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O jogo da amarelinha, de Julio Cortázar — Parte 01

Julio Cortázar interferido por Mirdad

"Não estávamos apaixonados, fazíamos amor com um virtuosismo desligado e crítico, mas sempre caíamos, depois, em terríveis silêncios. A espuma dos corpos de cerveja ia ficando como estopa, amornando e contraindo-se, enquanto nos olhávamos e sentíamos que chegara o momento. A Maga acabava por se levantar e dava voltas inúteis pelo quarto. Mais de uma vez, eu a vi admirar seu corpo no espelho, segurar os seios com as mãos, como nas estatuetas sírias, e passar os olhos pela sua pele numa lenta carícia. Nunca consegui resistir ao desejo de pedir que se aproximasse, sentindo-a curvar-se pouco a pouco sobre mim, desdobrar-se outra vez, depois de ter estado por um momento tão só e tão apaixonada diante da eternidade do seu corpo"

"Você sempre foi um espelho terrível, uma espantosa máquina de reprodução, e aquilo a que chamávamos o nosso amor era talvez eu estar de pé diante de você, com uma flor amarela na mão e você com duas velas verdes, enquanto o tempo soprava contra os nossos rostos uma lenta chuva de renúncias e de despedidas e passagens de metrô"

"Talita se estendeu um pouco mais na cama e apoiou-se em Traveler. Sabia que estava de novo a seu lado, que não tinha se afogado, que ele a estava segurando na superfície e que no fundo era uma lástima, uma maravilhosa lástima. Os dois o sentiram no mesmo instante e escorregaram um pelo outro como para cair em si mesmos, na terra comum onde as palavras e as carícias e as bocas os envolviam como a circunferência envolve o círculo, essas metáforas tranquilizadoras, essa velha tristeza satisfeita de voltar a ser o de sempre, de continuar, de se manter flutuando contra o vento e a maré, contra o chamado e a queda"

Julio Cortázar

"Como era possível iniciar essa vida, assim tranquilamente, sem estranhar muito? Sem experiência, sem verdadeiro interesse, sem nada: o homem era realmente o animal que se habitua mesmo a não estar habituado"

"Naquela época, o mundo continuava sendo algo petrificado e estabelecido, um jogo de elementos girando nos seus gonzos, uma madeixa de ruas e árvores e nomes e meses. Não havia uma desordem que abrisse portas ao resgate; havia apenas sujeira e miséria, copos com restos de cerveja, meias num canto do quarto, uma cama que cheirava a sexo e a cabelo, uma mulher que me passava a sua fina e transparente mão pelas pernas, retardando a carícia que me arrancaria, por um momento, a essa vigilância em pleno vazio. Sempre demasiado tarde, já que, ainda que fizéssemos amor muitas vezes, a felicidade tinha de ser outra coisa, algo talvez mais triste do que essa paz e esse prazer, um ar como de unicórnio ou ilha, uma queda interminável na imobilidade. A Maga não sabia que meus beijos eram como olhos que começavam a se abrir mais para além dela e que eu andava como alheado, derramado sobre outra figura no mundo, piloto vertiginoso numa proa negra que cortava a água do tempo e a negava"

"Era como se a Maga esperasse a morte dele, algo nela que não era o seu eu desperto, uma forma obscura reclamando uma destruição, a lenta facada de baixo para cima que rasga as estrelas da noite e devolve o espaço às perguntas e aos terrores"

Trechos extraídos do livro O jogo da amarelinha, de Julio Cortázar.

Comentários

Meio que como uma porta para o dia 23 acordar e ler esta postagem.

Este é um dos livros que figura na minha lista dos cinco favoritos e já li algumas vezes, de diferentes formas. Adoro.

Quando me perguntam "como sou", costumo responder: "leia O Jogo da Amarelinha".


Um abraço
Mirdad disse…
Vem mais pílulas do jogo por aqui.

Abraço!

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