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Trinta e sete passagens de Ângela Vilma no blog Aeronauta em 2009



“Sou uma mulher machadiana, silenciosa e entrada em anos. Minhas mãos não têm mais a suavidade dos vinte, e a conversação que proponho é tímida, reticente, sem qualquer esperança. Ganhei com o tempo um rosto severo, com marcas delimitadas pelo espelho mais cruel. Nele nem o meu sorriso é como era: quando se abre, uma nuvem se aproxima em confidência íntima, eterna. Meu corpo sem filhos ganhou o contorno dos rios já vividos, sinuosos e vastos, e nas frestas de minha pele habitam peixes como se no aquário estivessem. Veias partidas aparecem nas minhas pernas, condenando-me à mais primitiva das belezas, à ternura das mais antigas pedras. Meus cabelos, como plantas aquáticas, crescem, crescem, e fios brancos despontam, pálidos, errantes. Tudo em mim é natureza se transformando, árvore plena carregada de troncos.”


“Não sabemos quem foi a primeira pessoa a falar de amor, seja nas artes seja num simples bate-papo. Não sei se o que já senti ou escrevi foi, de fato, amor. Aliás, essa palavra é claro enigma, como bem sabia Drummond, como bem sabem todos os seres sensíveis que se debruçam em busca de significações para o mundo. Talvez nosso imaginário esteja apenas tocado por uma notável beleza que nossos antepassados nos deixaram como herança, como muitos deixam talheres de prata e brincos de rubi. Com a diferença de que esses últimos são tangíveis, e aquilo que nosso imaginário herda está, como a lua, em eterna suspensão, numa mobilidade perversa, sem nunca conseguirmos tocar. Por isso o que imaginamos ser amor hoje, amanhã se transforma em indiferença, naquela constatação proustiana tardia de pensarmos ter feito tanto por alguém que nem era o nosso tipo. O que fica é a sensação de que fomos, oh, fomos tão bestas, tão bobocas, tão... (...) Para depois tudo se repetir, com a percepção nova de eternidade, de algo singular; e a seguir voltarmos à sensação de bestialidade.”


“O pior de tudo é que a gente não consegue se ver vivendo. Antes de ler Pirandello, em mim já habitava essa angústia; a angústia de não ter a totalidade de mim mesma, de não conseguir me ver por inteiro, nem no espelho: pois se olho para meu braço direito refletido nele, só vejo meu braço direito, e o resto do corpo se mira em olhar periférico. Não consigo saber como mexe minha boca quando faço um esgar; como brilham meus olhos quando sorrio; como ficam minhas sobrancelhas quando divago. Oh, quão estranho é não se conhecer, sequer externamente! O que sei de mim é o que me contam as pessoas e o que mostram as fotografias: ambas quase sempre falaciosas. Como, então, saber de mim?, se o olhar do amor me deforma e o da indiferença me anula? Se andando pé ante pé, na sala escura, acordam monstros de maior estatura e me degolam?”


“Sou do signo de escorpião, com ascendente em libra e lua em peixes: mulher, infinitamente. Meus gestos, meu choro e meus vestidos; minha alma, meus gemidos, meu destino: tudo converge para o feminino. Não sei fritar um ovo, meu arroz e meu macarrão são defeituosos; mas sei ver-te ainda moço, tocar as linhas de tua mão e as raízes de teu corpo, plantadas num tempo anterior. (...) Se eu te dissesse que não lavo roupa direito, que comprei uma máquina de lavar mas não sei manuseá-la; que não consigo abrir um pacote de bolacha sem que todas caiam; que minha casa se equilibra entre uma nuvem e um rio; que em tempo de estio vivo a dormir na varanda invisível, de um tempo que para sempre se acaba...? (...) Sou, no horóscopo chinês, ‘cabra’: não sei declarar imposto de renda. Não sei dirigir carro, nem bicicleta. Não sei assoviar, muito menos nadar. Não sei andar de salto alto, nem passar sombras nas pálpebras: meus olhos são nus, exageradamente, sem nenhum rímel; meus cabelos crespos enfrentam, ao vivo, o vento mais inóspito, sem nenhum charme, sem nenhuma esperança; mas meu corpo – mesmo sem filhos – perpetua minha espécie, feita de leite, germe, heranças.”


“A sensação é que o deserto é amplo; o ar seco; o sol escaldante. Eu estou só. Mas não há silêncio. Acordo com as costas ardendo na areia quente e me deparo com minha sombra sentada ao meu lado. Solidão é estar acompanhado dessa sombra. Eloquente: fala tanto que não me deixa encontrar o grande silêncio. Há muitos anos estou aqui e nunca o ouvi. Tem muito barulho dentro de mim. Vozes provenientes de casarões antigos, de corredores imensos, gemendo, pedindo alento. Ou então, damas de salão clamando por música, mais música, porque a festa não pode nunca acabar. Cortesãs vestidas de vermelho alçando seu amante pela camisa e a grande imagem vista no espelho da frente. Ah, a balbúrdia nesse deserto é aviltante. Meu corpo frágil se deita, se curva e a sombra o imita. É muito difícil conviver com ela, com a memória que lhe habita, que é minha, minha, só minha, e que ela a detém. Como então roubar de vez tua imagem, essa que é a imagem do amor, e guardá-la aqui dentro, só em mim, aqui, aqui dentro, para que eu possa, enfim, ouvir o silêncio do deserto?”


Noélia Lúcia (30/07/2009),
sobre a irmã morta ainda bebê,
leia aqui

“A gratificação que a literatura traz tem um preço alto: o preço do mergulho na vida, consequentemente na dor. Há uma edificação aí, um ganho, uma perda, um soluço, um alívio, uma alegria. Há o grande e sofrido prazer, como diria Harold Bloom em seu desperto delírio. Sofre-se e é feliz, algo que parece contraditório, mas que leitores reincidentes entendem. A literatura nos dá a visão, a vivência, a possibilidade de entrarmos no mistério: largueza de abismo e sonho.”


“Sinto que o Destino está conversando comigo. Sua conversa eu já conheço: em silêncio. Um silêncio devoto, solene, como cabe a uma figura de tamanho porte, de tamanho poder. Não conversa entre os dentes. Mãe sempre disse que quem conversa entre os dentes é falso. O Destino não é falso. Ele pode ter todos os defeitos do mundo, mas falsidade não tem. Por isso é cruel. Toda crueldade é revestida da mais nua e dura verdade. E ele é assim: crudelíssimo, pois verdadeiro.”


“Vez em quando, andando na rua, dá-se um estalo. Em mim algo se quebra, a existência talvez. É preciso continuar andando, ir ao banco, depois almoçar, depois viver. Vidro partido dentro do peito, água transbordando no corpo, olho parado no vácuo. Será isso o nada? Será isso a infelicidade? Será isso a sombra? O que será isso? pergunto, pergunto, pergunto, pergunto: quatro vezes. Se você tem a chave, me dê. Porque toda vez que o vidro estala, meu corpo se recolhe. Deita-se na cama, e dorme. Não há como catar os estilhaços: é tudo por dentro, misturado com o sangue que se petrifica.”


“Quando comecei a escrever versos, aos doze anos, endoidei completamente: era o tempo inteiro escrevendo, dia e noite; claro, bobagem, muita bobagem. (...) O pior de tudo é que as pessoas gostavam. Eu tinha uma plateia de queixo caído com tanto ‘talento’, elogiando essa besteirada toda. Preenchi um caderno de mais de trezentas páginas que, graças a mãe e a Deus, o rio levou. (...) Nessa época amava um menino moreno, quase cabo verde, até bonitinho. Achava que minha poesia o conquistaria. Engraçado, repeti isso a minha vida inteira. Até hoje, ao ficar apaixonada, escrevo versos para o objeto amoroso. Devo escrever muito mal porque nunca consegui conquistar nenhum deles com minha poesia. Alguns chegaram a ficar comovidos e, pior, convencidos; mas um poema meu nunca me rendeu um beijo como recompensa.”


“Clarice não passa na vida de ninguém impunemente. Levo Clarice nos ossos. Já quis ser Clarice. Escrevi livro tentando imitá-la. Tenho todos os seus livros. Cito Clarice nas aulas. E falo mal de Clarice. Me perdi no mundo por causa dela. Meu horror pelo mundo vem dela. Minha salvação pela escrita também. Ela para mim era uma santa. Acendia velas. Depois comecei a perceber seus pecados, seus defeitos, sua verborragia, seus dramas inverossímeis. (...) Ah, minha amiga Clarice, são tantos os anos de convivência! Já quis ter um cigarro igual ao seu, sabia? Já quis uma varanda perto da praia... e sua insônia recheada de cafés. Já lhe imitei usando uma máquina de escrever no colo, sentada no sofá... só faltaram os filhos por perto. Queria ter aquelas pernas de siriema, altas; queria ter aqueles olhões misteriosos. Por que será que você é tão demoníaca assim com as meninas, despertando nelas essa vontade esquisita de ser você? (...) Ninguém, no mundo, fez entrevistas daquele modo. Você lia o corpo de seu entrevistado, os gestos, a alma. (...) Clarice ultimamente é alvo de minha maior irritação. Reli ‘O búfalo’ e me decepcionei profundamente: minha alma juvenil, perplexa, não estava mais lá. (...) Oh, minha querida, o que fazer contigo no meu coração? Vou salvar para sempre suas crônicas que viraram contos. (...) Gosto muito ainda também de ‘Os desastres de Sofia’, mas se pudéssemos conversar sozinhas lhe pediria pra fazer alguns cortes. Estou ousada, não? Vá desculpando minha temeridade.”


fragmentos de uma história (06/07/2009),
sobre o namorado magrelo e feio,
leia aqui

“Pouso, suavemente, no chão. Estou aprendendo, aos poucos, a pousar e não cair. Antes me agarrava à nuvem e não queria vir. E, quando era obrigada a descer, me jogava de lá e me estatelava no chão, de qualquer jeito, como quem quer morrer. Hoje, desço por vontade, e molho os pés à beira do mar, de leve, de leve... Hoje até parece que quero viver. Até insisto em permanecer por um, dois dias, sentindo o vento bater nos pés... A felicidade é que aprendi a melhor maneira de descer: fechar os olhos e esquecer o susto; ter o justo sentimento de nada ter, nada, nada, corpo de neve a se derreter... E a paciência de polir as perdas, as asas inutilizadas, como quem sequer espera, sequer deseja...”


“(...) eu descobri como é esse negócio mesmo de publicar livros. É uma felicidade intensa e solitária. Mas é uma felicidade, e intensa. Que importa se não compraram todos os mil exemplares (oh, que audácia)! Que importa se os vendi para quem nem os abriu! Que importa se eles continuam dormindo no mais fatigante silêncio... Que importa! E que importa se fiquei viciada, querendo mais e mais mil exemplares, e guardando mais e mais caixas? Que importa? (...) Ah, mesmo que um livro nunca seja lido, nunca seja aberto, nunca tenha sido tocado, a sua existência enquanto forma, materialização, já vale toda uma vida humana.”


“(...) Já conheci muitos homens sem abismos. Muitos. E o pior é que alguns foram quase íntimos. Quase namorados, eu confessaria, vermelha de vergonha. O que são homens sem abismos? No melhor estilo florenciano eu diria que são homens que enchem a pança de cerveja até arredondá-la, sem um piscar sequer de complexidade existencial, de filosofia humana. Homens chão a chão, terra a terra, corpo a corpo, nada dostoievskianos. Algumas mulheres dizem que são os melhores, outras se queixam de que os ditos cujos nunca têm asas e estão sempre rindo. A minha queixa é mais profunda. Um que eu conheci, há muito tempo atrás, tão bonito, ficava só alisando os meus cabelos, os meus longos cabelos. Certa feita, ao alisá-los, disse: ‘Menina, você tem cabelos... para duas cabeças!’”


“Janeiro sempre será silencioso. O telefone toca pouco. As pessoas dormem muito. Outras viajam, rumam para o mar, ou para a serra. Eu viajo tanto o ano inteiro que me dei ao luxo de passar as férias em casa. Dormindo. Lendo. Vendo as horas passarem, minuto por minuto, exaurindo cada segundo. Se já conhecia a solidão em outras esferas, agora a conheço como pessoa. A dita dorme no quarto ao lado. Não conversa nada: é muda; tão muda que não usa códigos. Silente, acorda cedo, perambula pela casa, olhando as horas mortas.”


“(...) O melhor de tudo é sua singularidade: você não é estereotipado – nada pior do que sertanejo estereotipado, desses que a gente vê em certos teatros. Você é o que é, homem largado no mundo, sem se importar com as rugas no rosto nem com os botões da camisa. Personagem do velho Graça, paisagem transformada em gente. Ora árvore ressequida, galhos secos decorando a tarde mais triste, ora riacho fremente, devastadora cheia esverdeando tudo. Deve ser muito boa a sua companhia, para o resto dos tempos. Se você deixar, ficarei aqui, todos os dias, lhe olhando em silêncio, como quem escuta água em beira de rio.”


“(...) A escrita diz o que a palavra proferida a viva voz não consegue. E eu nunca sei falar nada. Desde pequena escrevo pra não precisar falar. Sinto que é uma forma de tentar seduzir o outro, já que não sei mesmo falar. Por isso não queiram me conhecer: sou muda. As palavras que saem de minha boca são sempre intrusas, desordenadas, soltas, guturais. Vivo com a cara pra cima, ninguém dá dois mil réis por mim. Sou tímida de doer. Por isso rejeitei o convite de ir ler meus poemas no café literário e na praça da poesia da Bienal. Se eu fosse o que iria fazer com minhas mãos? Onde as colocaria? Meus poemas sairiam de minha boca de uma maneira torpe, infame. Melhor então que me leiam apenas por aqui, que me vejam por aqui, que me sintam por aqui. Aqui existo, a palavra me concede isso.”


Clarice (08/10/2009),
“Levo Clarice nos ossos”,
leia aqui

“Imagine você me conhecendo, olhando meu olho, bem dentro, bem fundo. Imagine o susto, o grande susto do abismo. Um passo em falso na escada, você me vendo. Um lance de dados, jogado completamente ao acaso. Minha voz que não era a minha, minhas mãos que nunca foram essas, meu corpo pendendo para o lado. (...) A sensação entranha e profana de não ser, e de convencer o contrário. Palavras que somem, pernas tropeçando no escuro, e o muro, o grande muro.”


“O domingo serve para mostrar o quanto a vida é besta. Besta, bestíssima. E isso não é um lamento. É uma constatação. O domingo serve para jogar no meu estômago uma bola de meia, daquelas de antigamente, dos baleados no meio da rua. Só que essa bola de meia está vazia, não tem meia dentro. É oca, inteiramente, e por isso o meu estômago dói mais. A bola bate e volta, bate e volta, bate e volta. (...) Fico prostrada nessa brincadeira boba, sem forças para sair dela. (...) Sinto vontades de chamar Deus, brincalhão nato, que acha graça dessas vidas abestalhadas, sem rumo nem missão. (...) Implorar-lhe tirar esse domingo de minha frente, essa bola de meia oca. (...) Mas ele faz melhor. Rindo de se acabar, joga de lá pra cá uma bola maior, de futebol.”


“(...) Nunca acreditei que os mortos têm felicidade plena pelo fato de terem descoberto o mistério da passagem. Ou, de lá onde estão, numa outra efervescência de ar, terem se transformado em sábios, numa bem-aventurança de fazer inveja. Sempre intuí ser difícil para eles a morte. Difícil. (...) Ligado profundamente à família e à vida, ao rádio e ao seu jornal, pai tinha terrível medo de morrer. Ao saber da gravidade de sua doença, não aceitou a morte, não aceitou. Acreditava que não iria morrer, que ficaria bom, que levantaria daquela cama, daquela cadeira de rodas, e voltaria a cuidar de sua roça, de seu carro, e sentar-se na porta, de tardezinha, conversando com os que passavam. Gritando de dor, tomando morfina, aliviava-se e voltava à vida. Queria sua família por perto, todos eles. Não, nunca pensou seriamente que iria morrer. Não suportaria o desconhecido, principalmente a distância de dois mundos. (...) Quinze anos após sua partida, de cá sinto que ele sofre, que sente saudades da gente. Sinto às vezes sua presença perto de mim, sua presença amorosa me dizendo coisas, e lamentando eu não ter olhos para ver-lhe sentado ao meu lado, e não sentir seus braços me abraçando. Onde está, os dias são longos, e as noites insones são largas para muitas lembranças. Lembranças nossas, de sua roça, do quintal lá de casa, da praça onde jogava dominó com os amigos. (...) Dizem que o desapego é a prova da sabedoria. Se for assim, meu pai nunca será sábio: ele, por demais amoroso, por demais humano, nesses quinze anos não se esquece de nada; e chora, sei, chora ao nos olhar de longe.”


“Minha ternura absoluta por São Paulo. Não pela cidade, mas por meus parentes todos que foram pra lá. E voltavam de ano em ano com um gravador enorme nos ombros e um monte de fitas cassetes na mala. Ligavam o aparelho na sala para a parentalha toda ouvir as vozes gravadas dos filhos, noras e netos desconhecidos, perdidos naquele lugar distante. Nunca esquecerei essa cena: meu avô e minha avó chorando ao ouvirem a vozinha cantante de uma neta que nunca viram, dizendo assim: Vó, vô, sou a Wilza, irmã do Williomar, que foi aí no ano passado... (...) São Paulo para nós era um mito, símbolo de salvação. De lá vinham pelo correio retratos dos parentes todos ajeitados, na graça de Deus. Faziam questão de mandar as fotos tiradas dentro de casa, em meio aos móveis, tudo de boa qualidade: geladeira vermelha, sofás amarelos, radiola preta. Pai tinha o maior orgulho desses parentes; ele que certa vez tentou a vida por lá e voltou cabisbaixo em nome de uma saudade ardilosa, egoísta e romântica. Mas os parentes que foram e prosperaram exerciam nele o fascínio por esse mundo longínquo, mundo onde as pessoas falavam cantando e tinham umas feições civilizadas.”


Os amarelinhos (19/01/2009),
sobre a alegria de ter o primeiro livro publicado,
leia aqui

“Não sei se você se lembra, mas você era bem magrelo naquele tempo. Não tinha carro, mas uma bicicleta, com a qual atravessava a liberdade toda e vinha se encontrar comigo no campo grande. E sempre atrasado. E sempre suado. (...) Você sempre assim, todo atrapalhado nos modos de agir. E com aquele cabelo cortado rente, soldado da primeira guerra mundial. Feio de doer. Não sei o que é que você tinha que fez com que eu retribuísse o beijo depois daquele filme medonho, já sentados no banco de cimento do campo grande. Beijo cheio de saliva, uma bocona grande a sua, nunca esqueci esse detalhe. (...) viemos andando de mãos dadas, feito casal dos anos cinquenta. Eu nem era tão nova assim (...) e você muito falante, rindo demais com aqueles dentes amontoados. Claro, achei você horroroso, mas nunca fui radical com feiuras, gostava de dar chance a homens feios. Nutria dentro de mim a escandalosa e clichê esperança de que os feios são mais sensíveis e humanos. E você era terno, doce, e gostava de literatura. (...) Minha irmã ria muito de você; é, agora posso falar. Ela ria de sua bicicleta. Como é que o namorado vai se encontrar com a namorada de bicicleta, numa cidade grande dessa?, ela dizia rindo. O pior é que eu gostava demais de sua bicicleta. Achava romântica a sua pobreza.”


“Tivesse eu o poder de perpetuar amores, negociaria silêncios. Silêncios nos corredores das casas, das plantações, dos jardins, para que ninguém ouvisse o cansaço imenso de meus braços abertos, o amor sobrevivendo ácido na ponta dos meus dedos de espantalho, fácil, frágil, escandaloso.”


“Ele era alto, torto, gordo e meu namorado. Minha cabeça dava na sua cintura, e para me abraçar andando, ele precisava ficar mais torto ainda. Quando passávamos pela rua, todo mundo ria. Eu não me importava, estava feliz. Ele comia muito, sem nenhuma vergonha. Minha irmã o odiava, pois ele ia lá pra casa e comia tudo que lhe ofereciam. Comia, repetia, comia, repetia. Sempre rindo, com os olhos tortos por trás dos óculos. (...) Todos os domingos íamos passear no rio, perto da cidade. Eu sempre de sandálias havaianas e ele impressionado com elas. Dizia nunca ter visto por ali uma só menina, além de mim, usando sandálias havaianas. (...) Me pedia que eu lesse poemas pra ele, e num desses passeios me deu de presente uma pedra dali do rio, marcando a exata hora em que estávamos vivendo. Pediu meu lápis emprestado para desenhar as quinze para as três. (...) Numa manhã de segunda-feira ele chegou lá em casa me chamando. Disse que havia sido demitido da prefeitura e já estava de viagem. Me chamou para ajudá-lo na mudança. Nesse momento cheio de emoção, me deu de presente um baldinho azul de lixo que guardava no cantinho de sua sala sem sofá. Sempre tive muito zelo por esse balde. Muito zelo. E desde aquele dia cuido dele como se cuida de um náufrago. Vejo-o agora, aqui embaixo da mesa do computador.”


“Não que eu esteja engordando, mas aqui dentro, aqui, sinto-me com mais peso, e isso não me incomoda. Pelo contrário: parece-me que colocaram um apoio nas pernas, assim como fazem numa mesa que vacila. Sinto-me sólida, acho que é isso, sólida, firme, estranhamente firme. Decidida a permanecer, a olhar, a ficar. A nuvem evanescente, a líquida fragilidade de brisa, a lírica e extenuante fadiga – tudo, tudo condensou-se. O chão – mais compacto, o ar na medida certa, você na mesma altura que eu. Posso olhar o seu olho sem esticar o pescoço. Braços finalmente fortes, posso lhe mostrar o corpo, sem vergonha ou medo. Nem preciso encolher a barriga, ostento as pernas, o olho vesgo, os pés tortos, a composição íntima de minha mais extrema imperfeição. Sinto-me, sei não, uma casa pronta, inteira, cheia de varandas, janelas, painéis, teto desenhado com guirlandas de igrejas.”


“(...) todo o amor do mundo nos foi dado sem necessitar de um abraço e de um beijo. Não me lembro de um beijo de mãe e de pai estalando nas minhas bochechas em qualquer época do ano, aniversário ou natal. Sequer um abraço. Como seria um abraço de mãe, com aquelas mãos grossas e cheirando a cebola, que me beliscavam na hora de comer para que eu não morresse de inanição? E pai? O abraço dele seria morno, completamente doado, sem nenhuma timidez? Ele próprio me diria agora: Não, minha filha, gente da roça não sabe fazer essas coisas. Gente da roça aprende que amar é alimentar, vestir, criar filhos para serem pessoas de bem.”


Náufrago (17/05/2009),
sobre o namorado gordo, alto e torto,
leia aqui

“Que Jesus Cristo me perdoe se isso for pecado, mas amanhã, sexta-feira santa, irei comer miojo. (...) eu não sei cozinhar e não é de uma hora para outra que vou aprender a fazer bolinho de bacalhau como mãe fazia nas semanas santas lá de casa. Eu esperava o ano inteiro para comer bolinho de bacalhau. (...) À noite era um tal de cine sempre-viva, onde íamos assistir, pela milésima vez, a Paixão de Cristo. Mãe chorava de soluçar. Eu ficava horrorizada com tanto sofrimento se repetindo a cada ano. Nunca haveria um fim? (...) a semana santa era sempre uma semana triste, menos triste por causa dos bolinhos de bacalhau – que infelizmente acabavam logo. A cidade ganhava um coro de ave ave ave maria, com um rapaz na procissão carregando uma cruz e as costelas e o peito pintados de tinta vermelha. Todo mundo com a cara pesada ia atrás repetindo ave ave ave maria, sem nenhuma banda de música, que ninguém era doido de afrontar Jesus Cristo dessa maneira. Lá em casa era proibido ouvir música na sexta-feira santa. (...) Era proibido qualquer tipo de alegria, menos a de comer bolinho de bacalhau. Ah que delícia aqueles bolinhos! Todos bem redondinhos, que mãe sempre foi tirada a perfeccionista. (...) Eu e minha irmã íamos jogar baralho ensebado com as amigas, eu roubando sempre com a cumplicidade das cartas velhas que se colavam uma sobre as outras. Não sei como pai não proibia o baralho, pois jogo não é coisa de Deus, cresci ouvindo isso. (...) Mas pai não proibia o baralho na sexta-feira santa não. Porém sempre dizia sobre o respeito que se deve ter com a morte de Jesus Cristo, nada de comer carne, nada de comer carne. O que ele diria me vendo comer miojo amanhã? Miojo é comida endemoniada? Mesmo não sendo carne, acho que sim, porque não estabelece vínculos como os bolinhos de bacalhau e por isso não faz a sexta-feira santa ficar menos triste.”


“Em nossa casa existia uma palavra proibida: ‘Desgraça!’ Palavrão que destruía a nossa alma, deliberadamente proibido por mãe. Quem falasse apanhava. Pai – algumas vezes – no auge do desespero, quando perdia sua agenda, a dizia. O sentimento de todas nós, ao ouvi-la, era de uma desordem no mundo, um mal-estar; e mãe logo tratava de ordenar a ele que parasse de dizer aquilo. Tal palavra – evito repeti-la aqui – tinha aos meus ouvidos um som de rasga-mortalha, rasga-roupa, rasga-gente. Até hoje não sei ouvi-la direito, mesmo quando não passa de uma simples menção miserável ao destino humano. (...) Portanto, posso dizer, com felicidade, que não fui criada com palavras que destroem. Que ofendem. Que dilaceram. Que nos fazem chorar desesperadamente. Se chorei na minha infância foi por coisas de outra categoria (...) Nada que trovejasse brabo na minha alma, que me fizesse ter soluços num choro cortado, que me deixasse prostrada diante da d..... humana. (Não, não pronunciarei novamente essa palavra aqui.)”


“Nunca, nunca fui com a cara de Santos Dumont. Que invenção mais besta, essa. (...) se Deus inventou a morte, o homem, por seu turno, inventou as mais terríveis modalidades de morrer. E a mais terrível que eu acho é essa: morrer no ar. Despencar de lá com a maior das agressividades, corpo em retalhos, perplexidades de ventos atônitos vendo todos irem direto para o mais duro dos firmamentos. Isso é lá poesia que se escreve? Por que teve o homem que inventar essa cruel modalidade de morrer?”


“De todos os nomes que gostaria de ter, ganhei dois. Gosto demais de um. O conjunto soa harmônico, é a minha cara, inocência e destruição. Aqui sinto falta dele. Aqui esse nome está gritando agora, como as loucas gritavam nos fundos dos casarões mal-assombrados. Ele quer chegar à sala de visitas, mas os donos da casa ainda não deixam; ainda não é a hora. Guardo, portanto, meu nome, como antigamente se guardavam as senhoras loucas. (...) Foi pai quem me deu esse nome. Mãe não queria. Ele foi escondido ao cartório, enquanto ela estava de resguardo. Voltou, desconfiado, mas com a certidão de nascimento na mão, garantindo no papel aquele nome, nome duplo que mãe não queria. Um dos nomes, dizia ela, era de uma inimiga sua.”


Minha ternura absoluta (13/05/2009),
memórias familiares sobre São Paulo,
leia aqui

“Sempre gostei de chuva: à noite, na minha caminha, debaixo de mil cobertas de retalho. Mas durante o dia, chuva não é mais que um trovejo: sair na rua segurando uma sombrinha horrorosa, com um lado decadente, e o vento abrindo-a pelo avesso, pronto para o sadismo próprio dos ventos. (...) Lembro que lá minha terra quando chovia dias e dias, e pontes e pontes viravam água de rio, eu me queixava, dizia que tinha raiva de chuva. Aí pai saía do alto de seu posto para a doutrinação. Lembrava do povo da roça que rezava o ano inteiro pedindo chuva; que não tinha nada pra comer; que só conhecia terra vermelha. Eu na minha indiferença pelos problemas sociais, fazia um muxoxo, pegava minha blusa de frio, um livro e ia deitar no sofá pra ler.”


“Essa história nada tem de original, a não ser que é minha. Nessa história minha irmã Noélia chega à Lapa, doente. E o médico que a atende, um estagiário, a tira dos braços de mãe, levando-a pelo corredor. Volta, após quinze minutos, com a menina morta no colo, e devolve-a à mãe... (...) Poderia dizer que essa tragédia desviou muitos destinos. Inclusive o meu. Pois que mãe morreu ali naquele momento. A mãe que voltou, sozinha, no caminhão de romeiros, não era a mesma de antes. Nasci, portanto, alguns anos depois, com uma herança maldita, a herança do medo. Mãe e eu, andando pelo mundo, gritando. O medo para sempre nos perseguindo.”


“Tenho pavor a diminutivos. Herdei tal pavor de mãe, que odeia se chamar Terezinha. Cresci ouvindo sua revolta ecoando pelos corredores lá de casa. Minha intuição ficou, acredito que por conta disso, aflorada diante dos diminutivos. Mãe, nas suas várias encarnações, intuía o peso deles; o peso não, sua inconsistência. Diminutivo não me convence. Tenho medo de gente que insiste em mostrar sua ternura com diminutivos: lindinha, queridinha, fofinha... argh! Te esconjuro! (...) Até hoje meu instinto, portanto, com relação aos diminutivos, nunca me enganou: sufixos sem expressividade, retratam o vácuo e o perigoso que há no falso.”


“(...) Acho que gostei de ter hepatite; o que não gostei mesmo foi de ter visto o caixão de defunto. Não, tal lembrança eu afugento, jogo pra longe, no meu baú de espantos. Ainda mais que essa aparição é alusiva para tentar esclarecer meus nervos fracos. Data daí a especulação familiar, o cuidado ostensivo em me guardar do mundo. Pai dizia, às escondidas, para os parentes, que eu era uma menina nervosa, estava sujeita à queda de nervos. É, queda de nervos – essa expressão é a cara de pai. Ele que também sofria de muito nervoso, juntamente com os irmãos, principalmente as irmãs, sempre descabeladas, gritando ai meu Deus no meio da casa cheia de gente. A loucura pairando, ainda que um pouco civilizada: nada de jogar pedras, até hoje nenhum parente jogou pedra. Mas a verdade é que sempre pairou, inquieta, e meus olhos assustados de seis anos já exprimiam o medo dela.”


heranças (22/06/2009),
sobre legado afetivo da família,
leia aqui

“(...) quem ganhou foi quem requebrou: a dançarina de caminho das índias e o mini mickael jackson. Como não lamentar? Oh, meu querido Vinícius, não fique triste, eu também perdi na sua idade muitos concursos. Aos doze anos cantava visceralmente uma música de rita lee. Não levei nada. Aos vinte, trinta participei de vários concursos de poesia. Chegava perto, mas nunca levei nada. Sei como é essa dor por dentro: parece que o peito vai se fechando, fechando. Dá vontade de dar um murro no mundo, quebrar os dedos de quem votou naquela menininha besta dançando caminho das índias (...) hoje me senti com a sua idade, injustiçada num mundo que decide ser talento não as vocações intelectuais, mas tão somente àquelas relacionadas ao corpo e seus movimentos requebráveis.”


“A casa enorme, muitos cômodos, com rosto de abandono. E minha avó dentro dela. Dizia que de lá não sairia nem amarrada. A casa caindo parte por parte. Primeiro o quarto, depois o outro quarto. Depois o outro. Minha avó forte, pegando água no rio, enchendo todos os potes. Proclamava que enquanto restasse um cômodo que fosse, lá seria sua morada. E a casa caindo, a cada dia indo-se, finando-se, bem ali perto da estrada. Ó filhos ingratos, as pessoas falavam. Minha avó firme e decidida, não ouvia parentes nem aderentes, e teimosa ali ficava. Paredes rachadas, vento frio e chuva fina, e minha avó quase ao relento, cozinhando, como uma menina, no grande fogão de lenha...”


“Toda a problemática é que o estado de frustração, normal ao vir da castração absoluta, feita nos primeiros anos de vida com a retirada do leite materno, em mim permaneceu, em doses dilacerantes, muito mais que nos meus quatro anos de mamação. Isso formou um elo dos mais terríveis entre mim e minha mãe. (...) É nítido demais o sofrimento das separações a que ela me impunha. É nítida a dolorosa lembrança de um dia em que ela, às escondidas, viajou sem mim. E eu, enganada, na casa de minha avó... Quando me dei conta da traição esgoelei o dia inteiro, gritando por ela. Minha avó, que nunca teve paciência com criança, disse que iria me bater. Aquilo doeu mais fundo e esgoelei mais alto ainda. Os passantes na estrada em frente, curiosos, perguntavam o que acontecia àquela criança ensandecida. (...) Terrível elo, terrível dependência, terrível hierarquia. (...) Não são à toa os alfinetes, os sonhos que tenho com alfinetes. Neles ela está sempre presente. (...) Hoje lendo sobre a primeira versão de Chapeuzinho Vermelho, descobri que o lobo pergunta à menina se ela vai para a casa da avó pelo caminho das agulhas ou dos alfinetes. Chapeuzinho responde ‘das agulhas’. O lobo vai pelo caminho dos alfinetes e chega primeiro. Tudo começa assim.”


“Cresci ouvindo-o contar sobre as ameaças de morte que recebia em razão de defender lavradores. Aliás, essa palavra ‘lavrador’ era dita por ele o dia todo, de manhã à noite. Além de uma outra, que não sai do meu juízo, tal o tom de voz em que a pronunciava: ‘grileiros’. E afirmava, com veemência, ser lavrador, mesmo quando já não pegava mais na enxada e discursava na câmara municipal. Era esse meu pai: forte, sem nenhuma doença, vestindo aquele paletó e calça verdes nas festas do Divino Espírito Santo, postado na frente da igreja lotada, conversando com os amigos. Ou então em posição de sentido, tirando retrato na praça recém-inaugurada, perto da placa com seu nome gravado. Tinha orgulho da ‘vereança’ (como mãe pejorativamente denominava), de ter fundado o sindicato dos trabalhadores rurais, e de ter duas filhas: uma linda, desfilando no clube e ganhando o concurso de broto estudantil, e a outra lançando livro, poeta como seus tios repentistas. Esse era meu pai: forte, sem nenhuma doença, com um relógio grande no pulso esquerdo e óculos bifocais nos olhos ternos.”


Ângela Vilma - Foto daqui

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