Pular para o conteúdo principal

Dez passagens de Clarice Lispector nas cartas dos anos 1950 (parte 2)

Clarice Lispector (foto daqui)


“(...) A verdade é que a pessoa só faz o que quer, mesmo quando o que quer vem contrariar seus próprios interesses mais profundos.”


“(...) Você está precisando falar. De dizer. Sei que é difícil porque não é fácil encontrar uma pessoa que ouça, sem que, por ter laços de emoção, se envolva e, com isso, termine prejudicando a própria pessoa que fala. (...) Peço a você que não recuse a ajuda que existe no mundo — a ajuda de uma pessoa a outra. A ajuda de ouvidos inteligentes. (...) Sei que santo de casa não faz milagre, e que minha experiência não chega a ter valor para você por se tratar de minha experiência (não há nada de ofensivo para mim nisso, isso acontece de um modo geral com todos). (...) Sei que sua atitude é em geral negativa quanto a médicos; por motivos que desconheço, você não tem muita fé na natureza humana e na bondade dos outros. Mas pense no assunto de um modo positivo. Pense que ninguém é uma fortaleza, que nós todos somos apenas humanos e nos ajudamos, pense que não existe uma só pessoa no mundo que não tenha pelo menos uma vez (...) necessidade de chorar.”


“(...) Nasci com alguma capacidade de gaguejar impressões — então por que não resolvi, em vez, fazer uma espécie de diário íntimo, trechos soltos, sem consequência? Não me surpreende que a moça ou senhora, a quem você emprestou O lustre, não queira traduzir. O que escrevo fica sempre umas cinco etapas antes da etapa em que poderia ser chamado de romance. São mais impressões mesmo. — Mas quando penso em parar totalmente de escrever, de nunca mais tentar, me ocorre também um pensamento completamente extraliterário, um pouco doloroso: é o de que eu perderia os poucos amigos que tenho.”


“(...) nunca entendi direito minhas relações com determinadas pessoas. Parece sempre se tratar de um engano de identidade, as pessoas me tomam por outra, e parece que não só esperam que eu assuma o papel dessa outra, como se queixam comigo quando eu não ajo como essa ‘outra’. Sei lá. É muito angustiante não ter sequer uma teoria para explicar...”


“Parece qualidade fora de moda, essa de um livro ‘prender’. Acho qualidade essencial, invejável. Livro realizado é livro que não se quer largar. A impressão visual que tenho dele é de linhas retas e finas se entrecruzando e se cortando. A primeira pausa, a primeira mesmo, vem exatamente e apenas no fim. E foi tão bonito — enfim, enfim a grande pausa. E minha impressão visual – sei que vai lhe parecer banalidade — mas foi de luz. Amém, Fernando [Sabino], amém. Para nós todos. Nunca me senti tanto pertencendo a uma ‘geração’. Pela primeira vez, talvez, senti a palavra geração em outro sentido. E veja, Fernando, que isso veio de algo mais, no seu livro, do que de fatos e ambientes. Vem de algo mais, de alguma coisa essencial que você pegou, e que me deu a certeza de um encontro marcado, e a esperança.”


“(...) Não houve afastamento no sentido de menos amizade. Acreditem-me que eu quase não escrevo mais cartas. Até para casa escrevo menos, não tão seguido como antes. E não mantenho mais correspondência com ninguém. Mas você tem razão, houve provavelmente alguma coisa mais. É que aos poucos mudei. Não posso dizer nem para melhor nem para pior. (...) Moralmente estou mais cínica, menos crente, mais resignada, menos amada e amando menos. Tudo isso às vezes sem causa aparente, outras vezes provocado por fatos. Quero somente pedir a vocês dois que não tomem meu afastamento aparente como profundo, e nem o tomem como coisa de relação pessoal com vocês, mas sim como coisa geral e pessoal minha.”


“(...) sou pessoa reservada que não fala das próprias dores e detesta sobrecarregar os outros; e, fisicamente, sou inquieta e ativa, e não tenho sequer a paciência de esperar que alguém me ajude a carregar um peso, a pegar malas, a arrastar um móvel.”


“(...) Recebi sim, ‘Duas águas’ [de João Cabral de Melo Neto, lançado em 1956]. Li duas vezes, em ocasiões diferentes. Das duas vezes, com admiração integral, com respeito, com alegria, com esse espanto surpresa que tenho diante de quem milagrosamente acha a palavra certa. Acha, não: de quem inventa a palavra certa, de quem nasceu com a possibilidade de descobrir a única palavra certa. Depois, a limpeza da construção. Não há um fio solto na sua poesia. Tão perfeita como uma mão, ou, se você quiser, u’a mão. Mão com cinco dedos. Saio de sua poesia com um sentimento de aprofundamento de vida, com o espanto de não ter podido ‘ver’ antes, de ter precisado que você dissesse para que eu pudesse ver. Ao mesmo tempo ‘reconheço’ o que você diz. Este meu ‘reconhecer’, quando leio você, é a minha contribuição à sua poesia. Sou grata a você pelo fato de eu ler com tanta participação o que você escreve. Porque, de novo e evidentemente, a razão de eu poder ‘contribuir’ tão bem com minha leitura, a razão está na sua própria poesia. Tenho até aflição com o modo como você é perfeito, no sentido de não sucumbir a nenhum relaxamento, de não ceder a nenhuma palavra inútil, na sua falta de sentimentalismo — você não enfeita nenhuma emoção.”


“Embora tenha nascido enquanto minha família estava em trânsito da Ucrânia para o Brasil, sou cidadã brasileira e foi brasileira toda minha criação e educação formal. Ficaria grata se enfatizasse este fato em lugar de meu local de nascimento”


“(...) Eu não sabia que você [Rubem Braga] tinha lido ou estava lendo meus contos, e quando você gosta do que escrevo me sinto muito compensada, até com ânimo de reiniciar agudamente a escrever. Só que estou como sempre cheia de intenções apenas vagas que não levantam voo, e parecem uma dessas ventanias de primavera que a gente pensa que vão sacudir árvores, mas servem apenas para levantar folha do chão. Não é preciso acrescentar que esta minha linda imagem é produto direto do fato de estar em primavera que, como sempre, me deixa cheia de esperança, desconsolo e aflição feliz. Enfim, esperarei pelo verão que é mais positivo.”


Presentes no livro “Todas as cartas” (Rocco, 2020), de Clarice Lispector, páginas 725, 613 a 615, 638-639, 688, 595, 650, 724, 637-638, 679 e 631, respectivamente.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Oito passagens de Conceição Evaristo no livro de contos Olhos d'água

Conceição Evaristo (Foto: Mariana Evaristo) "Tentando se equilibrar sobre a dor e o susto, Salinda contemplou-se no espelho. Sabia que ali encontraria a sua igual, bastava o gesto contemplativo de si mesma. E no lugar da sua face, viu a da outra. Do outro lado, como se verdade fosse, o nítido rosto da amiga surgiu para afirmar a força de um amor entre duas iguais. Mulheres, ambas se pareciam. Altas, negras e com dezenas de dreads a lhes enfeitar a cabeça. Ambas aves fêmeas, ousadas mergulhadoras na própria profundeza. E a cada vez que uma mergulhava na outra, o suave encontro de suas fendas-mulheres engravidava as duas de prazer. E o que parecia pouco, muito se tornava. O que finito era, se eternizava. E um leve e fugaz beijo na face, sombra rasurada de uma asa amarela de borboleta, se tornava uma certeza, uma presença incrustada nos poros da pele e da memória." "Tantos foram os amores na vida de Luamanda, que sempre um chamava mais um. Aconteceu também a paixão

Dez passagens de Clarice Lispector nas cartas dos anos 1950 (parte 1)

Clarice Lispector (foto daqui ) “O outono aqui está muito bonito e o frio já está chegando. Parei uns tempos de trabalhar no livro [‘A maçã no escuro’] mas um dia desses recomeçarei. Tenho a impressão penosa de que me repito em cada livro com a obstinação de quem bate na mesma porta que não quer se abrir. Aliás minha impressão é mais geral ainda: tenho a impressão de que falo muito e que digo sempre as mesmas coisas, com o que eu devo chatear muito os ouvintes que por gentileza e carinho aguentam...” “Alô Fernando [Sabino], estou escrevendo pra você mas também não tenho nada o que dizer. Acho que é assim que pouco a pouco os velhos honestos terminam por não dizer nada. Mas o engraçado é que não tendo absolutamente nada o que dizer, dá uma vontade enorme de dizer. O quê? (...) E assim é que, por não ter absolutamente nada o que dizer, até livro já escrevi, e você também. Até que a dignidade do silêncio venha, o que é frase muito bonitinha e me emociona civicamente.”  “(...) O dinheiro s

Dez passagens de Jorge Amado no romance Mar morto

Jorge Amado “(...) Os homens da beira do cais só têm uma estrada na sua vida: a estrada do mar. Por ela entram, que seu destino é esse. O mar é dono de todos eles. Do mar vem toda a alegria e toda a tristeza porque o mar é mistério que nem os marinheiros mais velhos entendem, que nem entendem aqueles antigos mestres de saveiro que não viajam mais, e, apenas, remendam velas e contam histórias. Quem já decifrou o mistério do mar? Do mar vem a música, vem o amor e vem a morte. E não é sobre o mar que a lua é mais bela? O mar é instável. Como ele é a vida dos homens dos saveiros. Qual deles já teve um fim de vida igual ao dos homens da terra que acarinham netos e reúnem as famílias nos almoços e jantares? Nenhum deles anda com esse passo firme dos homens da terra. Cada qual tem alguma coisa no fundo do mar: um filho, um irmão, um braço, um saveiro que virou, uma vela que o vento da tempestade despedaçou. Mas também qual deles não sabe cantar essas canções de amor nas noites do cais? Qual d