Mayrant Gallo
Foto: Lima Trindade | Arte: Mirdad
"Nada é mesmo nosso nessa vida, se vamos morrer. Nem mesmo nos pertencemos. Estamos por enquanto. Por enquanto vivos, por enquanto amados, por enquanto juntos. Amanhã, quem sabe?"
"O que muitas mulheres não conseguem entender é que os homens não envelhecem. Continuam jovens, seu corpo é que fica pra trás. Mas, mentalmente, a cada novo corpo feminino que contemplam, renascem. Daí para a paixão só precisam de uma noite. Isso se a parceira cumprir sua parte. Deixar o pudor lá fora, sob a chuva, e a falta de coragem para seus pais, que mal a geraram ou o fizeram por descuido"
"É melhor que nossa mulher, ao ir para a cama com outro homem, aja como prostituta e não como amante. A prostituição tem um término marcado, a paixão nem sempre. A primeira nos devolve a mulher quase a mesma; a segunda, transformada, ferida, agastada, infeliz"
"É preciso compreender que o culto ao passado muitas vezes não constitui um sintoma de fraqueza, nem de loucura, nem de tédio, mas a única opção que nos resta"
"Polly riu, constrangida, o rosto levemente ruborizado. Decidira por mim e agora se envergonhava. Uma normalidade nas mulheres que se casam. Nada de estranho, portanto. O fato de que elas se deitem conosco já é suficiente para que decidam também por nossas vidas. Na verdade, decidir deitar-se já é uma decisão dupla, por elas e por nós, que sempre ficamos à espera de sua paixão ou compaixão. Não há outra alternativa para a conquista da alma feminina e, consequentemente, de seu corpo. Sem uma nem outra, só nos resta a força"
"Decidi dar uma volta e, quando retornei, ela tinha limpado o apartamento de todo vestígio de sua presença. Apagara até a marca de suor do seu ombro, quando, na cama, de bruços, encostava-se à parede. Ficara uma mossa branca na camada de massa da pintura, efeito de sua mão trabalhando violentamente a esponja molhada"
"Sob a chuva, os trens exalavam melancolia, um ar de exílio, de derrota. A insensibilidade dos homens, aferrados somente àquilo que oferece lucro, que os faz mais ricos ainda que piores, reduzira os trens àquele nível. Um dia, não houve mais pontos a ligar ou nenhum motivo rentável para fazer isso, e um magnata qualquer, aos brados ou arrotos, proferiu a sentença. E ali estavam eles, toneladas de ferro e aço, condenados, esquecidos, imóveis como túmulos"
"Não há felicidade sobre a Terra senão por um tempo, uns míseros segundos... Aliás, o estar feliz já é um desespero. Não se prolonga, não se perpetua. Estará sempre por um triz. E é isso que nos faz procurar, atentar para as outras vidas à nossa volta. Uma busca que é tão utópica quanto insensata. E não poderia ser de outra forma"
"Foi a trégua. A mais sofrida de todas. Não voltamos a ser o casal de antes, afinal de contas o tempo não apaga tudo, como habitualmente se diz. A memória permanece, e nela os momentos mais tristes: traições, preterições, abandonos, desprezos, ultrajes. Estas são feridas que não cicatrizam. Integram o rol das humilhações, e uma humilhação nunca se esquece. Supera-se a morte, a dor, um amor que se acaba, mas nunca uma vergonha. No instante último ainda a estaremos remoendo"
"Uma fatia de sol derramava-se sobre a fórmica, como a lâmina branca de uma cicatriz a separar nossos sonhos matrimoniais: de um lado o meu embaraço, do outro a sua indiferença. O marido fracassado, a esposa evasiva. Quando eu a abraçava de madrugada, ainda que em meio ao sono, motivado por algum sonho impreciso, e meu ventre colava em sua bunda ou avançava contra seu útero, Virgínia ou se virava para o outro lado ou escapava da cama para ir ao banheiro urinar, mais dissimulada que um outdoor. De início achei que era natural, depois tentei me convencer de que era uma coincidência, mas logo, estabelecida a repetição, compreendi que sua atitude não passava de estratégia, uma fuga gradativa aos seus compromissos de esposa"
"– É, de fato, Victória é sua filha.
Encarei-o quase com fúria, ódio.
– Mães não privam os filhos de seus falsos pais. Não teria efeito – concluiu"
"Foram as melhores núpcias de minha vida. Foi como se meu desejo encontrasse seu espelho no vigor e na volúpia que a alimentavam. Se ela me queria, eu estava pronto. Se eu me aprontava, ela logo se deixava animar, naturalmente, numa simetria até então impossível"
"Continuavam humanas e, apesar disso, profissionais: se por um lado pareciam mortas, num embotamento que sugeria desespero, anulação, por outro cumpriam muito bem seu papel de nos fornecer prazer, um prazer vivaz e autêntico, como procurávamos. Sob nossos corpos, eram como máquinas a promover ritmo ou seres vivos a improvisar. Que jamais se falassem, não importava; que jamais sorrissem, melhor ainda. Sua função nesta vida era outra, muito mais difícil: fazer da solidão humana, cujo ápice é o inevitável peso entre as virilhas, um breve instante de alívio"
"Dias depois, fomos à cidade comprar roupas. Esta é uma das maiores realizações para os homens: vestir com o conteúdo de seu bolso o corpo das mulheres que amam. Eu não tinha coragem de lhe dizer que a amava. E provavelmente o motivo era porque talvez não a amasse. Não a ponto de confessar tal sentimento e não me sentir um idiota.
– Na verdade, acho que quero estar com você, na cama e em qualquer outro lugar, tanto que estou aqui. Admirar seu corpo, acariciar sua pele. Depois relaxar, dormir, passar o resto da noite ao seu lado. Ver também você gozar e sofrer com minhas exigências... É isso. Mas será amor? Não sei. Acho que não.
Polly parou e me olhou firme.
– Porra! – disse, afinal, em tom choroso e inesperado.
E saiu correndo pela rua apinhada de homens, que a olhavam com o mesmo desejo que eu.
Aquela foi a melhor declaração de amor que já fiz a uma garota e, como quase tudo que falamos na vida, foi mal interpretada"
Trechos extraídos do romance "Os encantos do sol" (Escrituras, 2013), de Mayrant Gallo, contemplado com recursos da Petrobras e do Ministério da Cultura, único vencedor do edital Petrobras Cultural 2010 fora do eixo Sul-Sudeste, uma produção da Putzgrillo Cultura.
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