Fungai, um governante da cidade?
— Engana-se sobre a minha categoria de governante. Esta cidade é ingovernável. Aqui, quem manda é apenas o mar.”
“Uma vez mais, adormeço com a pancada das teclas de encontro ao indefeso papel. E esse embalo se torna tão real que acredito escutar o meu pai escrevendo poesia no meu quarto de hotel, De vez em quando as hastes se emaranham umas nas outras. Parecem criaturas híbridas, metade dançarinas, metade pugilistas. Ao toque de um dedo, as hastes se desembaraçam. E lá volta o meu pai a martelar no teclado. Estranhas criaturas desfilam na minha cabeça enquanto as teclas sobem e descem como pêndulos cegos. Para a frente, acontece a vigorosa bicada de uma ave pernalta; para trás, o arrependido pescoço de uma girafa.”
“O meu capitão repete, vezes sem fim, que a guerra é feita por homens. Homens com H maiúsculo. Atira-me à cara essa verdade e, em volta, os outros soldados desatam às gargalhadas. E põem-se a desfilar à minha frente, rebolando os corpos com trejeitos femininos. Apetece-me gritar: aqui são todos muito machos, mas quem quiser ganhar uma guerra não pode tocar nas mulheres. Vocês maltratam as vossas mulheres em casa e ultrajam as mulheres dos outros fora de casa. Aqui em Inhaminga já há muito que se matam mulheres. E matam crianças. Isto não é uma guerra, tia Virgínia. Nem nós somos soldados. Somos apenas o gatilho vivo de mandadores sem rosto.
O capitão da nossa companhia não se cansa de nos advertir: não olhem para as pretas, não falem com os pretos. Se olharem as pretas nos olhos estão tramados: nunca mais puxam o gatilho. Se derem atenção aos pretos, eles desatam a contar-vos histórias e acontece como nas Mil e uma noites: nunca mais vocês os matam. Ainda bem que eles falam uma outra língua, disse o capitão. Se os entendêssemos, nesse mesmo momento deixariam de ser inimigos. Para os matar há que lhes vendar os olhos e fechar-lhes a boca. Foi isto que o capitão clamou aos quatro ventos. Este país, minha tia, é um imenso paredão de fuzilamento.”
“Maniara está certa de que foi um erro terem batizado o navio de Angoche. Os brancos, diz ela, não sabem que não se deve dar nomes de terras aos barcos. As embarcações ficam confusas, não sabem onde pertencem. Foi por isso que todos os tripulantes desapareceram. Agora são nuvens. Passam por nós, tristes por não erguermos o rosto à sua passagem. Maniara tinha esperança de que o ciclone trouxesse de volta o seu cunhado. Ela conhecia mulheres que fizeram os oceanos ajoelharem-se a seus pés. (...) A mulher acende um cigarro, aspira o fumo e a voz dela se esfuma enquanto nos explica a gentileza de rios e mares. As pessoas não entram na água, assegura ela. A água é que, educadamente, se afasta. É preciso pedir autorização. É preciso pedir licença ao mar. Licença para levar, licença para devolver.”
“— Todos temos duas sombras. Apenas uma é visível. Há, porém, aqueles que conversam com a sua segunda sombra. Esses são os poetas. O senhor é um deles, um dos que falam com as sombras.
Tudo isto me é dito pelo porteiro à entrada do salão de festas. Acena com um livro de poesia, pede que lhe faça uma dedicatória. Levanto os braços, em gentil recusa: — Não posso, quem escreveu esse livro foi o meu pai.
O homem encolhe os ombros, sorrindo, e murmura: — Então, o autor é você mesmo.”
Presentes no romance “O mapeador de ausências” (Companhia das Letras, 2021), de Mia Couto, páginas 13, 254, 83, 223, 242-243, 70, 240, 43, 166-167, 89, 112, 120, 103-104, 245 e 11, respectivamente.
Aforismos em “O mapeador de ausências”
“É fácil ter coragem quando se tem para onde fugir”
“A eficiência da mentira diz mais da ingenuidade do enganado do que da arte do mentiroso”
“Ser cego para as raças pode ser uma maneira de não ver o racismo”
“Não saber para onde fugir é tão triste como não ter casa”
“Quem salva uma pessoa arranja um inimigo para o resto da vida”
“Não desenterres o passado. Podes encontrar um futuro morto”
“O meu corpo só se despe no teu”
“Não há lamento mais digno que o silêncio”
“Os ossos crescem com a tristeza”
“Não é por respeito que cerramos as pálpebras dos que partem. Temos medo que os mortos nos continuem observando”
“Honrarias em terras pequenas são como anéis em dedos de pobre: desses brilhos nascem mortais invejas”
“As paredes, para mim, são portas”
“Quanto mais ordens se dá, mais ordens precisamos de receber”
“A roupa atrapalha a sinceridade”
“Chorar é um modo de falar”
“No dia em que um pescador disser que a pesca correu bem, o mar nunca mais lhe perdoará”
“Enganosa é a ideia do paraíso como um lugar frondoso e perfumado. O universo começou num pântano”
“É injusto herdar passados, é como se nos amarrassem o tempo aos nossos pés”
Aforismos presentes no romance “O mapeador de ausências” (Companhia das Letras, 2021), de Mia Couto, páginas 89, 129, 128, 65, 145, 79, 147, 132, 84, 203, 12, 91, 142, 236, 190, 46, 44 e 17, respectivamente.
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