Pular para o conteúdo principal

Sete poemas e sete textos de Mônica Menezes no blog Estranhamentos


Poema para os olhos de minha mãe
Mônica Menezes

minha avó materna não deixou fotografia
morreu de parto
numa manhã de inverno
aos trinta e dois anos de idade
em sua própria cama
deixando seis órfãos, um marido devastado
e uma casa para sempre vazia

dizem que era bela
com seus cabelos negros
e o olhar azul profundo
a espiar o tempo

minha avó materna era judia
como a sua mãe, a mãe de sua mãe
a mãe da mãe de sua mãe
e a sua filha
como a filha de sua filha
e a filha da filha de sua filha

dizem que era forte
com seu corpo esguio
atravessando os vales
a desafiar a sina

minha avó materna não nos legou seu sobrenome hebreu
pois o perdera antes mesmo de nascer
também jamais lhe escutaram pronunciar a língua

nenhuma carta, nenhuma joia, nenhum caderno de receitas
nenhuma velha Torá no fundo falso de um baú
nenhuma fotografia
somente sua ausência
seu sangue antigo em nossas veias
e uma dor quieta
e infinita
nos olhos ternos de minha mãe

--------

Mônica Menezes

Virgínia Woolf estava certa:
a mulher precisa de um teto todo seu para escrever.
Não apenas ficção, como ela anotou,
mas também poesia
e até os relatórios de pesquisa.

E não precisa ser grande
ou elegante
nem mesmo precisa ser separado
ou distante
da casa onde porventura viva com o amado.

Precisa apenas ser seu.

Um lugar onde lapidar seu silêncio
sua fúria
seu caos de todo dia
seu cansaço
e aquela ânsia delicada de morrer.

--------

Dentro
Mônica Menezes

dentro de mim mora uma dor
fina, persistente e calada
eu caminho os caminhos
vivo as histórias
invento todos os dias grandes motivos para cantar
mas dentro
bem dentro de mim habita uma dor
fina
ancestral
e calada

--------

Mônica Menezes

o que importa o cimento fresco no piso da varanda
ou o nome na lista de aprovados?
o que importa o gol,
a festa?

as pessoas morrem.

--------

Salvação
Mônica Menezes

a poesia não me salva da bala do revólver
nem do açodar do tempo
que arruína o corpo
no entanto
a poesia
e somente ela
me salva

--------

Os dias
Mônica Menezes

não sei por onde anda a minha poesia
tenho arrumado gavetas
organizado estantes
e preparado a casa

nenhuma necessidade de dizer
nenhum grito preso na garganta
somente a beleza dos dias
que, silenciosamente, passam

--------

Recado
Mônica Menezes

desfiz distraída
a efígie
que você riscou de mim
em seu caderno

refaço em silêncio
o segredo
pra você de mim guardar
no seu caminho

amo você intensamente
— assim humana —
e vou seguindo

--------


“Embora tenha passado mais de um mês na UTI após um AVC, meu pai retornou pra casa e começou a se recuperar: voltou a andar e a falar quase que normalmente. Morreu num domingo, no meio de uma frase, enquanto contava uma de suas histórias pros amigos. Dizem que deu um suspiro mais longo e apagou. Simplesmente. (...) Eu não estava lá. Naquele final de semana não pude viajar e nem deu tempo dele ler a minha última carta (...) Ontem, após cinco anos, minha filha me contou que, no nosso último encontro, enquanto eu me dirigia ao carro às lágrimas, ele a abraçou e disse-lhe que aquela seria a última vez que nos veria, pra ela cuidar de mim.”


“Uma das coisas que me deixa mais feliz nesta vida é ir à livraria e encontrar um belo livro de poemas. Gosto de contos, de romances, de biografias, de livros de ensaios e de filosofia... No entanto, a poesia é a minha casa sobre a mangueira perdida, o silencio que me abriga nos vales da minha terra distante, a lâmina fria lacerando a pele. (...) Desde ontem, saboreio lentamente o presente do amado [Poemas, de Adonis], para melhor aproveitar a força dos versos deste autor que adotou para si o nome do deus grego de origem fenícia, símbolo do mistério da natureza. (...) E sigo assim, na leitura deste livro e na vida: torta, encarnada, perplexa.”


“Tive um aluno cujo sonho era dirigir carretas. E ele conseguiu. Há alguns anos, Bruno percorria feliz as estradas do Brasil, levando mercadorias de norte a sul. (...) Ontem, na Curva do Cavaco, na BR 116, entre as cidades de Feira de Santana e Antônio Cardoso, a carroceria de uma carreta que vinha na pista contrária descontrolou-se e bateu de frente com a carreta de Bruno. (...) Hoje, a avó, a esposa, a filhinha de três meses (Bruna), os tios, os primos e a maior parte dos habitantes da Colônia Treze, povoado da cidade de Lagarto, em Sergipe, estão esperando o corpo do jovem trabalhador de 28 anos de idade — que era querido por todos por sua generosidade, alegria e compromisso — para dizer adeus. (...) Chove muito por lá e, apesar de já ser junho, faz silêncio.”


“No dia 15 de novembro de 1972 nasceu meu irmão mais velho. 15 anos depois, no mesmo dia 15, do mesmo mês, praticamente no mesmo horário em que o primeiro, nasceu minha irmã mais nova. (...) ‘Não houve nenhum planejamento. É somente a vida e os seus mistérios’. Foi o que minha mãe me disse um dia, com sua natural simplicidade, enquanto varríamos o pátio da nossa casa que se perdeu.”


“Minha mãe penteou os cabelos, trocou de blusa e enfeitou com flores a mesa, pra chegar formosa em minha casa. [pelo Skype] (...) Minha mãe é pura delicadeza. Foi dela que herdei esse olhar de vales chovidos.”


“O que seria de mim sem as suas mãos? O que seria de mim sem os seus pés? O que seria de mim sem o seu riso doido que viola, obscenamente, o meu calar? O que seria de mim sem os seus vesgos olhos que acham belo o meu desespero? O que seria de mim sem as canções de Blunt que ontem você me trouxe da sua outra morada? O que seria de mim sem você, amor, nesses dias de claustro, lavor intenso e tantos, tantos, tantos abismos?”


“Não sei se foi entre os livros espalhados no tapete, sob as louças largadas na pia ou em meio às milhares de palavras inscritas na tela azul que eu me perdi. Sei que, mais uma vez, procuro versos para me inventar.”


Mônica Menezes - foto daqui

Presentes no blog Estranhamentos, de Mônica Menezes, postagens Poema para os olhos de minha mãe (17/08/2012), sem título (11/01/2015), Dentro (03/11/2012), sem título (26/11/2012), Salvação (30/10/2012), Os dias (16/07/2013), Recado (07/10/2012), Sobre a vida (01/11/2013), Adonis [poemas] (25/07/2012), Adeus (17/06/2013), Simples (18/11/2012), Pelo Skype (25/03/2012), Merci, bien-aimé (17/02/2011) e Depois do fim (25/07/2011), respectivamente.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Oito passagens de Conceição Evaristo no livro de contos Olhos d'água

Conceição Evaristo (Foto: Mariana Evaristo) "Tentando se equilibrar sobre a dor e o susto, Salinda contemplou-se no espelho. Sabia que ali encontraria a sua igual, bastava o gesto contemplativo de si mesma. E no lugar da sua face, viu a da outra. Do outro lado, como se verdade fosse, o nítido rosto da amiga surgiu para afirmar a força de um amor entre duas iguais. Mulheres, ambas se pareciam. Altas, negras e com dezenas de dreads a lhes enfeitar a cabeça. Ambas aves fêmeas, ousadas mergulhadoras na própria profundeza. E a cada vez que uma mergulhava na outra, o suave encontro de suas fendas-mulheres engravidava as duas de prazer. E o que parecia pouco, muito se tornava. O que finito era, se eternizava. E um leve e fugaz beijo na face, sombra rasurada de uma asa amarela de borboleta, se tornava uma certeza, uma presença incrustada nos poros da pele e da memória." "Tantos foram os amores na vida de Luamanda, que sempre um chamava mais um. Aconteceu também a paixão

Dez passagens de Clarice Lispector nas cartas dos anos 1950 (parte 1)

Clarice Lispector (foto daqui ) “O outono aqui está muito bonito e o frio já está chegando. Parei uns tempos de trabalhar no livro [‘A maçã no escuro’] mas um dia desses recomeçarei. Tenho a impressão penosa de que me repito em cada livro com a obstinação de quem bate na mesma porta que não quer se abrir. Aliás minha impressão é mais geral ainda: tenho a impressão de que falo muito e que digo sempre as mesmas coisas, com o que eu devo chatear muito os ouvintes que por gentileza e carinho aguentam...” “Alô Fernando [Sabino], estou escrevendo pra você mas também não tenho nada o que dizer. Acho que é assim que pouco a pouco os velhos honestos terminam por não dizer nada. Mas o engraçado é que não tendo absolutamente nada o que dizer, dá uma vontade enorme de dizer. O quê? (...) E assim é que, por não ter absolutamente nada o que dizer, até livro já escrevi, e você também. Até que a dignidade do silêncio venha, o que é frase muito bonitinha e me emociona civicamente.”  “(...) O dinheiro s

Dez passagens de Jorge Amado no romance Mar morto

Jorge Amado “(...) Os homens da beira do cais só têm uma estrada na sua vida: a estrada do mar. Por ela entram, que seu destino é esse. O mar é dono de todos eles. Do mar vem toda a alegria e toda a tristeza porque o mar é mistério que nem os marinheiros mais velhos entendem, que nem entendem aqueles antigos mestres de saveiro que não viajam mais, e, apenas, remendam velas e contam histórias. Quem já decifrou o mistério do mar? Do mar vem a música, vem o amor e vem a morte. E não é sobre o mar que a lua é mais bela? O mar é instável. Como ele é a vida dos homens dos saveiros. Qual deles já teve um fim de vida igual ao dos homens da terra que acarinham netos e reúnem as famílias nos almoços e jantares? Nenhum deles anda com esse passo firme dos homens da terra. Cada qual tem alguma coisa no fundo do mar: um filho, um irmão, um braço, um saveiro que virou, uma vela que o vento da tempestade despedaçou. Mas também qual deles não sabe cantar essas canções de amor nas noites do cais? Qual d