Pular para o conteúdo principal

Cinco poemas e três passagens de Edra Moraes no livro Para ler enquanto escolhe feijão

Edra Moraes - Foto: Anderson Coelho

Não sou musa, sou poeta
Edra Moraes

Musas são diáfanas, acariciam como a seda,
Leves como uma pena ao vento

Eu carrego em mim o peso de um bloco de mármore,
e rasgo a carne como o ferro

Musas caminham nas pontas dos dedos,
Admiram Sade, Foucault e Loyola

Eu caminho coxa arrastando este fantasma,
Todos eles me estudaram e nunca me entenderam

Musas têm bundas, seios e sorrisos fáceis
Eu não tenho corpo, sou bela como um vulcão

Musas caminham de mãos dadas ao teu lado
E despertam a inveja dos teus amigos

Eu caminho sozinha, mesmo na multidão
Eu uso minhas mãos para tirar as pedras do caminho

Musas estudam arte, cinema, música e poema
Eu vomito palavras, erro os acentos e troco pronomes

Musas nasceram para serem amadas
e eu, poeta que sou, nasci para amar
Amar a ti, aos pássaros e o cão morto na esquina

--------

12
Edra Moraes

não falem do meu amor
à boca pequena
ele é um grito, de tão alto

nunca foi ouvido

--------

Que idade eu tenho?
Edra Moraes

Que número é este que não me define?
Eu tenho a idade do meu pensamento

Criança, brilho de espanto e encantamento

Sou moça bonita, em labareda sem fim

Madura, cuido de um jardim que nunca vi

Velha, maga e bruxa, conto os fios brancos
Espero o descanso que deveria ser meu fim
Mas é só o começo do que está por vir

--------

Incomparável
Edra Moraes

compare-me a com a flor
serei forte e rude
compare-me com a pedra
serei leve e frágil
compare-me com a lua
serei quente e próxima
compare-me com a rua
serei aconchego e regaço
para chegar até mim
compare-me com o nada

--------

Desiderium ultimum
Edra Moraes

quero cremação e cinzas espalhadas
se os familiares não tiverem para tanto
que me fechem em um caixão, sem vidro
não quero o algodão das narinas
exposta assim para visitação
não gastem flores,
me forrem com poemas
que terei tempo na eternidade
para revisões críticas
ascendam uma vela para mim
e uma para os meus feitores
evitem cortejos longos
e desnecessários adeuses
pois é agora que permaneço

--------

"Deus me livre das pessoas leves
Que nada levam a sério
Que nada são além de guarnição
Para a cerveja e o churrasco
(...)
Deus me livre das pessoas frágeis
Que a culpa de suas dores são sempre do outro
(...)
Deus me livre das pessoas inocentes
Que servirão de escudo para os meus inimigos"


"Algumas pessoas perdem as chaves e se desesperam.
Eu perdi a mim e, por anos, me procurei em silêncio."


"tenho dó da palavra amar e seus derivados
usadas aqui e acolá por adolescentes a procura de sexo
ou velhos maduros em tédio.
tenho dó das palavras que como eu
estão fora do contexto"



Presentes no livro de poemas Para ler enquanto escolhe feijão (Atrito Arte, 2016), páginas 13, 70, 26, 17 e 48, respectivamente, além dos trechos dos poemas Poema oração (p. 27), Achados e perdidos (p. 60) e (p. 46), presentes na mesma obra.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Seleta: R.E.M.

Foto: Chris Bilheimer A “ Seleta: R.E.M. ” destaca as 110 músicas que mais gosto da banda norte-americana presentes em 15 álbuns da sua discografia (os prediletos são “ Out of Time ”, “ Reveal ”, “ Automatic for the People ”, “ Up ” e “ Monster ”). Ouça no Spotify aqui Ouça no YouTube aqui Os 15 álbuns participantes desta Seleta 01) Losing My Religion [Out of Time, 1991] 02) I'll Take the Rain [Reveal, 2001] 03) Daysleeper [Up, 1998] 04) Imitation of Life [Reveal, 2001] 05) Half a World Away [Out of Time, 1991] 06) Everybody Hurts [Automatic for the People, 1992] 07) Country Feedback [Out of Time, 1991] 08) Strange Currencies [Monster, 1994] 09) All the Way to Reno (You're Gonna Be a Star) [Reveal, 2001] 10) Bittersweet Me [New Adventures in Hi-Fi, 1996] 11) Texarkana [Out of Time, 1991] 12) The One I Love [Document, 1987] 13) So. Central Rain (I'm Sorry) [Reckoning, 1984] 14) Swan Swan H [Lifes Rich Pageant, 1986] 15) Drive [Automatic for the People, 1992]...

Dez passagens de Clarice Lispector no livro Laços de família

Clarice Lispector (foto daqui ) “A mãe dele estava nesse instante enrolando os cabelos em frente ao espelho do banheiro, e lembrou-se do que uma cozinheira lhe contara do tempo do orfanato. Não tendo boneca com que brincar, e a maternidade já pulsando terrível no coração das órfãs, as meninas sabidas haviam escondido da freira a morte de uma das garotas. Guardaram o cadáver no armário até a freira sair, e brincaram com a menina morta, deram-lhe banhos e comidinhas, puseram-na de castigo somente para depois poder beijá-la, consolando-a. Disso a mãe se lembrou no banheiro, e abaixou mãos pensas, cheias de grampos. E considerou a cruel necessidade de amar. Considerou a malignidade de nosso desejo de ser feliz. Considerou a ferocidade com que queremos brincar. E o número de vezes em que mataremos por amor. Então olhou para o filho esperto como se olhasse para um perigoso estranho. E teve horror da própria alma que, mais que seu corpo, havia engendrado aquele ser apto à vida e à felici...

Dez passagens de Jorge Amado no romance Capitães da Areia

Jorge Amado “[Sem-Pernas] queria alegria, uma mão que o acarinhasse, alguém que com muito amor o fizesse esquecer o defeito físico e os muitos anos (talvez tivessem sido apenas meses ou semanas, mas para ele seriam sempre longos anos) que vivera sozinho nas ruas da cidade, hostilizado pelos homens que passavam, empurrado pelos guardas, surrado pelos moleques maiores. Nunca tivera família. Vivera na casa de um padeiro a quem chamava ‘meu padrinho’ e que o surrava. Fugiu logo que pôde compreender que a fuga o libertaria. Sofreu fome, um dia levaram-no preso. Ele quer um carinho, u’a mão que passe sobre os seus olhos e faça com que ele possa se esquecer daquela noite na cadeia, quando os soldados bêbados o fizeram correr com sua perna coxa em volta de uma saleta. Em cada canto estava um com uma borracha comprida. As marcas que ficaram nas suas costas desapareceram. Mas de dentro dele nunca desapareceu a dor daquela hora. Corria na saleta como um animal perseguido por outros mais fortes. A...