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Vinte e sete passagens de Ângela Vilma no blog Aeronauta em 2008



“Imagino um Deus complacente nos casos de amor impossível; um Deus que sabe ser a vida não cartesiana; que entende o sofrimento como algo não exclusivo, mas de todos os que aqui estão, com seus destinos entrelaçados feito nuvens que se encontram e se diluem, e sem ao menos saberem por que isso acontece. Deus, com certeza, tem piedade de todos nós, humanos que somos e não anjos: pobres seres que se encontram com o indizível apenas por algumas vias, como a intuição, a poesia e o amor ‘que não pode ser’.”


“Depois que pai morreu, o São João deixou de existir. Pai era o responsável pela fogueira. Era ele quem, pontualmente, às sete horas da noite, saía na porta, já arrumado, para acender a fogueira feita no final da tarde. (...) Agora, nesse momento, são quase cinco horas: pai já estaria na porta de casa, com as lenhas ao lado, a fim de construir uma fogueira alta, grandiosa. A rua nossa, pequena e estreita, ficava explodindo com milhares delas. Enquanto juntava artesanalmente as lenhas, pai conversava com o vizinho, dono da fogueira em frente, que também armava a sua: seo Landulfo. (...) As pessoas passavam de lá para cá, animadas, e os menininhos já iniciavam a sua soltação de traques. Havia concurso de ruas, e nessa hora os moradores arrumavam as bandeirolas, pregavam os retratos de São João nas portas, colando flores, muitas flores de papel crepom, em cada janela. Tudo muito colorido, tudo muito feliz. (...) depois de armada a fogueira, pai ia tomar banho. Vestia-se todo, se perfumava, e às sete, pontualmente, estava na porta com muitos fósforos e álcool, a fim de fazer nascer dali, daquela fogueira tão linda, uma grande festa. (...) Pai, animado, recebia as visitas; visitas que vinham de casa-em-casa, uma tradição do lugar. A mesa da sala as esperava com muito bolo de milho, avoador, pamonha, rosquinhas, amendoim, licor e quentão. Elas chegavam, comiam, bebiam, dançavam e depois seguiam adiante, para a casa em frente. ‘São João de porta-em-porta’, era esse o nome dos grupos. Pai sempre muito feliz; afinal como ele dizia, ‘aquela era uma festa de roça’, ele que nunca se acostumou a morar na cidade, mesmo pequena. E rindo, recebia seus amigos, falando de política e contando casos antigos. (...) Depois que pai morreu, mãe não quis mais, de jeito nenhum, que armássemos fogueira. Na nossa porta ficou um grande vazio. Seo Landulfo, em frente, armava a sua fogueira sozinho, sem um amigo para conversar. E nós, adultas e tristes, andávamos para lá e para cá, sem nenhum traque nas mãos.”


“O único sentido que encontro na vida é a literatura. É ela que me conduz a fim de que eu não desista. Sempre achei o mundo um tédio, sempre quis estar em outro lugar. Nunca fui alegrinha, saltitante e linda. Pelo contrário. Sempre fui incontestavelmente triste, eis a grande verdade. Incontestavelmente triste. É uma sentença isso: seguir triste pelo mundo. E, que, por favor, diante do espetáculo do ‘ser alegre’, me deixem com minha tristeza, em paz; tenho todo o direito. Não estou fazendo terapia para ficar alegre, de jeito nenhum. Faço terapia para descobrir todos os meus abismos, e andar por eles sem nenhum medo. Não é para andar por eles dançante e fagueira. Mas para entrar neles e saber o tamanho de suas paredes; a cor de seu chão; as imagens dos seus pesadelos. Nesses caminhos não há espaço para a alegria: há apenas para o senso de humor. (...) A tristeza em mim é direção, não é um recalque.”


“(...) não quero lembrar dos momentos terríveis de sua doença, quando comecei a envelhecer aos vinte e poucos anos. Não, não quero. Quero lembrar de sua juventude, quando eu, aos quatro anos, precisei de um remédio e o senhor viajou mais de cinquenta quilômetros de bicicleta para comprar esse remédio para mim. Ou quando eu, com o cabelo nos mundos, vinha da festa suada, dormindo no seu colo. É lembrança repetida, sei, mas muitas vezes uma lembrança repetida salva toda uma vida do ressentimento. Do ressentimento de não reter lembranças fortes; de não guardar com nitidez uma fisionomia antiga; de, na infância, não conseguir esculpir, para sempre, um rosto querido. (...) A sua face é aquela que minha adolescência guarda, diluída em conflitos, nunca em abraços. Em ciúmes. Em traços antiquados de minha juventude arrogante, sempre pronta para a briga. (Todo adolescente é um sapo parnasiano, cantando na lagoa). Aí vieram os meus vinte anos, os vinte e quatro, e sua doença. A possibilidade da morte rondando a nós todos, tontos, sem atinar para nada direito. (...) O senhor me colocava no colo; eu, a caçula; a caçula que até hoje nunca aprendeu a assoviar, muito menos a dirigir, muito menos a nadar. E que não dança mais nas festas. E que clama por sua presença todos os dias, e chora. Para que o senhor escute, pegue sua bicicleta e volte — a fim de trazer um remédio para mim.”


“(...) Dona Maronita, coitada, que lavava roupa na beira do rio e viu uma jiboia. E, claro, a jiboia também lhe viu. Só que dona Maronita viu algo mais na jiboia: o olho, que trazia, extraordinariamente, a cidade de São Paulo inteirinha, toda iluminada, coisa que ela mais queria conhecer na vida! Então, as duas foram chegando perto: mulher e cidade, ou melhor, mulher e olho e boca de jiboia. Se não fosse um menino desses, que vive a vida inteira tomando banho de rio, dona Maronita ia mesmo conhecer para sempre, e de verdade, a cidade-alvo de seus desejos.”


Noite de São João (23/06/2008),
uma linda memória da festa junina,
leia aqui

“Acordo, me sento diante do computador, e pergunto para meus dedos: escrever o quê? Tudo já foi escrito. Há um ano que mantenho este diariozinho: já contei todos os causos, todos os dramas, todas as comédias. Já falei de pai, de mãe, de minha irmã. Da parentada toda. Já falei até coisa que não devia, coisa íntima demais. Já mostrei poemas inéditos, loucos para irem parar num livro. Já comi carne de cristão — como dizemos na minha terra ao retalhar a vida alheia. Já falei de tudo. E agora? O que vou escrever? Se o sol vai alto e setembro se instala? Se ontem rebentei meu nariz de tanto lavar roupa (não sei por que meu nariz arde quando lavo roupa!)... Se, se, se dou munição para o anônimo meu amigo me chamar de Choronauta? Não, não vou me lamentar hoje, é setembro — de Beto Guedes e de todas as lembranças dos dezenove anos. Agosto desgostoso já se foi, e a existência se prolonga em mais um dia que chega com fundo musical de eleição... É como se a existência se mostrasse irônica com essa musiquinha ridícula ao fundo. A vida é uma narrativa de Gógol: ri de todos nós, seres que têm a cara parecida com a de um rato, com a de um bode... Ou feita a facão mesmo...”


“Por saber-me mulher estremeço como chocolate se derretendo. Fico líquida, espalho-me entre as xícaras e os pratos e os talheres e a mesa e o jantar e o café. Sou mulher, grito dentro de casa, para que o universo escute no teu ouvido, e para que possas usufruir de tudo que tenho, água e chaleira fervendo. E te chamo, Amigo, para desceres o rio comigo; esse rio onde tudo é beira, pedra, limo.”


“(...) Não há alegria na literatura, tenho a ousadia de afirmar: o que há é a alegria na descoberta de quão funda e produtiva pode ser a tristeza. Por isso é que se escreve — para não se tornar um completo desgraçado.”


“Quando sumo, não busco estrelas. Ganho a noite inteira, no escuro. Vou de déu em déu, em todas as partes do mundo em que habitam minhas memórias. Me vejo pequena, aos dois anos, (...) fazendo cocô no fundo do quintal. Chega perto de mim um pintinho e também faz cocô. Pergunto: ‘Tu também está com dor de barriga, pintinho?’ (...) No mundo tudo é a mesma dor, o mesmo alívio; parece mesmo que eu já sabia de algumas coisas. (...) Aos sete anos descobri que olhar pai tomar banho nu, debaixo da caixa d'água, era a melhor atração do mundo. Via os segredos do seu corpo e contava pra todos que iam lá em casa: seus amigos, seus compadres, seus afilhados. Eu ria, ria, ria, contava detalhe por detalhe. Ah, como era bom ver coisas. (...) Mostrar coisas também era bom. (...) aos sete anos mostrava minha calcinha cor de rosa para Eugênio, um meninão bobo de quinze anos, e sua família na hora do jantar, todas as noites, sem interrupção. Era tão bom me mostrar. Adorava. Principalmente porque Eugênio morria de vergonha e todos os espectadores riam, riam, riam. Eu era o grande centro das atenções e meu corpo se firmava no mundo. Meu corpo.”


“Sempre tive uma certa queda pelo grotesco. A maioria de meus namorados nunca entrou na chamada beleza padrão. A beleza física não me comove tanto quanto a feiura. O mundo é dos feios, fiquem sabendo. A família de pai, por exemplo, foi distintamente marcada pela feiura. Todos, como dizem por aí, de mamando a caducando, são feios. Menos pai, claro, que sobressaía: talvez isso tenha atrapalhado um pouco nossa relação de filha e pai. (...) Há feiuras diferentes, que nos repugnam, ao invés de nos comover. Um dos paqueras que tive aos vinte anos era assim: repugnante. (...) um feio diferente, porque se achava bonito. Era arrogante: tirava fotos suas e mandava pra meio mundo de gente (...) Como se comover com tamanha feiura? A beleza dos considerados feios está justamente na humildade comovente de se saber feio. Esse não: por isso retirei-o do caminho o mais rápido que pude. Fui me apaixonar anos depois por uma fera: tinha a cara de um bode e o mundo todo brilhava nos seus olhos. Era baixinho e me alcançava em todas as nuvens.”


Aeronauta, a escrevente (04/07/2008),
lembranças do trabalho no cartório,
leia aqui

“Um dia de domingo só presta para a gente olhar à janela e ter recordações. Palavra linda esta: ‘recordações’. Parece que vem cheia de borboletas e flores na nossa memória, abrindo um escaninho de lembranças líricas. E são tantas. Essas eu faço questão de guardar bem-guardadas e só abri-las num dia assim, num dia vazio, no qual somente a imaginação poética pode nos salvar. Todas essas lembranças são de amor. Das possibilidades do amor. De todos os amores que já tive. Em suas mais diversas epifanias. Um riozinho correndo. Eu e ele diante de milhares de pedras. Ele pega uma pedrinha e desenha um relógio: eternos quinze para as três da tarde. Ele eternizou a nossa tarde no rio com um lápis que levou dentro do bolso. Hoje trago a pedra, ratificando liricamente aquela hora vivida.”


“O que nos leva a acreditar que existimos? Os nossos cinco sentidos muito mal utilizados? Até hoje desacredito que existo. Não consigo muito prestar atenção aos sentidos, estou sempre em outro lugar. Quando entrei na escola, aos seis anos, era assim. Eu nunca estava ali, chorava porque na verdade eu estava em casa, ao lado de minha mãe. E naquele lugar ela desaparecia. Nunca me senti de corpo inteiro no que chamam de realidade. E quando tento saio logo, desesperadamente. Vou buscar outro mundo, salto o muro, transgressora sem rumo, em busca de alguma coisa que nem sei o que é.”


“(...) No final de semana essa palavra (So-li-dão) me lembra que estou morando na cidade grande, e que as pessoas se fecham nas suas casas verticais, adorando seus vivos, os do seu próprio sangue. Na cidade pequena não. Todos se encontram, vão para a praça falar da vida alheia com o mais doce sentimento de solidariedade. Lá seus amigos chegam, puxam o trinco da porta e vão entrando. Não precisam telefonar, porque com certeza você vai estar em casa. Se não, como disse, estará na praça. Para onde fugiria quem você procura? A cidade é pequena, com dois gritos ele lhe escutará na beira do rio e virá correndo. (...) Ah, por aqui o negócio é bem diferente. Por aqui a Solidão é uma dama deslocada, usando sapatos fechados em plena praia. Desmaia a cada sol na cara, a cada onda que bate em seus pés. Chora a plenos pulmões, mendigando a qualquer um que seja dois dedos de prosa, ou melhor, uma simples ‘conversação’.”


“Sempre tive esse gosto pela fatalidade quando a vida me nega as coisas.”


“Cresci ouvindo mãe contar, aos risos, que tinha me achado no areão quente. Em razão disso, desde pequena me aprumei numa tarefa complicada: achar vestígios de minha mãe biológica. Fuçava tudo em casa. (...) Fazia tudo escondido, e com uma fé forte e decidida: um dia descobriria minhas origens. (...) Mexendo nuns papéis que pai guardava na sua maleta, encontrei! Zuleica, era o nome dela! Saí gritando pela casa, achei, achei! O papel balançava nas minhas mãos como a maior descoberta de minha vida. (...) Com os gritos todo mundo veio ver o que acontecia: pai pegou o papel e riu, riu, riu. Mãe também. Por que riam tanto? Oh, Zuleica era apenas uma amiga que deu entrada numa aposentadoria e pai tentava ajudá-la nisso. Foi o que eles disseram. E continuaram rindo. E aí mãe mais ratificou que me achou mesmo no areão quente. E riu, riu, riu, quase se engasgando. Eu, perplexa, senti meu couro das costas arder. Arde até hoje.”


Apologia ao grotesco (10/09/2008),
“o mundo é dos feios, fiquem sabendo”,
leia aqui

“Fui uma escrevente de cartório... que trazia dentro da gaveta, escondidos, duas coisas: um livro de literatura e uma caixa de chocolates. Sempre as roubadinhas me fascinaram. E bem nas fuças do escrivão... Mas eu não era doida de oferecer chocolate pra ele, muito menos de dar a oportunidade de ser lembrada que ali não era lugar pra ler literatura. Fazia tudo escondido, que é mil vezes melhor. Vivia em estado de pura tensão e excitação, todos os dias. Essa felicidade clandestina me ajudava a suportar as tristes tardes sonorizadas por um ventiladorzão besouro que espalhava todos os processos no chão. E a labuta com esses serezinhos horrorosos que são os chatíssimos processos? Tudo foi compensado pelo desejo intenso de uma vida em constante perigo. Enquanto suportava a tortura, que era bater mandados e cartas precatórias na máquina, dava uma roubadinha na gaveta: o livro e a caixa de chocolates viviam abertos.”


“Estar doente é sinônimo de ter alguém, sempre por perto, cuidando. Você todo embrulhado na cama, e uma mão vindo pegar na sua testa pra ver se a febre baixou; lhe acordar para dar o remédio na hora certa; sentar-se à beira da cama com um prato de comidinha leve e um garfo para colocar a comida na sua boca. A casa em paz, pois a pessoa que está cuidando de você faz de tudo para que nada atrapalhe seu sono. Há um certo ar de preocupação por todos os lados, e por todos os lados a sensação de que você é bastante querido, bastante dengado, bastante amado. (...) Há um certo ar de infância em estar doente. E um cheiro de mãe percorrendo a casa; mesmo quando a ausência do mundo entra nela, e lhe esmaga sozinho.”


“Uma das cenas mais líricas de minha infância sobreviverá, tenho certeza: eu descendo as escadarias do quintal de lá de casa, pela manhã, bem cedo. Ia escovar os dentes no rio. Um riozinho manso, raso, que dava para ver a areia: fininha... Lembro da pedra que acolhia meus pés quando eu chegava... Me debruçava sobre as águas, e o rio limpava meus dentes e minha boca do mingau das almas deixado na noite anterior. Aquele era um rio despretensioso. E eu dele conhecia tudo: sabia exatamente onde os pés atolavam; via cada mato que molhava suas folhas ali perto; das pedras me interessava o mais tolo e morno dos segredos: aquele de ali ficar, anos, tocando as águas, com seus frágeis dedos.”


“(...) Minha irmã fazendo xixi na sala e tentando secar o chão com folhas e mais folhas de caderno, antes que a professora chegasse, é memória da visão desesperadora do inferno. A terrível memória do cheiro é a banha de galinha que mãe passava nos meus cabelos a fim de que crescessem infinitamente. ‘Eu morava na areia, sereia, e mudei para o sertão’ é a carícia do vento que meus ouvidos recebiam, para que meu corpo sempre se lembrasse que infância é sentido grudado eternamente na pele, toque dos anjos, liturgia do mundo.”


Nós e Papai Noel (07/12/2008),
lembranças infantis do Natal,
leia aqui

“Tinha sete pra oito anos e uma primeira amiga: Sílvia. A gente ia junto para a escola. Morávamos na mesma rua. (...) Vivíamos sempre juntas, a despeito de todo sofrimento que ela me causava. Como por exemplo, me obrigava a pegar merenda pra ela depois que se empanzinava, me dava cascudos, e me deixava de lado quando conhecia outra amiga. Essa é a parte que mais dói na lembrança. Ela havia conhecido uma menininha riquinha e metida a besta, de nome Livinha. Até o nome era nojentinho. Quando essa dita cuja chegava, ela simplesmente me deixava de lado. Fingia nunca ter me conhecido. Entrava lá pra sua casa, fechava a porta e me deixava olhando a rua. Ia brincar com os brinquedos ricos da outra. Eu, com a cara na rua, como disse, voltava pra minha porta. Ficava lá sentada. Quando a outra ia embora, a sem-vergonha fazia um aceno pra mim com as mãos abrindo e fechando. O pior de tudo é que a sem-vergonha que era eu, retornava. Voltávamos a brincar como se nada tivesse acontecido. Se Livinha voltasse, a cena se repetiria: ela entrava com a menina, fechava a porta na minha cara, e depois que a outra ia embora me chamava com as mãos abrindo e fechando.”


“Como esquecer o barulho que fazia meu pé batendo no papel de presente, ao acordar? Como descrever aquela felicidade? Não conseguirei não. Acordava minha irmã. As duas felizes, felizes, felizes. Papai Noel era bom, atendia direitinho aos nossos pedidos. Só duas vezes nos desapontou. Primeiro foi comigo, ao deixar no lugar do presente uma carta dizendo que naquele ano eu não ganharia nada: andava mentindo e respondendo aos meus pais. Chorei muito. Mas no final da carta ele mudou o tom da prosa e me deu mais uma chance: a boneca que pedi estava debaixo da cama. Entretanto, se eu continuasse malcriada, aquele era meu último presente de Natal. Lembro que passei os anos seguintes vivendo na tentativa difícil de ser sempre boazinha. Acho que continuo até hoje.”


“Hoje quem chegou aqui foi mãe. Veio, como todos os anos, passar meu aniversário comigo. Pedi pra ela a clemência, a caridade cristã de lavar aqueles pratinhos do café pra mim, pois que vou nascer amanhã (vide inferno astral) e não consigo fazer nada do lar. Achei tão engraçado ela dizer, depois que terminou a tarefa: — Menina, seu coador está fracassado! (...) E eu, sempre dramática: — Resta saber o que é que não está fracassado nessa casa!”


“(...) Olho para o mural aqui em cima do computador e vejo Cecília. Peço-lhe ajuda. Seu olhar entra fundo na minha alma e me faz lembrar das coisas mais imprestáveis do mundo. E que eu guardo. Não, ela não manda jogar fora, como todo ser holístico faz. Ela diz para eu ir visitá-las: lembra-me que estou lá, no meio dos diários bestas, dos cadernos imbecis, dos poemas de rima paupérrima. Eu estou lá. Ela reitera para eu ir visitar-me. Ainda sussurra: Leia, leia a epígrafe que está naquele caderno de músicas! Olho para o caderno: capa forrada de papel de presente. Abro e leio na primeira página: ‘Músicas, canções’: ‘Não há coisa mais linda de que o eco de uma canção’. Ano: 1981. Ah, deixe-me rir, Cecília!! Ela não aguenta e ri também.”


O divã, mais uma vez (19/11/2008),
sobre a amiga abusiva,
leia aqui

“Como diz mãe, vai indo a gente enjoa dessas festas. Não, ela nunca disse isso, mas o ‘vai indo’. Acho ótimo e aqui repito: vai indo a gente enjoa dessas festas. Lá na minha terra é assim: segue todo mundo, a cidade inteira, para a beira do rio. Meia-noite em ponto é um tal de beija-beija, abraça-abraça, feliz ano feliz ano novo, feliz ano novo, coisa realmente patética, que não comove ninguém. A vida virou uma repetição besta de coisas, e as tais festas ficaram todas estigmatizadas, repetidas e artificiais. (...) ficarei tocada quando olhar o relógio e pressentir, imageticamente, um novo número acoplado ao dois mil. Irei lembrar de muitas coisas, inclusive de pai, que tinha o sonho de visualizar esse tal de Dois mil. Oh pai, de 1994 para 2009 são muitos anos, destruídos pela mística de um réveillon de 2000 que passei em Tucano junto a um trio elétrico horroroso. Depois disso, percebi que 2000 era apenas uma data que eu escrevi no papel, quando criança, para saber que idade teria quando o mundo acabasse.”


“(...) o duro mesmo era ouvir, do sofá da sala, a roncaria rotineira da família. Tinha uma inveja. Ouvir o silêncio de uma cidade que dorme, uma cidade inteira e mais o de sua família, é algo de uma dimensão que nunca consegui pensar direito: dá arrepio na alma. Certo que um cachorro ou outro latia, quebrando o silêncio; um jegue ou outro derrubava o balde de lixo na rua; ou um bêbado qualquer passava tropeçando, num discurso engrolado. Mas o que imperava mesmo era a estranheza do silêncio em que todos dormem. Menos você.”


“Outro namorado tinha verdadeiro ciúme de mim com os livros. Era só eu escolher um livro pra ler e ele ia atrás puxando assunto. Quando eu pegava embalagem no primeiro parágrafo tinha que parar pra responder a uma pergunta sua. E nisso ele ia ganhando terreno. Aí eu de novo recomeçava a leitura interrompida. Então ele resolvia se sentar perto de mim e começar uma prosa longa, que por mais que eu quisesse não poderia me livrar. Ao perceber que tudo isso era estratégia, ciúme, acabei o namoro e fui ler meu livro em paz.”


“Hoje acordei pensando seriamente nessa que sou e que ocupa o lugar da outra, da aeronauta. Gostaria tanto de ser somente Aeronauta. Não sou. Essa legião que me acompanha, que diz ser eu, é, no final das contas, algo em estado amorfo. Resumindo: um monte de gente besta, que sofre por tudo, que perde noites por uma palavra mal proferida, que se dá ao mundo de corpo inteiro e recebe de volta uma lufada de redemoinho com tudo que é coisa que não presta: lata velha, papel sujo de jornal, imundícies de toda a espécie. (...) Aeronauta não: Aeronauta é amada, muito amada; sinto isso pelos comentários que aqui leio. Como invejo Aeronauta! Ninguém vê seu rosto, pois que é nuvem. Mesmo chorando, há quem goste dela. É tanto afago, tanto abraço, tanto beijo! Enquanto que a legião que eu sou luta com faca e facão, do lado de cá, contra a mais dura das solidões.”


Ângela Vilma - Foto daqui

Presentes no blog Aeronauta, de Ângela Vilma, postagens O destino dos amantes (04/03/2008), Noite de São João (23/06/2008), Recado (11/06/2008), Carta ao meu pai (12/05/2008), O olho (31/08/2008), Ah, o de sempre... (03/09/2008), Convite (08/10/2008), O pierrô suburbano (03/11/2008), Retrospectiva: Itinerário das volúpias (23/11/2008), Apologia ao grotesco (10/09/2008), “Recordações” (28/09/2008), Girando... (15/07/2008), Uma dama deslocada (02/11/2008), Amor (01/07/2008), De todas as verdades (30/11/2008), Aeronauta, a escrevente (04/07/2008), Cheiro de mãe (22/09/2008), Tributo ao rio (17/09/2008), Liturgia do mundo (06/10/2008), O divã, mais uma vez (19/11/2008), Nós e Papai Noel (07/12/2008), Histórias do Lar (09/11/2008), Voltando (15/09/2008), “Vai indo” (29/12/2008), Noctívaga (08/12/2008), triângulo amoroso (16/12/2008) e A legião (29/11/2008), respectivamente.

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