Pular para o conteúdo principal

Hélio Pólvora assumiu a realidade

Emmanuel Mirdad e Hélio Pólvora em 2013.
Foto: Edmilia Barros

Hélio Pólvora assumiu a realidade
Emmanuel Mirdad

O filho pergunta: “O que é ser homem, pai?” Ele responde: “Ser homem é assumir a realidade” Assim tão bem definiu o artesão do conto, o bastião do estilo refinado, da precisão sem excesso ou vaidade, o esteta do texto, Hélio Pólvora, o mestre, que faleceu aos 86 anos no último dia 26. Em seu conto Mar de Azov, do premiado livro homônimo lançado em 1986, pai e filho caminham à beira do mar, no sul da Bahia, e quando o jovem faz a pergunta primordial, a sapiência do mais velho acontece na síntese do sublime: assuma o que acontece, o que está ao seu redor, qual de você deve ser o único a afirmar-se vivo, com a coragem, dignidade e honradez de ser responsável por seus atos.

Hélio Pólvora é a minha esfinge. A sua obra, robusta, tem a sacralidade de um tomo ancestral, que exige de mim o respeito ao texto, ao papel que custou uma vida. Quando reviso o que escrevo, é o busto do mestre que aparece ao meu ouvido e diz: “Melhora isso aí, Mirdad, menos, seja mais preciso, encante, baile com as palavras, mas conduza o rumo pela técnica, ironize, cause reflexão, surpresa. Não seja óbvio”. Não é o homem que me diz isso, e sim a obra, tudo que pude aprender em leituras e releituras que fiz e sempre farei de Hélio Pólvora.

O homem, que além de gênio da nossa literatura, discípulo de Machado de Assis, era um intelectual primoroso, tradutor de Faulkner, crítico e jornalista que morreu trabalhando, assinando o editorial do jornal A Tarde no dia em que partiu. Um gentleman, raro, cordial, compreensivo e generoso, principalmente por quem tinha mérito, ironia e talento. Mayrant Gallo, por exemplo, estreou em livro referendado por uma orelha do mestre, em que diz: “(...) a mão do escritor, que sabe o que dizer e como dizer, que põe nos textos o seu ponto de vista, está autenticada e atestada”. Além de fazer indiretamente pela obra, o homem Hélio, pai de três filhos, casado amorosamente com a doce Maria, também soube referendar os novos. E nos indicou: leiam este, leiam aquele. A sua última recomendação para mim foi O museu da inocência, de Orhan Pamuk, turco ganhador do Nobel em 2006. Lerei, meu amigo!

Apaixonado por cinema, Hélio Pólvora se foi sem ver algum de seus inúmeros contos cinematográficos adaptado para as telas. O que nos aproximou em 2012 foi esse desejo em comum que algum dia irei cumprir, caso assuma a realidade com mais eficácia. E, de todos os trechos que li em sua rigorosa obra, este é o mais imagético, sensorial, encantador, presente em Mar de Azov: “O mar é um animal gigantesco que arqueia o dorso, rouqueja e bufa, rosna e geme ao seu lado, a seus pés. As ondas erguem-se a poucos metros em forma de vagas, cavalgadas por manchas de espuma que não tardam a quebrar — e ele tem a impressão de correr à beira de um túmulo líquido que poderá levantar-se de repente em forma de muralha e sepultá-lo.”
Bravo, mestre!

Emmanuel Mirdad, 27 de março de 2015.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Seleta: Gipsy Kings

A “ Seleta: Gipsy Kings ” destaca as 90 músicas que mais gosto do grupo cigano, presentes em 14 álbuns (os prediletos são “ Gipsy Kings ”, “ Este Mundo ”, “ Somos Gitanos ” e “ Love & Liberté ”). Ouça no Spotify aqui Ouça no YouTube aqui Os 14 álbuns participantes desta Seleta 01) Un Amor [Gipsy Kings, 1987] 02) Tu Quieres Volver [Gipsy Kings, 1987] 03) Habla Me [Este Mundo, 1991] 04) Como un Silencio [Somos Gitanos, 2001] 05) A Mi Manera (Comme D'Habitude) [Gipsy Kings, 1987] 06) Amor d'Un Dia [Luna de Fuego, 1983] 07) Bem, Bem, Maria [Gipsy Kings, 1987] 08) Baila Me [Este Mundo, 1991] 09) La Dona [Live, 1992] 10) La Quiero [Love & Liberté, 1993] 11) Sin Ella [Este Mundo, 1991] 12) Ciento [Luna de Fuego, 1983] 13) Faena [Gipsy Kings, 1987] 14) Soledad [Roots, 2004] 15) Mi Corazon [Estrellas, 1995] 16) Inspiration [Gipsy Kings, 1987] 17) A Tu Vera [Estrellas, 1995] 18) Djobi Djoba [Gipsy Kings, 1987] 19) Bamboleo [Gipsy Kings, 1987] 20) Volare (Nel

Seleta: Ramones

A “ Seleta: Ramones ” destaca as 154 músicas (algumas dobradas em versões ao vivo) que mais gosto da banda nova-iorquina, presentes em 19 álbuns da sua discografia (os prediletos são “ Ramones ”, “ Loco Live ”, “ Mondo Bizarro ”, “ Road to Ruin ” e “ Rocket to Russia ”). Ouça no Spotify aqui [não tem todas as músicas] Ouça no YouTube aqui Os 19 álbuns participantes desta Seleta 01) The KKK Took My Baby Away [Pleasant Dreams, 1981] 02) Needles and Pins [Road to Ruin, 1978] 03) Poison Heart [Mondo Bizarro, 1992] 04) Pet Sematary [Brain Drain, 1989] 05) Strength to Endure [Mondo Bizarro, 1992] 06) I Wanna be Sedated [Road to Ruin, 1978] 07) It's Gonna Be Alright [Mondo Bizarro, 1992] 08) I Believe in Miracles [Brain Drain, 1989] 09) Out of Time [Acid Eaters, 1993] 10) Questioningly [Road to Ruin, 1978] 11) Blitzkrieg Bop [Ramones, 1976] 12) Rockaway Beach [Rocket to Russia, 1977] 13) Judy is a Punk [Ramones, 1976] 14) Let's Dance [Ramones, 1976] 15) Surfin' Bi

Oito passagens de Conceição Evaristo no livro de contos Olhos d'água

Conceição Evaristo (Foto: Mariana Evaristo) "Tentando se equilibrar sobre a dor e o susto, Salinda contemplou-se no espelho. Sabia que ali encontraria a sua igual, bastava o gesto contemplativo de si mesma. E no lugar da sua face, viu a da outra. Do outro lado, como se verdade fosse, o nítido rosto da amiga surgiu para afirmar a força de um amor entre duas iguais. Mulheres, ambas se pareciam. Altas, negras e com dezenas de dreads a lhes enfeitar a cabeça. Ambas aves fêmeas, ousadas mergulhadoras na própria profundeza. E a cada vez que uma mergulhava na outra, o suave encontro de suas fendas-mulheres engravidava as duas de prazer. E o que parecia pouco, muito se tornava. O que finito era, se eternizava. E um leve e fugaz beijo na face, sombra rasurada de uma asa amarela de borboleta, se tornava uma certeza, uma presença incrustada nos poros da pele e da memória." "Tantos foram os amores na vida de Luamanda, que sempre um chamava mais um. Aconteceu também a paixão