Ricardo Aleixo (foto: Rafael Motta)
Loa para um dia a mais
Ricardo Aleixo
1.
sem poder
quebrar a pedra
a água esculpe
na pedra
o que há de pedra
esquecido
no seu quem
próprio
de
água
2.
sem poder
deter a água
a pedra enfim
reconhece
no gesto
lento
e constante
da água
seu quem
de pedra
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Com o Espírito das Coisas dentro
Ricardo Aleixo
Piedade criou o griot,
e é por ela que ele ainda vive.
Fez-se homem o Espírito das Coisas
e desatou a falar
uma língua linguagem estranha.
Tomado por louco, foi lançado ao mar,
onde um peixe o apanhou e o comeu e,
depois de comê-lo, foi, por seu turno, pescado
por um pescador, que o comeu
com o Espírito das Coisas dentro,
e este falou através de sua boca a mesma
língua linguagem estranha do começo.
Tomado por louco, o pescador foi
apedrejado e enterrado numa vala.
O vento do deserto descobriu
a vala e, lentamente, espalhou
restos do pescador sobre um caçador,
que, por também ter principiado
a falar a tal língua e estranha linguagem,
foi morto e teve o seu corpo (reduzido
a um fino pó) misturado ao pó que voa
sem rumo ao sabor do vento
que varre o deserto.
Um homem que vivia de tanger uma corda
estendida sobre uma cabeça engoliu,
por acidente, alguns desses grãos: de sua boca
saiu uma estranha língua linguagem
tão bela, que todos, sem conterem suas lágrimas,
o deixaram viver, piedosos.
Piedade criou o griot,
e é por ela que ele ainda vive.
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Amor
Ricardo Aleixo
alguém
que
quer
alguém
que
quer
alguém
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Geral
Ricardo Aleixo
O jo
go é tão
sujo
e você
(entre
bis
onho
e
biz
arro)
torce
justo
para
o juiz?
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Na noite calunga do bairro Cabula
Ricardo Aleixo
Morri quantas vezes
na noite mais longa?
Na noite imóvel, a
mais longa e espessa,
morri quantas vezes
na noite calunga?
A noite não passa
e eu dentro dela
morrendo de novo
sem nome e de novo
morrendo a cada
outro rombo aberto
na musculatura
do que um dia eu fui.
Morri quantas vezes
na noite mais rubra?
Na noite calunga,
tão espessa e longa,
morri quantas vezes
na noite terrível?
A noite mais morte
e eu dentro dela
morrendo de novo
sem voz e outra vez
morria a cada
outra bala alojada
no fundo mais fundo
do que eu ainda sou
(a cada silêncio
de pedra e de cal
que despeja o branco
de sua indiferença
por cima da sombra
do que eu já não sou
nem serei nunca mais).
Morri quantas vezes
na noite calunga?
Na noite trevosa,
noite que não finda,
a noite oceano, pleno
vão de sangue,
morri quantas vezes
na noite terrível,
na noite calunga
do bairro Cabula?
Morri tantas vezes
mas nunca me matam
de uma vez por todas.
Meu sangue é semente
que o vento enraíza
no ventre da terra
e eu nasço de novo
e de novo e meu nome
é aquele que não morre
sem fazer da noite
não mais a silente
parceira da morte
mas a mãe que pare
filhos cor da noite
e zela por eles,
tal qual uma pantera
que mostra, na chispa
do olhar e no gume
das presas, o quanto
será capaz de fazer
se a mão da maldade
ao menos pensar
em perturbar o sono
de sua ninhada.
Morri tantas vezes
mas sempre renasço
ainda mais forte,
corajoso e belo
— só o que sei é ser.
Sou muitos, me espalho
pelo mundo afora
e pelo tempo adentro
de mim e sou tantos
que um dia eu faço
a vida viver.
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“Assunto: os pais.
Qual deles morrerá primeiro?
Qual você
prefere que morra primeiro?
Nenhum dos dois.
E você? Um longo silêncio e
a pergunta muda.
Qual dos dois você
prefere que viva
para sempre? Nenhum
dos dois. Nossa mãe
diz que
ninguém fica para semente.”
“música mesmo
é milton
quem faz
só com
o som
que sai
da sua boca
ele toca
o oco
da vida
por dentro
do centro
da terra
até o breu
do céu
sem deus
que pesa
imenso
sobre nós”
“Morrer é com os vivos.
Chorar é com as nuvens.
Saber é com os livros.
Separar é com as margens.
Voar é com as pedras.
(...)
Calar é com a voz.
Morder é com os dentes.
Durar é com o tempo.
Lembrar é com os elefantes.
Soprar é com o vento.”
Presentes no livro de poemas “Pesado demais para a ventania” (Todavia, 2018), de Ricardo Aleixo, páginas 99-100, 107-108, 143, 181 e 24-27, respectivamente, além dos trechos dos poemas “Qual deles morrerá primeiro?” (p. 22), “Música mesmo” (p. 85) e “Quem faz o quê?” (p. 71), presentes na mesma obra.
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