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Cinco poemas e três trechos de Ricardo Aleixo no livro Pesado demais para a ventania

Ricardo Aleixo (foto: Rafael Motta)


Loa para um dia a mais
Ricardo Aleixo

1.

sem poder
quebrar a pedra

a água esculpe
na pedra

o que há de pedra
esquecido

no seu quem
próprio

de
água

2.

sem poder
deter a água

a pedra enfim
reconhece

no gesto
lento

e constante
da água

seu quem
de pedra

--------

Com o Espírito das Coisas dentro
Ricardo Aleixo

Piedade criou o griot,
           e é por ela que ele ainda vive.

Fez-se homem o Espírito das Coisas
              e desatou a falar
uma língua linguagem estranha.

Tomado por louco, foi lançado ao mar,
             onde um peixe o apanhou e o comeu e,
depois de comê-lo, foi, por seu turno, pescado
             por um pescador, que o comeu
com o Espírito das Coisas dentro,
              e este falou através de sua boca a mesma
língua linguagem estranha do começo.

Tomado por louco, o pescador foi
             apedrejado e enterrado numa vala.

O vento do deserto descobriu
             a vala e, lentamente, espalhou
restos do pescador sobre um caçador,
             que, por também ter principiado
a falar a tal língua e estranha linguagem,
              foi morto e teve o seu corpo (reduzido
a um fino pó) misturado ao pó que voa
             sem rumo ao sabor do vento
que varre o deserto.

Um homem que vivia de tanger uma corda
             estendida sobre uma cabeça engoliu,
por acidente, alguns desses grãos: de sua boca
             saiu uma estranha língua linguagem
tão bela, que todos, sem conterem suas lágrimas,
             o deixaram viver, piedosos.

Piedade criou o griot,
           e é por ela que ele ainda vive.

--------

Amor
Ricardo Aleixo

alguém
que
quer
alguém
que
quer
alguém

--------

Geral
Ricardo Aleixo

O jo
go é tão

sujo
e você

(entre
bis

onho
e

biz
arro)

torce
justo

para
o juiz?

--------

Na noite calunga do bairro Cabula
Ricardo Aleixo

Morri quantas vezes
na noite mais longa?

Na noite imóvel, a
mais longa e espessa,

morri quantas vezes
na noite calunga?

A noite não passa
e eu dentro dela

morrendo de novo
sem nome e de novo

morrendo a cada
outro rombo aberto

na musculatura
do que um dia eu fui.

Morri quantas vezes
na noite mais rubra?

Na noite calunga,
tão espessa e longa,

morri quantas vezes
na noite terrível?

A noite mais morte
e eu dentro dela

morrendo de novo
sem voz e outra vez

morria a cada
outra bala alojada

no fundo mais fundo
do que eu ainda sou

(a cada silêncio
de pedra e de cal

que despeja o branco
de sua indiferença

por cima da sombra
do que eu já não sou

nem serei nunca mais).
Morri quantas vezes

na noite calunga?
Na noite trevosa,

noite que não finda,
a noite oceano, pleno

vão de sangue,
morri quantas vezes

na noite terrível,
na noite calunga

do bairro Cabula?
Morri tantas vezes

mas nunca me matam
de uma vez por todas.

Meu sangue é semente
que o vento enraíza

no ventre da terra
e eu nasço de novo

e de novo e meu nome
é aquele que não morre

sem fazer da noite
não mais a silente

parceira da morte
mas a mãe que pare

filhos cor da noite
e zela por eles,

tal qual uma pantera
que mostra, na chispa

do olhar e no gume
das presas, o quanto

será capaz de fazer
se a mão da maldade

ao menos pensar
em perturbar o sono

de sua ninhada.
Morri tantas vezes

mas sempre renasço
ainda mais forte,

corajoso e belo
— só o que sei é ser.

Sou muitos, me espalho
pelo mundo afora

e pelo tempo adentro
de mim e sou tantos

que um dia eu faço
a vida viver.

--------

“Assunto: os pais.

Qual deles morrerá primeiro?
Qual você

prefere que morra primeiro?
Nenhum dos dois.

E você? Um longo silêncio e
a pergunta muda.

Qual dos dois você
prefere que viva

para sempre? Nenhum
dos dois. Nossa mãe

diz que
ninguém fica para semente.”


“música mesmo
é milton
quem faz

só com
o som
que sai
da sua boca
ele toca
o oco
da vida
por dentro

do centro
da terra
até o breu
do céu
sem deus
que pesa
imenso
sobre nós”


“Morrer é com os vivos.
Chorar é com as nuvens.
Saber é com os livros.
Separar é com as margens.
Voar é com as pedras.
(...)
Calar é com a voz.
Morder é com os dentes.
Durar é com o tempo.
Lembrar é com os elefantes.
Soprar é com o vento.”


Presentes no livro de poemas “Pesado demais para a ventania” (Todavia, 2018), de Ricardo Aleixo, páginas 99-100, 107-108, 143, 181 e 24-27, respectivamente, além dos trechos dos poemas “Qual deles morrerá primeiro?” (p. 22), “Música mesmo” (p. 85) e “Quem faz o quê?” (p. 71), presentes na mesma obra.

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