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Trinta e cinco passagens de Ângela Vilma no blog Aeronauta em 2010



“(...) você não sabe nada sobre seu próprio nascimento assim como também nada saberá sobre sua morte, já a caminho. Tudo o que você é, a ficção que você escolheu criar, pertence aos outros, à memória alheia. Sobre o momento que você nasceu, apenas sua mãe e os que estavam presentes ‘disseram’; de sua morte que vem aí, já já, apenas os possíveis espectadores farão o posterior relato. O que resta pensar? Se você não tem a memória dos dois grandes marcos de sua própria existência, a pergunta é insistente: não é uma imensa solidão essa, existir? (...) Ora, ora, você sequer existe, e a solidão é tudo que há. Sinta-a agora, antes de ir atravessar o imenso corredor que lhe espera. Não se agarre ao braço de seu namorado, afinal ele não poderá atravessar o corredor com você. Ele também, na sua hora, atravessará o corredor. Sozinho. É assim que a lei maior, a burocracia, manda: sozinho, marchando sempre, sem se deter. (...) É engraçada essa tragédia (...) porque pensando bem será meu corpo, sinal de minha indiscutível realidade, quem sofrerá tudo isso. Ele foi quase esmagado ao nascer, e será completamente esmagado ao morrer. E, ironicamente, jamais saberá contar tais experiências. Deve ser essa a frustração máxima do homem, e mais ainda do escritor: não ter nunca a totalidade, a unidade de si mesmo. Em decorrência dessa frustração ele inventa vidas, principalmente a sua, que traz como palimpsesto na raiz de suas mãos tortas, a fim de tentar driblar a solidão.”


“Tenho verdadeira comoção pelo ser humano. Sua arrogância, seu apelo, sua solidão. Todos são doces, até aqueles que te ignoram ou te odeiam. Todos, em algum momento do dia, se curvam, flexíveis, diante da dor. E todos, inexplicavelmente todos, estão definitivamente perdidos. É isso que causa essa minha enorme comoção, a ponto de eu chorar forte por alguém que vi uma única vez na vida. Ou de vibrar, feliz, ao conhecer olhos adolescentes sem qualquer mácula, completamente abertos ao que virá. Sentir pele macia de bebê derreter-se em minhas mãos também é comoção, ternura se espalhando, vontade de reter o curso do mundo, guardando o bebê no fundo das mãos. (...) Para que essa povoação sem fim, se tudo um dia envelhece e sofre e desaparece? Oh, como não amar quem me odeia se seremos, juntos, passageiros de Caronte; e possivelmente contaremos uma anedota enquanto atravessarmos o rio, para assim quebrarmos o tédio de uma existência fleumática e solene, distante e perdida...”


“(...) Tudo seria mais fácil se não houvesse reuniões, salas administrativas, cadernetas, notas, e um arsenal de guerra que faz da educação um combate condicionado a quem perde e a quem ganha. Tudo seria mais verdadeiro e prazeroso se não houvesse burocracia no ensino. (...) Oh, por que não podemos dar aula embaixo de uma árvore, numa esquina da rua, na praça do bosque? Oh, e para que a miserável da prova, quando tudo seria mais espontâneo e fácil com uma conversa sem algemas, uma interlocução de ideias, uma troca? E para que a miserável da nota, que faz do aluno um soldado de guerra, pronto para tentar sobreviver? Como, pergunto a vocês, como mudar tudo isso, descondicionar o que está condicionado, permitir o relaxamento dos alunos sem que eles debandem e lhe deixem sozinho? (...) Como, meu Deus, poder amar sem registros burocráticos, e abraçar meus alunos como pessoas humanas, lindas e tristes? E bailar com eles, destruindo os corredores frios das instituições e, ainda, essa terrível humilhação de ter que obedecer o que nos é imposto?”


“Lembro-me bem quando conheci a palavra ‘inexorável’. O Aurélio diz ser a pronúncia do x na verdade z; mas o mundo todo pronuncia o x como cs: inecsorável. Parece que assim a palavra fica mais poética, mais inexorável. Assim é a vida: inexorável. Parece inoxidável, porém inalcançável, tudo que tem que subir uma montanha com uma pedra na mão (...) Talvez a maior destreza do mundo está em carregar essa pedra, em saber pronunciar, com a alma serena, a poeticidade dramática dessa palavra. O mais sábio convive com ela, afagando-a, como se afaga uma ferida quente. Pra que berrar, arrancar as roupas, se revoltar em praça pública? Pra quê? Que tudo se aquiete, e a palavra entre num verso, e leve, leve, carregue meu corpo pela montanha, flutuando, pedra se transformando, inerte, no mais doce algodão.”


“Nos consultórios médicos as atendentes trazem o cabelo sempre amarrado e um ar de quem sabe ver gente morrer (...) Andam de lá pra cá, chamando as pessoas, condenadas na sala de espera. Chamam tanto nome, menos o seu. E impressionante, seu médico nunca chega, seu médico sempre demora pra chegar, seu médico nunca é pontual. A sala é geladíssima, o ar condicionado no máximo. (...) Depois de horas e horas seu nome ecoa, límpido, gostoso de ouvir. Chegou sua vez! (...) Você entra na sala. O médico lhe estende a mão. Manda você pra salinha do lado. Você tem que ficar nua. E lhe vestem uma roupa que precisa ser usada ‘com a abertura para a frente’. Você deita e aguarda (...) O médico finalmente chega e se senta ao seu lado (...) Pergunta onde você nasceu, diz que (...) Salvador está violenta demais; aí você se preocupa, pois a noite já chegou e você tem que voltar pra casa, e se um ladrão Deus livre e guarde lhe esperar na esquina? Enquanto isso o médico vai lhe perscrutando, seu corpo agora é apenas anatomia naquela maca que dá nojo. E olhe que desde sua chegada você já sofreu o diabo, amassaram seus peitos naquela barra como se fossem cortá-los, e você deu um grito desesperado. Enfim, acabou, hora de se levantar e limpar a sujeirada do gel. Do lado da maca há rolos e rolos de um papel grosso, e você limpa com pressa, achando que está atrasando a próxima paciente. Você tem mania de pensar nos outros, e nem se limpa direito. (...) Aí você veste a roupa com pressa, aquela nudez clínica lhe deprime. Então vai com gel mesmo, a roupa encharca, você continua com nojo de tudo. O ar condicionado é forte, e o médico já lhe espera com a mão no ar, lhe dá um sorriso profissional e diz de novo que não há motivos pra preocupação, e que aguarde, agora mesmo sairá o resultado. Você volta para a sala de espera, um monte de mulher sentada, mulher de todas as formas e idades, todas esperando sua vez. (...) Depois de uma hora e meia lhe chamam no balcão, ai que alegria, lhe entregam seus exames, todos eles dentro de um saco plástico enorme, branco, com letras vermelhas, e você sai, feliz, rindo; e se questiona por que sempre sai feliz desses lugares, esquecendo-se imediatamente de todo o tempo e sofrimento que ali passou.”


conversa de professora (05/12/2010),
questões sobre o ofício de ensinar,
leia aqui

“Duas grandes solidões se encontram, sempre, à distância de um palmo, nada mais do que isso. Tocam-se as mãos e só. Duas grandes solidões se compreendem, mas não se abraçam. (...) Somos fortes, portanto: um homem e uma mulher demasiadamente fortes, pois que choram sozinhos. (...) Não é fácil aceitar esse destino e já perdi as contas de minhas conjurações. E que não dão em nada: volto sempre murcha para casa. E, nesse sentido, minha casa não é sua casa, pois que duas grandes solidões, repito, não se abraçam. Olham-se, apenas, estupefatas. Assim como olho pra você, e vejo-a em seu corpo. Você é o grande dono, maior latifundiário que já conheci da Solidão. Muita terra à vista, arenosa, palpitante, terra boa, de boa guarida, mas completamente inalcançável. Conheço-a, já senti nos pés a quentura dessa terra, já comi das iguarias que ela doa, mas só isso. Ela nunca será minha nem de ninguém, não há doação possível de tal propriedade. Nela apenas se repousa sobre a árvore, assim como faço com você, à distância de um palmo.”


“(...) se pudéssemos enxergar a realidade de maneira não pragmática, mas surreal, talvez atuássemos com maior nobreza nesse espetáculo desgraçadamente piegas que é a vida. Encaramos a realidade de maneira pragmática, querendo que ela seja a concretização de um sonho. Ora, sonho não se realiza, se vive da maneira que se nos apresenta. Sonho aleijado, eu diria, mas vivo, podendo ser tocado. E sonho aleijado é sonho surreal, felliniano. (...) Quero que as coisas me encontrem sem que as chame. Quero o inevitável, e, dentro disso tudo, talvez venha um riso completo. (...) Chega um tempo em que descobrimos que tudo é inútil, menos a arte. E com ela podemos sonhar aleijado de uma maneira sossegada. Com ela aprendemos a ficar sozinhos, sem gritaria e apelo público. Entramos no mais fundo de nós e lá nos encolhemos, aguardando, quem sabe, se for possível, um vizinho.”


“(...) Faltou à minha infância fazer maldades: brincar com o enigmático (...) roubar esmalte, roubar bala, roubar chicletes. Puxa vida, nunca roubei nada: criança anódina, sem graça, querendo ser certa, correta, diante de um tribunal perverso. Eu sempre quis ser absolvida, essa foi minha assídua covardia. Oh, para que ter medo de uma sentença? Afinal, de quem é a culpa? A culpa não tem dono, ela apenas se esgueira nas costas do primeiro besta, a fim de ser aceita. Marquinhos talvez soubesse disso: entrou no colégio pilotando uma motocicleta. Gritou alto e exigiu que ninguém fizesse prova de matemática. Ele era o rei dos que não tinham culpa. Bravo, rápido, com uma espingarda na mão. Marquinhos pra mim era o símbolo da bandidagem, de uma transgressão que doía e me fazia encolher no canto da parede, para que todos soubessem que eu não era componente de seu time. Com seus dentes tortos, Marquinhos ria um sorriso de diabo, botando pimenta em doces e dando de presente aos professores. Pegava casas e casas de formiga e jogava nas camisas dos colegas. Seu olho brilhava de escárnio, seus demônios não se escondiam, clamavam por atenção, queriam ser odiados. Ele me chamava tamborete de brega, toco de amarrar jegue, e eu corria com medo de sua presença grandiosa e torta. A verdade é que sempre tive medo da transgressão, e fazer parte do time de Marquinhos era tarefa para minha irmã, que aprendeu cedo a colocar chicletes nas carteiras dos colegas.”


“Acho que a minha maior frustração, caso fosse filha única, seria essa: não ter uma irmã. Mas tenho, graças a Deus. Uma irmã forte, com dentes pretos. Uma irmã forte, com cabelos curtos. Uma irmã forte, cujos dedos dos pés são fotocópias dos dedos de pai. Os dedos das mãos longos, as mãos grandes, os olhos expressivos. Toda ela irradia vida e segurança. Tem a timidez própria dos fortes: não se deixa levar na primeira conversa. (...) Acho que sempre quis ser ela, na minha inaptidão para enfrentar o mundo, para desbravá-lo, para sair de suas profundezas. O que ela faz com as profundezas? Desliza nelas, delas faz superfícies, escorregadeiras, brincadeiras de menina. Vai deslizando, deslizando, e rindo, rindo. Não sei se ela curou velhas feridas: como aquela, aos três anos, quando o bicho noturno comeu sua galinha. Ou se ficou marcas do primeiro mal concedido ao mundo: apertou um pintinho na mão e matou-o, sem a menor compaixão. Ela é o retrato mais inteiro que tenho do humano, nas suas fissuras comoventes de força, transgressão e afeto.”


“(...) Me interessam e muito histórias de amor que dão certo, eu que internalizei que o amor nessa vida só tem descaminhos e que não há esperança possível para o total e raro encontro. E imaginei o dia a dia daqueles dois, na sintonia perfeita que o amor exige: o diálogo além do beijo. A intensa compreensão do mundo no olhar e no abraço; a compensação da solidão de existir na confluência de outra solidão, vividas na perplexa e resignada comunhão de silêncios. A felicidade possível em algo que vive carregado de uma combustão infeliz: o amor entre duas pessoas.”


lugares brancos (21/07/2010),
experiência kafkiana num consultório,
leia aqui

“Nunca me esqueci do cheiro de seus cabelos; um cheiro de mato, de vento, de areia. Nem da maciez deles, no toque inteiro do meu nariz. Nem do abraço que encaixava meu corpo no seu, minha boca tão perto, sem precisar eu suspender os pés. (...) Nunca me esqueci de suas mãos repletas de veias, verdes, saltando; seus dedos rústicos e ternos, a pele vermelha de seu pescoço. Áspera barba, entregue ao tempo dos mais eternos, indelével árvore, raiz suspensa no rosto. Costas largas, amparadas por um tronco primevo, gênese das coisas. (...) Como esquecer os traços mínimos de sua face? Perto da boca um laivo melancólico, nos olhos rastros de antigo reflexo: mar nas encostas. Tudo ali era meu, tinha conexão com minha face, com meu rio morrendo sem pressa.”


“(...) Guardo o cheiro de muitas coisas, de pessoas, de momentos, de livros, de tardes mornas. Lembro bem do cheiro de seu rosto, quando o afaguei no escuro, naquela noite que nunca terminou. Do odor de sua roupa, pernoitando sabores escondidos, tão bem guardados que estalava em minha mão a vontade louca de comê-los; sua boca, natureza pura, com aroma de vento batendo nas folhas. Todo o seu ser exalava o cheiro de uma alma esmagada, como o perfume forte das flores mortas. Embriaguei-me, absoluta.”


“Como a menina do conto de Clarice, comecei a sofrer cedo. Minha colega de classe e amiga também tinha muitos livros e não me emprestava. Usava minha amizade nos momentos em que seus amigos preferidos não estavam presentes. Me rechaçava quando esses apareciam. Depois que iam embora ela me chamava de sua porta com um aceno, e eu ia. (...) como diria minha irmã, eu não tinha vergonha na cara. O que eu queria era ser amada. E quem quer ser amado nunca tem mesmo vergonha na cara. (...) Cresci, portanto, sem nenhuma vergonha na cara. Pedindo, mendigando amor. O outro, ao saber a profundidade disso, sempre me deu o sofrimento; porque dar o sofrimento em troca do amor pedido é uma forma de felicidade torta. A pessoa que lhe nega o amor se torna forte, glorioso, e por isso feliz: tem o amor do outro a tal ponto que o nega — eis a mais cruel força do poder. Negar amor e pisar em quem lhe ama é uma sabedoria às avessas: quem usa essa arma é sempre tranquilo, robusto, cevado, tem o rosto saudável. Ao contrário, do lado de cá o rosto se molha, linhas vão vincando a testa, a pele se rasga...”


“Não consigo entender uma arte que não nasce da carne, da profunda dilaceração da carne, da ferida, da dor da ferida exposta, das moscas sentando em cima. Se a arte não nascer disso, é decoração, é paisagem amorfa, é epifania barata, é bordado. (...) Não quero cantar roda não, menina, quero mostrar minha ferida exposta. E não é apologia ao sofrimento, é o próprio sofrimento, exposto. Quer ver? Esqueça então um pouco o seu bordado no bastidor e venha cá. Você já teve uma ferida dessa? Oh, não? Então terá, aguarde, é uma questão de tempo. (...) a vida talvez seja só um grande salão interno, profundamente interno, amplo, branco, vazio; e nós, aristocratas vivendo nela, acreditamos triunfar com móveis caros.”


“Sinto-me bastante comovida com o desaparecimento de alguns objetos. Remando contra, minha casa os acolhe. Acolhe meus bolachões, agora meus cds, que já estão virando algo do outro mundo. O que considero mesmo do outro mundo é o desparecimento das coisas. (...) Preciso, isso sim, é usar meus sentidos, tocar nas coisas: comprar o cd, abri-lo e colocá-lo pra funcionar, com minhas mãos, minhas mãos, e meu corpo em pé, em movimento. (...) nas minhas aulas deixem-me usar meu lindo e mágico retroprojetor. Enquanto lemos poemas sentam-se nele, na transparência vista através de sua luz difusa, algumas mariposas, besouros, seres completamente embriagados. Sem contar que a sala ganha um escurinho de cinema e todos nós adentramos numa intimidade de alma, feérica, mística. (...) a luz do retroprojetor alia-se à penumbra intimista dos poemas, e todos acabamos nos encontrando naquele lugar onde há acolhimento, descanso e algo muito próximo à felicidade. (...) Ah, o quanto tenho sofrido ultimamente com o desaparecimento dos orelhões. Já repararam que eles não existem mais? E quando existem estão mortos, quebrados, detonados? (...) apegando-me a Deus e pedindo-Lhe, numa oração infantil, que me livre dos celulares (...) desmanchando essa pressa cruel que o mundo tem de nos usar como máquinas e de nos perturbar. Além do mais, meu Deus (...) ajude o homem a desistir de, além de desaparecer, diminuir os objetos: daqui a pouco em que tocaremos? O nada terá a textura do ar?”


Mã, Parabéns! (04/11/2010),
uma linda homenagem à irmã,
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“(...) colecionar pedras dói bastante o corpo do vivente, ao carregá-la no lombo tal qual Sísifo extremamente cansado. Lembro de mim descendo as serras das Lavras Diamantinas, e extraindo de cada lugar uma pedra, a fim de depositá-la na velha mochila. Minhas costas sangravam, minha coluna se acabava, mas uma pedra dali eu tirava, levando-a para a minha coleção. O pior é que eu punha na pedra o nome, à caneta, do lugar de onde veio. Ou seja, eu profanava, com uma tinta azul, algo bastante natural, vindo do ar e da água daqueles lugares. (...) a pedra não trazia tudo, o habitat, o ar, o sol que caía nela, o vento. (...) A pedra vinha só, mesmo acompanhada de várias outras pedrinhas que porventura eu trazia do mesmo local. Entretanto, o cheiro de lá estava nela, e eu cheirava, e lembrava. A sinestesia sempre me salvou como consolo do que nunca pude reter, aquilo em que a solidão põe suas garras feridas. (...) Para que tentar reter, reter, reter numa ordem inabalável, coisas e seres, se tudo apenas sobrevive de sua inteira e larga solidão?”


“(...) certos mistérios são bem melhores que os deixemos em seu véu de ternura, de idiossincrasia, de algo particular. E mãe tem muitos desses. Todos bastante simplórios. Colecionar receitas, por exemplo, como se coleciona selos. Guarda-as, copia mais, e vai juntando sua babel de comidas invisíveis: todas elas no papel, ocultas em cadernos luxuosos, nas revistas compradas em bancas, ou tiradas na televisão, copiadas com sua mão cheia de veias verdes, saltando sobre a folha. É um escrevinhar e ler eternos de comidas, perpetuados no paladar inefável de quem já provou todas as iguarias. (...) quando criança meu maior desejo era que ela fizesse as sobrancelhas e passasse batom. Sem querer ela já me ensinava sobre tudo que é selvagem no mundo, principalmente as próprias roupas, costuradas por suas mãos de unhas pequenas. Sua nenhuma vaidade, distribuída pela casa em forma de cactos em latas de querosene. E aquela força violenta que vinha de seus olhos ao ser contrariada. A poesia oculta na bolsa que nunca usou, na calça comprida que jamais se ajustou aos quadris estreitos, nos cabelos para sempre curtos. (...) Abre a geladeira da mesma maneira que abriu na década de setenta. E ri com o mesmo trejeito que conheci quando balbuciei as primeiras sílabas. Com ela aprendi a amar o que se conhece”


“Que felicidade ou neutralidade deveria ter Priquitinha no seu vai e vem constante, andando apressado pelas ruas, repetindo maria veve, maria veve, maria veve. Havia algo de dramático e de nulidade ou de felicidade naquele homem. Ninguém dava ouvidos, ninguém mais olhava, era doido, diziam, doido apenas. Com uma camisa de volta o mundo azul, Priquitinha saía de casa e voltava, saía de casa e voltava, saía de casa e voltava, maria veve, maria veve, maria veve. Era belo: alto, negro, cabelos lisos, quarenta anos bem distribuídos num rosto encovado, fundo, num corpo magro. Priquitinha, meu vizinho: sua casa em frente à minha; todos os dias eu esperava sua ida e volta constantes, sua vida buliçosa e repetitiva; e eu não sei o que pensava daquilo os meus cinco anos amedrontados; o que ficou em mim, forte, apenas, foi a lembrança terrível de algo que não se fecha, que não se fecha, que se repete com uma inquieta resignação.”


“Na hora em que fui autografar o livro dela, uma moça que não conhecia, vinda de Maceió e que estava em Salvador por conta de um congresso na área de saúde, ela me perguntou quem era Antonio. Eu fiquei sem saber o que responder. Como fico nas vezes em que isso acontece. Só que ali, na fila de autógrafos, fiquei mais desconcertada ainda. Talvez eu devesse responder ‘Antonio é a ausência’, mas ficaria pedantemente lírico, coisa que não combina para uma noite de autógrafos na qual rimos, confraternizamos, sem necessidade de argumentos poéticos. Não respondi nada, e essa lacuna permanece, acordei com ela. É a lacuna que há entre o que é e o que não é e nunca será, entre a ficção que somos e a dor que guardamos, entre essa enigmática fronteira, bruma, neblina, geografia sem contornos, reino que só a Palavra acolhe.”


“(...) Você sabe que nunca consegui ter um momento completamente feliz? Em todo momento alegre meu, uma formiga me morde. Também aquela tal serenidade não acredito, pois que estou sempre, por puro hábito, em total desespero. (...) Mas, estúpida, continuo querendo a abestalhada felicidade. Durmo e acordo para isso, me alimento e tomo banho para isso, vivo para isso. Mesmo sabendo ser tudo falácia, engano, simulação, arremedo, fantasia vestida de meus antepassados que, mesmo mortos, continuam na ativa. Só pode ser, de verdade, essa vivência repetida, condicionamento de ideias no plano astral e no cotidiano. Ah, a felicidade é esse sonho apenas, essa vontade de dormir, dormir sem sustos. Talvez por isso é que morremos.”


o desaparecimento das coisas (15/09/2010),
“Sinto-me bastante comovida com o desaparecimento de alguns objetos”,
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“Com a idade chegando, se você prestar atenção, além de um insistente fio de cabelo branco que surge segundo a segundo, ao acordar verá que a madrugada fez um novo serviço no seu rosto, além das bolsas de carne embaixo de seus olhos. Tenha coragem, e olhe-se no espelho sempre ao acordar. Verá um Tempo bordador que faz coisas criativas na sua face, lhe transformando numa caricatura. Esse Tempo é bastante bem-humorado, e lhe estraga, com desvelo, a rosto e o corpo a cada dia. Prepare-se para o grande encontro de fim de ano com os amigos que não vê há vinte (...) seu sorriso talvez ainda se sustente, belo e maduro e triste e sábio. O cabelo, sempre longo, a despeito dos amigos dos vinte anos continuarem achando que cabelo grande não é para mulher de quarenta, pois a envelhece mais ainda. Se você quiser chocá-los, não o hidrate, deixe-o como o cabelo da medusa. Meu conselho: assombre esse povo besta. Você sabe, né, que eles irão para esse encontro com bastante capricho. E muitos exclamarão como fulana está bem, apesar dos três filhos; outros não dirão nada e cravarão os olhos nos seus pés de galinha com imensa dó, e dirão, no mais autêntico clichê, que o tempo passa.”


“Dizem que a tristeza tem lágrimas, a melancolia não. A melancolia talvez seja mesmo pesada, seca, sem lágrimas (...) Há os poetas da melancolia, os cineastas das películas nostálgicas, líricas, carregadas de neblina (...) águas do mar batendo de leve em pedras escuras, e um homem de sobretudo andando por perto, olhando para o chão. Há humanidades inteiramente perdidas, soturnas, sem necessidades de palavras. Pessoas que testemunham para si mesmas o mais terrível degredo: o vazio, o vazio onde nem o medo habita.”


“Sorrio na fotografia; o vento leva meus cabelos para uma outra direção; não sei o que penso, o que espero, tudo é névoa. Sei apenas o que me dá medo. Minha geração é regida pelo signo da infantilidade: sei que queria que mãe estivesse ali, com seus presentes todos embrulhados em papel reaproveitado, com fitinhas retorcidas, também reaproveitadas. Ela com seus múltiplos presentes: relógio de pulso, relógio despertador, calcinha, sutiã, camisola, brinco, tudo enrolado no mesmo papel. Ah, naquele dia azul, tão distante, eu era a mesma, a mesmíssima, menina chorando por dentro, à espera da mãe. (...) Hoje esse rosto não é mais o mesmo (...) Mãe na sala assiste televisão, depois de ter me dado um monte de presente embrulhado em papel reaproveitado de outros presentes. A infantilidade assombrosa que sempre houve em mim dá mostras de desaparecimento. Ela, mãe, sabe que a filha agora tem sua idade. Nossas rugas conversam, dialogam, e não sabemos mais quem nasceu de quem.”


“(...) Aprender o que é a vida já é um grande prêmio, para nós que sequer sabemos o óbvio. Nem me pergunte o que é o óbvio, que eu, imbecilmente, também não sei. Marchas de imbecis, andamos para cima e para baixo, vergando nosso corpo que envelhece a olhos vistos e não vistos. É, porque nem todo mundo sabe que está envelhecendo; algumas pessoas têm um espelho tão fiel, mas tão fiel que lhes esconde esse dado quase que definitivo. Um espelho hipócrita, que esconde ruga por ruga, e lhes ajuda a retocar a maquiagem: lápis ao redor dos olhos para que eles vejam, e bem, o envelhecimento alheio. E como essas lindas e jovens criaturas riem das rugas alheias!”


“Acostumei-me com o que é finito. Por isso é que não consegui ter uma boa vivência com um presente que ganhei de minha irmã, no meu aniversário: um MP4. Eu me habituei, a vida inteira, a ouvir a música acabar; a levantar e virar o disco; a levantar e mudar o cd; a levantar e desligar a vitrola. Aí, de repente, me deparo com o infinito: o infinito musical. Senti logo que eu iria endoidar se continuasse ouvindo aquilo a viagem inteira. (...) Como ter sono ouvindo músicas que nunca nunca acabam? E o tin tin tin tinindo os tímpanos. (...) Aprisionado dentro de meu ouvido, Roberto Carlos às dúzias, ou melhor, numa dízima. (...) Até que retirei o fone do ouvido, peguei tudo ligeiro e coloquei dentro da bolsa (...) Será que farei algo semelhante ao descobrir-me um dia diante da eternidade?”


aquela história (16/03/2010),
lembranças do avô galeanteador, bonitão e namorador,
leia aqui

“Eu era louca para publicar um livro. Tinha cadernos e mais cadernos cheios de poemas há mais de dez anos quando surgiu a oportunidade de publicar um. Beira-Vida caiu nas minhas mãos numa manhã de sábado, vindo pelos correios, e eu quando o toquei chorei ali mesmo, na frente de todo mundo. Tinha nesse dia vinte e dois anos de idade. Saí com meu amor e minha melhor amiga para comemorarmos. E fomos para a beira do rio, naquela manhã nublada, nós três rindo muito, numa felicidade cúmplice: minha amiga tinha feito a capa, meu amor tinha me dado a epígrafe, e eu estava com o livro publicado. Era demais para uma moçoila tímida que aos dezoito anos, indo ao cartório pra tirar o título de eleitor, foi recebida com perplexidade pela escrivã: ela não sabia que meu pai tinha uma outra filha. Onde andava você, menina?, me perguntou. Pois ali, naquela manhã, sentada nas pedras do rio, comemorava a estreia para minha primeira grande exposição pública. Lancei o livro em 21 de julho de 1990. Com um pimpão enorme no cabelo e usando uma calça jeans horrorosa, dei autógrafos. A família e os amigos presentes; pai trouxe seus parentes da roça e a cidade aplaudiu a moça que resolveu sair da toca. Daí em diante me transformei na poeta municipal.”


“Na minha cidade todas as famílias iam para o campo de futebol, aos domingos, assistir aos dois times rivais jogar: Bahia e Flor de Lis. Eu não conhecia estádio, mas achava aquele campo a coisa maior do mundo: um campo de chão revolto, minúsculo, com dois gols de madeira velha, sem rede, e aquele time correndo atrás de uma bola que muitas vezes desaparecia, no meio do jogo, para dentro do mato. Era um corre-corre dos diabos e um sem fim de tempo à espera de que alguém achasse a bola perdida. (...) Mas não há, hoje, estádio no mundo que se compare àquele campo (...) meninos vendendo geladinho, pais acocorados, filhos grudados na calça do pai, e pés, muitos pés sujos de poeira vermelha (...) Dona Celé, sempre sentada no banco da frente de seu fusca, alheia, pois que ia para o campo apenas distrair-se chupando gelo levado no seu próprio e particular isopor (...) o que não havia, de jeito nenhum mesmo, era lugar para a gente se sentar ou pelo menos se encostar, sequer um muro: o campo era de fato ao relento, com aquele poeirão subindo dos pés dos jogadores e o solzão batendo na cara do povo. (...) Nesse tempo, assim como Marques Rebelo, eu já sabia que futebol era, como todas as outras coisas do mundo, infelicidade. Pois que para o Bahia, meu time, ganhar foi um sofrimento do cão.”


“(...) Eu que sempre nutri nojo por banheiro andante, móvel e socializado, naquele dia me vi sentada na privada fedorenta sem nenhum pudor, somente querendo me livrar daquilo, que vinha dentro de mim sem nenhum lirismo, num sadismo de aplaudir. É, porque o que está dentro de mim não é meu, é dos outros. Essa dor não é minha, é alheia. Essa fogueira no meu estômago é presente de teu olhar, de tua dor, dessa solidão de sermos um e para sempre desconectados. Ah, para que tanta filosofia com uma dor de barriga, com um estômago triste e murcho, se os banheiros coletivos estão aí para nos acolher? (...) eu que sempre fui tão refinada, e que nutro uma prisão de ventre pelo simples fato de não gostar de minha parte podre; eu que não frequento banheiro de ônibus e viajo dez horas sem lá pisar os pés, me vi naquele dia sentada num vaso semovente, agradecendo a Deus tamanha criação.”


“(...) Mãe rezava para as almas sempre no quintal, dentro de casa não. Dizia que era a reza mais forte que existia, e que mais trazia resultado. Mas nunca se deve rezar dentro de casa, nunca. (...) As almas têm uma potência do além, já que se libertaram dessa matéria densa e fedorenta. Devem cheirar a jasmim, ou a perfume alfazema, esse que anunciava, em toda casa do interior, a chegada de mais um vivente ao mundo. Hoje os bebês, mesmo do interior, não cheiram mais a alfazema, disso eu me comovo. Que pena dos bebês de hoje, cheirando a perfume da natura ou do boticário. São bebês nascidos em shopping center. Lembro-me bem do enxoval que a mãe do interior fazia no quarto: um monte de vidrinhos forrados de crochê, tudo de uma cor só. O quarto era envolto num enorme segredo, um segredo com cheiro de alfazema e com cores de vidrinhos forrados com ponto de crochê: tão família, tão íntimo.”


“(...) O que mãe mais sabia fazer em mim era beliscar. Beliscar pra comer, principalmente. Trazia a primeira unha da mão direita bem crescida pra poder beliscar com gosto. O meu braço era o alvo melhor, talvez onde tinha mais carne. Era o lugar mais gordo do corpo. A unha entrava com arte, deixando roxo o local, com a marca. A marca da mãe. Filha marcada a ferro, como se marcam os bois. (...) mão beliscando e batendo é algo mecânico, é instinto material. Punição necessária para uma menina que odiava comer, que trancava os dentes e, só a troco de um grande beliscão no braço, abria a boca. (...) E se ela conversasse comigo, me doutrinasse, dissesse que a alimentação é necessária, e que se eu não comesse morreria, etc? (...) Eu não abriria os dentes, muito menos a boca, tenho certeza. Lá eu iria entender que se eu não engolisse aquela comida maldita eu morreria?”


Poemas para Antonio, parte 2 (22/08/2010),
sobre a carreira literária,
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“Meu avô era tocador de sanfona, aventureiro, mesmo sendo pai de onze filhos. (...) caixeiro-viajante, sumia no mundo e voltava alegre, cheio de presentes. Galanteador, bonitão, namorador. Sabia todos os artifícios do encanto; sempre calmo, sempre rindo, os olhos apertados. Um dia demorou mais tempo em sua viagem. Demorou dois meses, três, seis, um ano. Demorou dois anos. Sequer um bilhete, sequer um recado. A família em prantos, mãe sem comer, era muita saudade. No mesmo dia da partida, uma comadre sumiu. E o tempo da ausência dos dois, compartilhado. Morrendo de paixão, sumiram os dois, foram para São Paulo. (...) naquele tempo, quantos dias de viagem eram enfrentados? (...) Para voltar, soube-se: dois anos. Voltou feliz, satisfeito, sem a comadre. Voltou para os filhos, para a mulher, para a família. A comadre ele deixou, sem ninguém, num ponto qualquer da estrada. Essa história é forte; essa história é lírica, ingrata, perpétua. Vertiginosa, açoita minha alma.”


“A literatura. Por isso não me matei aos 15. Havia um enigma naquilo tudo, nas entrelinhas das letras, entre os livros. Talvez o formato de uma forca, uma guilhotina, onde eu pudesse cometer, de fato, todos os crimes propícios. Matar minha professora de educação física, que ensinou meu corpo a se humilhar nos espetáculos públicos. (...) Foi ela: a deusa malvada com flores na mão, morando numa estante abandonada... Ensinou-me a justiça, a condolência, o ódio supremo, a mais perturbadora ternura. Se não fosse isso, o que seria dessa vontade imensa de um abraço completo, sem qualquer reserva ou medo? Essa força que vem de meu desamparo mais profundo? Essa vida insistente, crédula, à espera de Deus?”


“Quando sonho com ele, sua presença invade meu dia. O perfume dele inunda a casa, aí tomamos café juntos, e conversamos animadamente ou ficamos em silêncio, ambos com a xícara no ar, alegres ou reticentes. No almoço ele passa os pratos para mim, nessa mesa que diariamente não tem pratos, nem bocas. Quando sonho com ele, portanto, almoçamos juntos, e dividimos talheres; uma vez meu garfo caiu no chão e ele me deu o dele: esta foi a maior intimidade que um sonho me concedeu. Depois vamos à sesta, nessa cama tão larga, abraçados — como duas crianças. Ai, ai, quando sonho com ele, acordo depois do almoço com muita, muita fome”


“Hoje tenho o maior constrangimento em desejar feliz 2010 a alguém: não acredito na frase, apesar de desejá-la verdadeira; a frase nega a veracidade de minha alma. A frase banalizou-se, virou comércio. O que fazer, meu Deus, com meus sentimentos? Quais palavras dirão ao menos um pouco deles? Nenhuma palavra conseguirá. Por isso fiquei muda nesses dias. Fiquei muda, sem uma palavra que significasse o símbolo (...) Claro, é recomeço; e não é só o calendário proclamando isso, é minha alma muda. (...) como todo recomeço, é recheado de repetição. Afinal tudo se repete... Ser condenado a se repetir, a tomar banho todos os dias, a comer todos os dias, a dormir todos os dias... essa coisa cíclica é um filme de terror. Conheço todos os caminhos da segunda, da terça, da quarta, de janeiro, fevereiro, março... Mas minha alma insiste no símbolo. O símbolo da transfiguração, da mudança, do divino. Nunca nem vi alma do outro mundo, mas intuo. Intuo constelações de felicidades amenas em outras almas que vejo, por aqui mesmo. Acredito, ah, acredito na felicidade. Há coisa mais piegas?”


“Sou do ar — mas tenho medo de altura. Medo não, pavor. Não entro em avião. Nem dormindo gosto de sonhar voando. A sensação, dentro do sonho, é sempre que vou cair. É isso: voar é sinônimo de queda. No entanto, vivo no ar. Nem é preciso, veja, terminar o raciocínio: vivo em quedas constantes.”


Ângela Vilma - Foto daqui

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