No dia 11 de outubro de 1996, Renato Russo morreu por complicações da AIDS. Enquanto milhares de fãs sofriam pelo país inteiro, um giz estalou bem no meio da minha testa (sala vazia, costumava ficar sozinho num canto, rabiscando proto-poemas ou olhando o mar da Pituba, ao longe, nos intervalos das aulas). Um tal de Marquinhos, colega de todo médio PhD, aproveitando a sala vazia, fez-me de alvo, o que era normal. Aproveitou para comentar a notícia do dia, lançou mais alguns e foi embora, perturbar outro Zé Mané qualquer.
Lembro que fiquei um pouco surpreso; morte de famosos sempre nos provoca aquela pausa: “pô, fulano de tal, rapaz, que merda...”, mas de volta ao silêncio dos esquisitos, recordei da canção Vento no Litoral, tocando na Globo FM, e uma certa tristeza me afligiu. Desenvolvi: “É, como ele morreu, vão tirar seus discos de mercado, e eu não tenho nenhum... Putz, preciso comprá-los!!!”. Pronto. Ilogicamente, endossei as grossas estatísticas das vendas pós-morte. Dias depois, já com a discografia da Legião Urbana devidamente anotada (via revista, não tinha Google), elaborei um plano pra efetivar uma compra simultânea, já que a ansiedade canibal (logo eu, hoje tão ferrenho inimigo do consumismo!) não ia esperar quase um ano pra completar a coleção (como foi com os discos de Bob Marley & The Wailers).
Dezembro de 96 chegou, e a severa economia da mesada (trabalhar, que é bom, nunca foi levado em conta nessa época), aliada à grana extra do gentil tio Djalma e às promoções de Natal das Lojas Americanas, garantiram a compra de sete álbuns da Legião Urbana, de vez. Assim, entulhei o CD player, saciando a compulsão. Na mesma medida, o rei Bob e o reggae foram bruscamente esquecidos, descartados pela descoberta de uma nova relação com a música; não mais ‘elevar-se’, e sim ‘imergir-se’.
Tornei-me então um legionário póstumo, já com a clara posição de curtir as canções ‘depressivas’ de Renato. O rock, esse bicho estranho, só viria depois. E em 1997, invejando o louco do Álvaro, que era o motor da galerinha nos intervalos na Albani, massacrando o violão, decidi tocar também (maldito anseio rock star, maçã!).
Montei uma pasta lotada de cifras xerocadas da Legião Urbana (garimpagem escrota na enorme coleção de revistas de minha mãe e outras emprestadas por amigos - sem Google, again), e a primeira música que aprendi foi Montanha Mágica, do disco V (1991), por ter pouquíssimos acordes básicos. Depois que o amigo Alan me ensinou o segredo da pestana (maior obstáculo para os iniciantes no violão - acordes em que o indicador tem que segurar todas as cordas), e eu consegui tocar os fatídicos acordes de Bb e F, ampliei o fanatismo pelas canções do Russo. Agora, munido do violão ‘coruja’ roubado do irmão Mark Dayves e a pasta abarrotada.
Tapado, fiz questão de limitar meu aprendizado ao mero acompanhar de acordes simplistas. Não quis estudar teoria, resistindo bastante aos ‘ataques’ de minha mãe professora (era uma insistência por certas vezes até terrorista, porque ela sabia que tosco assim eu não iria longe, o que ficou comprovado, enfim). E pra piorar mais ainda, só aceitei tocar músicas da Legião e nada mais; de jeito algum tocava outro som. Ou seja, um fracasso nas rodas de violão, jukebox de ficha travada.
E a afinação da voz? Um desastre, carniça sem ‘simancol’. Minha mãe passou então a me exigir que tomasse aula de canto, mas fui firme, na auto-suficiência típica dos adolescentes. Prossegui autodidata, longínquo do santo de casa, curtindo muito tentar simular o vozeirão de Renato Russo. E eu não queria fazer solos, ou estudar escalas e riffs, harmonias. Não me interessava ser um ‘guitar hero’, e não tinha como referência um músico instrumentista. Eu queria apenas tocar violão e cantar pra espantar a tristeza, ou pra fazer sucesso com os amigos e meninas, coisa muito simples, básica. No fim, só consegui mesmo foi espantar.
De tanto tocar, mas tanto mesmo, saturei de Renato Russo e pedi baixa da Legião. Até porque a descoberta do mundo, em 1997, já estava acontecendo, e eu precisava admirar outros sons, como relatei em posts anteriores. Mas a curta experiência nas imitações provocou uma revolução interna, que rendeu uma sensação estranha, de sair ‘cantando qualquer coisa’ em cima de ‘qualquer seqüência de acordes’. Pegar o violão e tocar. Criar. Compor.
Estava a folhear as páginas de uma revista cifrada qualquer, quando parei em uma música chamada Juventude à Vácuo, de uma banda desconhecida chamada Não Religião. Comecei, do nada, a tocar os acordes e a cantar a letra do jeito que quis, já que não a conhecia, o que, aliás, me faz pensar hoje por que diabos estava naquela revistinha chamada Sucessos. Alguns dias depois, escrevi um poema com versos lisérgicos, primários. Por conta da estrutura de 4 estrofes de 4 versos, fiquei estimulado a cantá-lo. O que fiz? Copiei os acordes da música desconhecida, rearrumei do meu jeito, e saí cantando o poema. Assim, no dia 18 de julho de 1997, nascia Vastidão, a minha primeira composição. Hoje, depois de várias versões distintas, ela está eternizada na coletânea Rock (disponível para download aqui), da banda The Orange Poem, com o nome Wideness.
O começo de um artista é quase sempre imitando um ídolo. Enquanto vários de minha geração se apadrinharam de Bob Dylan, Guns n’Roses, Nirvana, The Beatles, Iron Maiden, Pink Floyd, João Gilberto, Caymmi, etc., eu comecei com Legião Urbana, personalizada pelo poeta tenor Renato Russo. Legionário, aprendi a tocar violão, ser dublê de cantor e a descobrir-me compositor, de quebra poeta. Hoje em dia, ex-compositor declarado, ainda escuto a Legião, raramente, com os álbuns preferidos: A Tempestade (e o complemento Uma Outra Estação), V e Descobrimento do Brasil. E é deste último que destaco a canção da série deste post.
Hoje é meu aniversário. Cheguei aos 29 anos. Não se trata de um clichê. É a solução de uma questão antiga. Quase 13 anos atrás, quando descobri o Descobrimento..., e a canção que o abre, que gosto muito, instaurei uma curiosidade no meu HD: “Como estarei aos vinte e nove? Será preciso decidir começar a viver?”. Guardei. Esqueci. Mas ela ficou. E muito antes deste outubro, lá em abril, ela ressurgiu. Coincidência. Muita! Neste ano dos 29, aprendi a pedir perdão, a duras penas. E hoje, digo: até perdôo. Confesso que não sei a duração; por isso que este é o maior ensinamento de Jesus Cristo. Quem perdoa de fato é quem dá a face ao tapa. Humildade, tão alienígena deste ser erroneamente humano. E a decisão de (re)começar a viver está tão longe, ainda.
Vinte e Nove
(Renato Russo)
Perdi vinte em vinte e nove amizades
Por conta de uma pedra em minhas mãos
Me embriaguei morrendo vinte e nove vezes
Estou aprendendo a viver sem você
(Já que você não me quer mais)
Passei vinte e nove meses num navio
E vinte e nove dias na prisão
E aos vinte e nove, com o retorno de Saturno
Decidi começar a viver.
Quando você deixou de me amar
Aprendi a perdoar
E a pedir perdão.
(E vinte e nove anjos me saudaram
E tive vinte e nove amigos outra vez)
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Comentários
Tb fui fanática pelo Legião quando tinha 15 anos.
Ganhei uma caixa especial com 6 cds no meu niver de 16 anos, Vendi toda a coleção esta semana. 11 cds + lata que vinha com os cds da coleção por R$ 250,00, no mercado livre. Não escutava nada a uns 10 anos. rs Ano que vem quem faz 29 sou eu!
Putz, coincidência mesmo. Vendeu até bem a caixa, ein? Confesso q'eu escuto mesmo apenas "A Tempestade", inteiro, até. Lá tem a música do meu enterro, se alguém se lembrar disso. Em um outro post falarei sobre isso.
Obrigado pela visita! E fazer 29 é massa. É o último ano dos 20, último resquício da juventude.
Colecionador compra... é que a minha já estava bem arranhada...