“A ponte só desapareceria com a luz da manhã, como o reaparecimento do café com leite, que tudo devolve às construções sólidas e destrói a teia de aranha das altas horas da noite, a golpes de boletins radiofônicos e de banhos frios”
“E enquanto alguém, como sempre, explica alguma coisa, eu não sei por que estou no café, em todos os cafés... Mas não são mais do que isso, são o território neutro para os apátridas da alma, o centro imóvel da roda a partir da qual um homem pode alcançar a si mesmo em plena corrida, ver-se entrar e sair com um maníaco, envolto em mulheres ou promissórias ou teses epistemológicas; e, enquanto mexe o cafezinho na xícara que vai de boca em boca com o decorrer dos dias, pode desapegadamente tentar a revisão e o balanço, igualmente afastado do eu que entrou há uma hora no café e do eu que sairá dentro de mais uma hora. Autojuiz e autotestemunha, autobiógrafo irônico entre dois cigarros”
“Para que serve um escritor senão para destruir a literatura?”
“Talita voltou-lhe as costas e encaminhou-se para a porta. Quando parou, para esperá-lo, desconcertada e, ao mesmo tempo, precisando esperá-lo porque afastar-se dele neste instante era como deixá-lo cair num poço (com baratas, com trapos coloridos), notou que ele sorria e que tampouco o sorriso era para ela. Jamais o vira sorrir assim, tristemente e com tanta franqueza, de frente, sem a ironia habitual, aceitando alguma coisa que lhe estaria vindo do centro da vida, daquele outro poço (com baratas, com trampos coloridos, com um rosto flutuando em água suja?), aproximando-se dela no ato de aceitar essa coisa sem nome que o fazia sorrir. E tampouco seu beijo era para ela, não ocorria ai, grotescamente, ao lado de um congelador cheio de mortos, a tão pouca distância de Manú dormindo. Era como se se alcançassem a partir de outro lugar, com uma outra parte de si mesmos; e não era deles que se tratava, era como se estivessem pagando ou cobrando algo em nome de outros, como se fossem as marionetes de um encontro impossível entre seus donos”
Julio Cortázar e a realidade
“Esta realidade não é nenhuma garantia nem para você nem para ninguém, a não ser que a transforme em conceito, e depois em convenção, em esquema útil. O simples fato de você estar à minha esquerda e eu à sua direita já faz da realidade pelo menos duas realidades; e note que não quero ir ao fundo e lembrar que você e eu somos dois entes absolutamente sem comunicação entre si, a não ser por meio dos sentidos e da palavra, coisas de que devemos desconfiar se formos gente séria”
“Que parâmetro tem você para pensar que fomos bem? Por que tivemos de inventar o Éden, viver sob a nostalgia do paraíso perdido, fabricar utopias, engendrar um futuro? Se uma lombriga pudesse pensar, pensaria que a sua vida não tinha andado assim tão mal. O homem agarra-se à ciência como se fosse aquilo a que chamam uma tábua de salvação, e que eu jamais soube bem o que era. A razão segrega através da linguagem uma arquitetura satisfatória, como a precisa e rítmica composição dos quadros renascentistas, e nos põe no centro. Apesar de toda a sua curiosidade e da sua insatisfação, a ciência, ou seja, a razão, começa por nos tranquilizar. ‘Você está aqui, neste quarto, com seus amigos, diante desse abajur. Não se assuste, tudo está indo bem. Agora, vejamos: qual será a natureza desse fenômeno luminoso?”. Tudo muito instigador, muito vertiginoso, mas sempre do ângulo da cadeira sobre a qual estamos comodamente sentados”
“A única coisa que conta é isso de a entendermos à nossa maneira – retorquiu Oliveira. – Você pensa que existe uma realidade postulável pelo fato de você e eu estarmos falando neste quarto e nesta noite, e também porque você e eu sabemos que dentro de mais ou menos uma hora vai acontecer aqui determinada coisa. Isso tudo dá a você uma grande segurança ontológica, acredito; você se sente muito seguro de si, bem plantado em si mesmo e em tudo o que rodeia. Todavia, se ao mesmo tempo você pudesse assistir a essa realidade do meu ponto de vista, ou do de Babs, se você ganhasse uma ubiquidade, entende, e pudesse estar neste mesmo instante, neste mesmo quarto, na posição em que eu me encontro e com tudo o que sou e o que eu tenho sido, e também com tudo o que é e o que tem sido Babs, talvez acabasse por entender que seu egocentrismo barato não lhe fornece qualquer realidade válida. Só lhe dá uma crença fundada no terror, uma necessidade de afirmar aquilo que o rodeia para não cair dentro do funil e sair pelo outro lado, ninguém sabe onde”
“A impressão que se tem – disse Oliveira – é que se está caminhando sobre velhas pegadas. Estudantes aplicados, estamos usando argumentos já repetidos mil vezes e nada interessantes. E tudo isso, Ronald querido, porque falamos dialeticamente. Dizemos: você, eu, o abajur, a realidade. Dê um passo atrás, por favor. Anime-se. Não custa muito. As palavras desaparecem. Este abajur é um estímulo sensorial, nada mais. Agora, dê outro passo atrás. Aquilo a que você chama de vista e esse estímulo sensorial passam a ser uma relação inexplicável, visto que, para explicá-la, você teria de dar de novo um passo à frente e tudo iria para o diabo”
Trechos extraídos do livro O jogo da amarelinha, de Julio Cortázar.
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